& Moira Bianchi: 2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Todos os caminhos SEMPRE me levam a Jane Austen - parte 2

Olá!

Continuando o diário de leitura de livros inspirados/estudos sobre a vida e obra de Jane, sigamos pelos caminhos que levam a Austen.

Como já te contei, na Bienal do livro do Rio eu ganhei o livro 'All Roads Lead to Austen - a yearlong journey with Jane' de Amy Elizabeth Smith. Uma tradução livre seria 'Todos os caminhos levam a Austen - uma viagem anual com Jane', um diário de viagem de uma professora universitária americana pela América Latina para aprender Espanhol & discutir (em Espanhol) Jane Austen com as pessoas locais. 

Na primeira parte, ela esteve na Guatemala e agora, na parte 2, chegamos ao México.

Com amor, mas sem tequila

A autora já começou o livro contando de um affair que ele teve no México da primeira vez que visitou Puerto Vallarta em umas férias anos antes. 'Diego' é um taxista que deu mole, ela deu mole também, mas com medo, ela ficou só nos flertes. E se arrependeu. Então manteve contato e agora, nesta empreitada de um ano viajando, ela se organizou para ficar 3 meses com ele.

Diego alugou uma casa de um amigo - fica subentendido que foi ela quem pagou esse aluguel - para que eles morassem juntos por esses meses. Ela descreve a casa como ainda em construção, insegura, precária, mas com um terraço de onde se tem uma bela vista da cidade e uma rede para ela relaxar vendo Diego treinar boxe no saco de areia.

A cidade ainda é pequena, vive da exploração do turismo oriundo das locações de filmes como Noite da Iguana (1964) e Predador (1987). Mas por estar morando lá com um local, ela não visita locais turísticos, fica mais no lado dia-a-dia da cidade. E é o lado pobre.


Diego é o pobre-gente-boa, carinhoso, sorridente, bem-humorado. Eu que achava que ele seria um Wickham (de Orgulho e Preconceito) descobri que ele é um Tilney (de Abadia de Northanger). Fiquei esperando que ele a traísse ou falasse uma besteira, mas ele é perfeito em todo o tempo. 

É ele quem arruma dois casais amigos para ler Razão e Sensibilidade e discutir com ela (a autora), ele fica ao lado dela quando ela pega uma ziquizira de alergias/infecção e fica de cama por 3 semanas, leva a namorada gringa para conhecer a família, nunca fica de mal humor por pegarem ônibus toda hora nem quando ela não faz jantar para ele comer quando chega cansado do trabalho (ué, né? Namorada gringa tem que ser esposinha fazendo jantar, lavando roupa e limpando a casa?).

Puxa... eu estava apostando na emoção de um bad boy!

Ele até critica Willoughby!

Ao longo da estadia, Amy conta que já passou um ano morando na Europa, o que faz essa experiência na América Latina menos traumática (para ela).

Disposta a mergulhar de cabeça, ela compra várias fotonovelas e imagina Catherine Morland como heroína dos tipos de novelão mexicano: uma moça condenada injustamente que acaba morrendo na prisão, uma moça que descobre o sexo em um caso caliente e uma moça que é levada de cá para lá pelo destino. Pensei se ela incluiu NA só por mencionar ou para nos fazer ver Diego bonzinho e perfeitinho como Mr. Tilney.

O grupo de estudo de Austen

Aqui no México, diferente da Guatemala, o grupo é formado de famílias. Um casal com filhos pequenos e um casal com uma filha adolescente e Diego - ao todo são 6 pessoas que vão ler.

Todos reclamam que é um livrão bem grosso!

Um dos casais vive em uma área bem pobre que é descrita quase como uma favela. O outro tem uma loja de materiais de construção e mora em um lado mais classe média. Pareceu-me que é para fazer relação com a situação da Dashwood em R&S. 

Ela dá uns 2 meses para que eles completem a leitura e enquanto isso, vive a vidinha de local com seu namorado. Compra livros, faz amizade com uma vendedora de livraria e convive com a família de Diego. Achei que na Guatemala ela teve mais liberdade, aproveitou mais da localidade por estar sem um namoro...

Bem, mesmo com o prazo longo, poucos terminaram a leitura. A maioria parou logo no início quando as Daswood sofrem o revés de perder quase tudo e viver de esmolas do irmão. Eu também odiei esse começo, me fez ter ranço eterno com o irmão e com o sangue de barata de Elinor. Sabe que fiquei vindicated lendo essa parte? É que...

Ninguém gostou de Razão e Sensibilidade

Tal é a falta de tesão que eles nem conseguem se reunir, ninguém quer fazer força para conciliar datas e locais. A autora acaba por fazer suas reuniões separadas e perde os insights de um grupo maior, como teve na Guatemala.

A discussão é bem boa, mesmo assim. Somente as esposas dos casais leram até o fim. Talvez Diego tenha lido tudo também. Eles pautam a análise que os outros seguem usando as próprias experiências. Isso leva a uma conclusão bacana.

Austen escreve sobre pessoas, sobre famílias, enquanto outros escrevem sobre situações e políticas.

