Olá!
Continuando o diário de leitura de livros inspirados/estudos sobre a vida e obra de Jane, sigamos pelos caminhos que levam a Austen.
Sofrendo de amor, dengue & Darcy
Como a autora deixou o namorado no México, Equador para ela é bem triste. Ela bem tenta recuperar a animação pelo projeto, mas volta-e-meia fala do Mr. Tilney que deixou para trás. De início eu achei que não ia influenciar no projeto, mas subestimei o poder dessa paixonite na vida dela. Será ele o noivo misterioso que ela citou na introdução?
Ela comemora o aniversário de Jane, 16 de dezembro, dando um banquete de alface para iguanas do parque municipal. Diferente, mas festivo.
Em Guayaquil, ela é ciceroneada por uma conhecida de uma conhecida, ou seja, uma desconhecida simpática que a hospeda em uma quitinete nos fundos de um escritório já que a casa dessa pessoa está em reforma e ela está de partida para a praia onde passará as festas & férias dos netos. Porém, antes de sumir pelo restante da estadia da autora e só voltar para um almoço de despedida no último dia (últimas horas até), essa amiga diz arrumou dois grupos para discutir Orgulho e Preconceito. São grupos de leitura regulares que aceitaram inserir Austen na sua lista de leitura.
Isso muda completamente a trajetória do projeto até aqui. A autora tinha precisado convencer pessoas que não tinham o hábito de ler a abrir espaço em suas vidas para a palavra de Jane Austen; agora ela enfrentaria grupos de leitores ávidos acostumados a ler & discutir obras clássicas e contemporâneas.
E de novo como na Guatemala, as pessoas com quem ela se relaciona são 50+ e mais uma vez vemos que neste público, as discussões de Austen são bem mais produtivas.
Será que no século 21 Austen só fala com pessoas maduras?
Esses grupos são batizados pela amiga como 'Lady Catherine' e 'Sra. Gardiner', já entrando na vibe de O&P. Como se pode imaginar pela escolha das tias que Jane Austen incluiu na trama, Lady C é composto de mulheres ricas e Sra. Gardiner de pessoas sensatas. Em comum, os dois grupos têm o moderador. Ignacio, o poeta pobre e trambiqueiro que cobra para manter esses grupos funcionando é uma figura no limiar do engraçado com o estranho. Ele vive precisando de dinheiro, pedindo dinheiro, sumindo e reaparecendo do nada.
Uma curiosidade nesta parte é a crítica longa que ela faz para a maneira como as livrarias arrumam os livros: por editora ao invés de por autor ou título. Eu nunca entrei em livraria no Equador, mas posso dizer que na Argentina, Austen está no mesmo lugar que aqui: literatura estrangeira > Inglês > romance.
Na livraria ela aceita a sugestão do balconista e compra 'Cumandá' de Juan Léon Mera de 1879. A sinopse me fez pensar em 'O Guarani' de José de Alencar, 1857 - lançado comercialmente 22 anos antes de Cumandá. Mmm, já fiquei desconfiada... Mas enfim, quando ela conta da compra desse livro nos grupos de leitura, todos têm faniquitos de nojo dizendo que é uma obra ridícula, exagerada e idiota. Eles preferem que ela leia 'Sé que vienem a matarme' de Alicia Yánez Cossío. Ela aceita, compra esse, mas lê Cumandá assim mesmo e se diverte muito.
Ela faz bastante sucesso no Equador, recebe diversar cantadas de vários homens. Será que como Anne Elliot em Persuasão ela está desabrochando no decorrer dessa aventura?
Como ela continua doente, visita uma clínica popular que lhe prescreve mais antibióticos e ela se entope de ibuprofeno. A irmã da cicerone que está viajando indica um médico de confiança e esse logo dá o diagnóstico: dengue! Eu ri! Dengue é nossa velha conhecida qui no RJ, até temos mais medo de uma prima dela, a tal de chikungunya. Por causa dessa notícia que deixa a autora apavorada de ter contraído essa doença mortal, ela se lembra de um agente de saúde vestido com roupa de proteção que bateu na porta do casebre que ela morou no México e ela não deixou entrar por medo. Bem, também ajudou ela não entender o que o homem dizia porque ele tinha sotaque muito forte. Depois do choque, ela liga para casa e conta para a família a razão da sua doença gravíssima.
