& Moira Bianchi: Você está sendo enganado. Mas você se importa?

domingo, 14 de agosto de 2022

Você está sendo enganado. Mas você se importa?

 olá,

eu venho querendo fazer esse post e ao mesmo tempo adiando na minha cabeça. O assunto é espinhoso, não quero falar de política aqui no meu blog que é voltado para a literatura e ainda assim, todo dia parece que o problema ganha fermento.

Estão te enganando. Você percebe? Você se importa?

O passado foi apagado, essa limpeza foi esquecida, a mentira virou verdade.
pic de azquotes

Um dos livros que mais me pirou foi 1984 de onde vem esse quote acima. 

Se você ainda não sacou do que estou falando neste post, olha esse outro.

"Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todos os livros reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e edifícios foram renomeados, todas as datas foram alteradas. E o processo continua dia a dia e minuto a minuto."

Nem vou entrar na explicação das origens desse livro, você já deve saber suficiente de Orwell para saber como e porque ele mudou de ideia horrorizado pela ideologia que ele seguia. Se não sabe, tá aqui: Why I write.

Mas, mesmo se você simpatiza com ideologias ou não, com certeza você está sentindo na pele essa realidade acontecendo nesse nosso admirável mundo novo

Tem que estar percebendo.

Você deve achar estranho a rainha consorte da Inglaterra ser negra (desculpe se essa não é a palavra certa, uso o que acho que é respeitoso), mas você foi pesquisar quem foi a rainha Charlotte?

Deve ter achado que o figurino dela é maravilhoso, mas reparou que não encaixa com as outras damas do seriado? Pensou nisso?

uma rainha nunca se exporia ao rídiculo de não estar na moda.
Essa roupa dela era para um evento oficial na corte, fora disso, ela estaria en mode.
pic de the tab

Aposto que leu sobre a única personagem 'mulatto' que Jane Austen criou em Sanditon, sua última criação que infelizmente ficou incompleta porque ela já estava bem doente. Não sabemos o que ela pensava em fazer com Georgiana Lamb, mas pelo nome que ela escolheu, a gente pode imaginar...

No entanto, quando a Persuasão da Netflix usa muitos atores de etnias diferentes, é proibido apontar essa a principal razão para não levar esse filme a sério. Achou isso esquisito?

Persuasão em uma mão... e razão na outra.
gif de get yarn

Como eu, você pode ter adorado Maria Antonieta de 2006, mas ficou atordoada com a trilha sonora moderna? Eu levei bastante tempo para fazer as pazes com o que via de bacana nesse filme, parece que não casa... Especialmente porque as músicas são um personagem a mais nesse filme.

Da mesma forma, a música moderna em arranjo clássico (sei lá é se assim que se diz) que Bridgerton usa - para mim o maior acerto do seriado. Ouvir uma música que eu gosto do Marroon 5 tocada por um quarteto de cordas me deixou intrigada, despertou minha memória afetiva, me fez gostar da cena antes que ela terminasse.

 Gatilho do bem!

Essa distração quase me fez deixar de reparar que um Duque NUNCA USARIA botas de montaria em um baile. Mas olha, super entendo a opção do figurino que errou propositalmente, aposto. As sapatilhas que eles usavam eram bem estranhas mesmo...

Neste ponto, por estética, eu aceitei ser enganada.

Percebe o problema?

veja esse outro quote de 1984, cap 11.

"O'Brien olhava para ele (Winston) especulativamente. Mais do que nunca, ele tinha o ar de um professor que se preocupa com uma criança rebelde, mas promissora.

 Há um slogan do Partido que trata do controle do passado —  disse ele. — Repita, por favor.

— Quem controla o passado controla o futuro: quem controla o presente controla o passado  repetiu Winston obedientemente.

— Quem controla o presente controla o passado  disse O'Brien, acenando com a cabeça com lenta aprovação. — É sua opinião, Winston, que o passado tem existência real?"

Essa cena é parte de uma sequência tão opressiva que eu parei de ler esse capítulo várias vezes. Confesso, levei dias para terminar. O livro todo foi bem complicado para mim porque me vi ali, sendo enganada, manipulada, iludida e reprimida.

Winston é quase afagado, veja que Orwell diz que o torturador age como se achasse a sua vítima promissora e no entanto, espreme como laranja de suco. Ele cede, claro. Coitado.

E então, hoje em dia, 70+ anos depois que 1984 foi escrito e 220+ anos depois da criação de Razão e Sensilidade, veja essa resenha que uma leitora jovem (julgo isso por sua foto de perfil, onde ela usa como única definição 'Sou metade agonia, metade esperança. - Jane Austen') sobre ele (o romance Razão e Sensibilidade):

Essa mesma leitora tem no seu feed quotes de Austen, avaliação positiva de Persuasão para o livro e o filme da Netflix e diz que Lady Susan é tipo "uma novela mexicana com briga de família, casal que não pode ficar junto, protagonista terrivelmente cínica e uma dose excelente de romance de época." Sim, você leu isso. 

Jane Austen nos dá uma BOA DOSE DE ROMANCE DE ÉPOCA.

Pronto, serviço feito. O passado foi apagado. A luta ferrenha de Lady Susan Vernon por sua sobrevivência - seja por um novo casamento para ela ou um para sua única filha - ficou perdida no tempo e no espaço. Não tem importância a relação que a adolescente Austen tinha com essa agonia da qual ela se aproximava ao entrar no 'mercado casamenteiro como adulta'. A situação feminina de dependência quase absoluta da proteção social e/ou financeira de um homem ficou dissolvida e foi... apagada da história.

Do mesmo jeito, a 'racionalidade na escrita longa' é avaliada como ruim e o protagonista que 'não toma nenhuma atitude' é desprezado por desconhecer que Ferrars respeita a honra acima do hedonismo. Olha que eu nem gosto de R&S, mas ver que as razões de Austen ficaram no século 19 e hoje sua obra é vista como um relato do namorico de Elinor e os devaneios de Marianne dá até tristeza, sabe?

Você também ficou triste com isso?

Guerra é paz.
Liberdade é subserviência.
Ignorância é fortaleza.

Essa tristeza me ataca faz tempo, venho tentando entender o que sinto desde que uma grande amiga me contou que viu Bridgerton com sua irmã que é médica e muito, muito fodona. Esperta, educada, tem sucesso profissional, é mãe, esposa, filha, empreendedora. Fodona, acredite em mim.

Eu perguntei: — Ela achou estranho a rainha da Inglaterra, um duque e uma lady serem negras?

Nem reparou. Só achou o seriado divertido, ela gostou.

— E todas as outras etnias na aristocracia Inglesa?

— Nada. Ela viu os figurinos e o romance. Minha irmã trabalha pra burro, ela queria só se distrair e relaxar.

Tá certa ela. O seriado foi feito para isso mesmo.

Distrair, divertir e... enganar.

gifer

Mas ela nem se importou.

E você, se importa?

os mandamentos dos animais de 'A revolução dos bichos' também de Orwell
entendedores entenderão...
pic de howard chai

pesquisei aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.


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