As discussões de Orgulho e Preconceito
Apesar de terem prometido dois grupos à autora, somente um deu certo. Era época de Natal, todos tinham compromissos - inclusive o tal moderador-poeta-pilantra Ignacio que sumiu depois de levá-la ao primeiro grupo. E mais, um deles nem aceitou ler O&P, só conversar sobre. Decepcionante...
O grupo que deu certo foi o Sra. Gardiner, a tia-gente-fina das garotas Bennet que conhecia Mr. Darcy por ter nascido e sido criada na área de Pemberley. É um grupo eclético de homens e mulheres com idade média de 60 anos de vários locais da América Latina, o que faz autora ligar opiniões às culturas de cada pessoa.
Argentinos se acham superiores
Chilenos são frios e cultos
Uruguaios são melancólicos
Nenhum Brasileiro no grupo de leitores ávidos... Surpresa, surpresa.
A primeira conclusão que chegam é que as obras de Jane Austen são...
TODAS IGUAIS:
foco em duas irmãs e obssessão por fofoca.
Ora!
Eu fiquei ofendida!! Pensei que Abadia de Northanger não tem duas irmãs, têm 3 duplas de irmãos e irmãs. Lady Susan também é irmão e irmã. Sanditon também ia por esse caminho... Mas depois fiz a conta e é isso mesmo: O&P, R&S, Mansfield, Emma e Persuasão - todos têm irmãs no centro da trama. E fofoca, claro. Até já fizemos vídeo sobre como Jane Austen era fofoqueira!
E é justamente uma das pessoas mais jovens (50 anos) que puxa o velho papo de Austen feminista. Aqui eu mostro uma parte do diálogo desta discussão:
Fernanda: — Apesar de sua mesquinharia e fofoca, é justo dizer que Austen é uma precursora na luta pelos direitos das mulheres.
Leti: — Não, não! Você está enganada. Jane Austen não era feminista de jeito nenhum.
Fernanda: — Bem, eu acho que de certa forma, ela é.
Leti: — Ela não é sentimentalista, pelo menos, mas não é feminista.
De repente, todos os olhares se voltaram para a autora do livro (Amy), buscando arbitragem. Ela disse: — Austen não é feminista pela nossa definição, porque nunca disse que as mulheres deveriam ter os mesmos direitos que os homens. Ela não estava desafiando o patriarcado, embora frequentemente indique que certas famílias precisam de patriarcas melhores.
Leti: — Sim, sim, é isso mesmo. Não há um momento em sua obra em que ela se mostre feminista.
Fernanda: — Bem, me parece que era sim. Austen escreve crítica social, é uma mulher bem-educada, e isso por si só já era um desafio na época dela.
Ignacio, o moderador pilantra: — Lembra da Lizzy e do Sr. Hurst conversando quando ele diz: Como uma mulher pode se dedicar à leitura e não saber dançar? (cap 11) Austen oferece diferentes possibilidades para as mulheres, diferentes visões do que as mulheres podem ser. No entanto, as mulheres precisam se adaptar à estrutura de poder masculina para conseguir o que querem.
Fernanda: — E Austen mostra que não deveria ser assim. Estamos falando de uma vila na Inglaterra, então é claro que não é exatamente o tipo de feminismo que reconheceríamos hoje. Mas ela tinha uma visão avançada e definitivamente uma visão progressista das mulheres.
Leti: — Não, não! Por esses padrões, Louisa May Alcott também é feminista. Jo é uma personagem progressista, mas isso faz de Alcott uma feminista? Nem um pouco!
Fernanda: — Ela não é estritamente feminista, mas claramente se interessa pelas mulheres cultas de sua época.
Leti: — Mulheres cultas sempre serão pelo menos um pouco progressistas, isso é verdade.
Fernanda: — E foi difícil para elas - elas realmente tiveram que lutar!
A discussão avança um pouco deste tópico que me parece ser a necessidade de encaixar Austen em uma caixinha para caber na vida que temos hoje, no século 21. Concordo e discordo de várias dessas afirmações, mas acho que Austen não era inconformada ou desejosa por mudanças sociais.
Crônica da vida social é sempre uma crítica?
Com o caminhar da conversa, apesar de ir sentindo-se cada vez mais fora do ar por conta da doença, a autora se pega novamente pensando no quanto de Austen é perdido nas traduções. Penso muito nisso também... Já te contei do meu medo absoluto de fazer feio traduzinho a Juvenília - que ela até cita nesta parte fazendo graça de como Jane era mocinha livre de amarras ao escrever aqueles contos loucos.
Mas além de lamentar a tradução das falas de Duro de matar que ela assiste na noite de Natal, ela lamenta como a fluidez das alfinetas sociais de Austen se perde de uma lingua para outra.
Ignacio: — O que vocês acham de como as expectativas do leitor são estabelecidas? Acredito que Austen tem um talento maravilhoso para prenúncios delicados. Ela faz isso desde as primeiras linhas: "Como sabemos universalmente, um jovem com dinheiro precisa se casar. Ela gosta de insinuar coisas, para criar alguma intriga.
Fernanda: — Mas não é um livro com muitas surpresas, na verdade. É um livro muito óbvio.
Yolanda: — Bem! Tem um final feliz, e é disso que eu gosto.
Meli: — Tenho que te dizer, estou apaixonada pelo Sr. Darcy.
Óbvio é Mr Darcy ser amado!
Fora a tresloucada autora/diretora da versão Netflix, todos os leitores entendem e se apaixonam pelos defeitos de Fitzwilliam Darcy, o cara que paga com sangue por responder com palavras idiotas a um piada idiota de um amigo idiota. Quem nunca?
Depois de fazer bico por Austen ser chamada de óbvia, fiquei com isso na cabeça. Um dia volto nessa afirmação...
No geral, esse grupo que lê regularmente livros de filosofia de vários autores internacionais achou O&P um livro muito leve. Eu já até deixei de seguir canal no YTube que disse isso. Poderia abandonar o livro aqui, mas dicussão dá uma reviravolta ótima:
O tema é leve, apesar de ter sido crucial na época. E Austen tinha uma capacidade extraordinária de delinear personagens e entrar no psicológico por trás de suas ações. A leveza do tema contrasta brilhantemente com a profundidade da visão de Austen.
Por isso temos um quadro 'Segredo dos Clássicos' no canal Sincericídio Literário. Entender a época em que as obras foram criadas muda completamente o entendimento. É muita arrogância querer avaliar Austen com a cabeça do século 21, temos que mergulhar para apreciar.
O grupo cita outras obras que são leves/fáceis de ler, mas que são profundas como 'A insustentável leveza do ser' de Milan Kundera e 'Lolita' de Vladimir Nobokov. A autora então conta que Nobokov era apaixonado por Austen... eu não sabia!
"À primeira vista, a maneira e a linguagem de Jane Austen podem parecer antiquadas, afetadas, irreais. Mas isso é uma ilusão à qual o mau leitor sucumbe." Nobokov
Pela primeira vez as pessoas acham que as situações de O&P não poderiam ser vividas ali. Todos os outros grupos e lugares se identificaram com as questões humanas de Austen. Ela elocubra que é marca de leitores sofisticados não se relacionar com o que lê e isso me fez pensar que sou muito, muito humilde, fuleira, bufangueira: eu me vejo no que escrevo e no que leio! Sempre!...
O outro grupo, Lady Catherine, se reune em um clube maravilhoso e teve prazer em receber a gringa, mas não conversaram nada de livros nem de Austen. Falaram das festas de Natal e o Equador ficou mesmo com essa discussão - que foi bem boa!
Próximo passo é o Chile.
leia a parte 1 - Guatemala - aqui
leia a parte 2 - México - aqui
Me conta nos comentários.
Até.
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