É, pode ser isso que faz Jane ser relevante até hoje.

Algumas das outras observações sobre R&S:

- Edward e Willoughby são iguais, fazem a mesma coisa: fletar! Porém um deles tem honra;

- Lealdade é o tema central, especialmente na relação entre irmãs;

- Honestidade e honra sempre vêm à tona;

- Marianne 'cria problemas' demais;

- Elinor é favorita de todos;

- Casamento com Cel Brandom é mal visto;

- Austen é feminista neste livro.

Eita... lá vamos nós.

Uma das carapuças que tentam enfiar em Austen é a do feminista antes do seu tempo, protofeminismo, etc, etc. Aqui é explicado como "Ela mantinha o foco nas mulheres, dava voz aos seus problemas e as tirou das sombras."

Para mim, a melhor discussão dessa parte é:

O nível cultural de uma pessoa influencia na sua percepção dos dilemas éticos de Austen?

Bingo!

Eu vivo sofrendo no instagram com o meme grosseiro de Darcy ofendendo Lizzy com 'pobre suja, fedida, nojenta'. Para mim é o epítomo de alguém que ouviu cantar o galo e não sabe aonde. Quem sabe um dia faço um post com uma pesquisa sobre isso.

Aqui neste livro, a autora chega na conclusão que chego aqui no instgram Austen-verso brasileiro: falta de cultura. Para ela, quanto menos educação formal (ela fala de quem fez faculdade x quem só tem estudo básico - esposas x maridos), menos paciência a pessoa tem para entender as sutilezas das narrativas de Austen.

Daí, depois dos grupos, ela mergulha na saudade do que não tivemos e começa a sofrer pela separação do namorado. A mãe dele pede que ela não o leve para longe, ele vende almoço para comprar jantar, ela em carreira universitária... É uma situação difícil.

Eles fogem da discussão da separação, ela resolve se distrair e vai a uma lan house checar os e-mails - lembra que esse livro é da época pré-smartphone) e recebe uma notícia que me chocou:

Mr. Darcy morreu!

Ah, que surpresa... fiquei sem plot! Eu bem tentei reduzir a experiência toda a uma fanfic tipo Austenland e até agora, Wickham é Tilney & Mr Darcy faleceu de diabetes. Caramba!...

Ela se arrasta em melancolia depois dessa notícia, ainda está meio doente e triste com a separação iminente. Diego não fala, ela se cala. Quando o fazem é um tipo de ciúme traição sobre Austen:

Você vai ler R&S com outro grupo em outro país?

Ele pergunta e a gente sente o que ele quis dizer...

Essa parte é menos interessante que a primeira, talvez porque eu também não gosto de R&S. No todo, continuo gostando e continuo curiosa.

Próximo destino é o Equador com Orgulho e Preconceito de novo.

Leia minhas impressões aqui.

Está gostando da análise? Me conta!

Leia All roads lead to Austen também.

Leia meu livro novo As anáguas de Lizzy Darcy.

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sábado, 19 de julho de 2025

Persuasão de Jane Austen - parte 4

 Persuasão

Jane Austen

Créditos:

Por ocasião da Leitura Coletiva do Clubinho do Canal/Podcast Sincericídio Literário, resolvi postar na íntegra a tradução encontrada no Free-Ebooks.net e Biblioteca Digital

Agradeço a gentileza de postar. 

Direitos autorais são interamente ligados a estas fontes, eu não fiz alterações e/ou correções. Clique nos nomes para ter acesso a essas versões que, infelizmente, não incluem os famosos 'CAPÍTULOS DELETADOS' que foram traduzidos por mim em julho de 2025.

O uso de imagens capas de diversas edições é meramente decorativo.



PARTE 4

leia a parte 3 aqui


Capítulo Quatro (Dezesseis)

Havia uma questão de que Anne, ao regressar para junto da família, gostaria muito de se certificar, ainda mais do que se o Sr. Elliot estava apaixonado por Elizabeth, e essa era de que o pai não estava apaixonado pela Sra. Clay; e ela estava em casa há apenas algumas horas, quando se começou a sentir inquieta a esse respeito.

Quando desceu para o pequeno-almoço na manhã seguinte, soube que aquela senhora, fingindo decorosamente, manifestara a intenção de os deixar. Ela podia imaginar a Sra. Clay a dizer que agora que a Menina Anne chegou, imaginava que já não precisavam da sua companhia¯, pois Elizabeth respondia, numa espécie de murmúrio:

Isso não constitui motivo nenhum, garanto-lhe que, para mim, isso não é razão. Ela não significa nada para mim, comparada consigo.

E chegou a tempo de ouvir o pai dize:

Minha querida senhora, isso não pode ser. A senhora ainda não viu nada de Bath. Tem estado aqui apenas para nos ajudar. Não deve fugir de nós agora. Tem de ficar para conhecer a Sra. Wallis, a bela Sra. Wallis. Eu sei que, para o seu espírito delicado, a contemplação da beleza é um verdadeiro prazer. Falou num tom e com um ar tão sério que Anne não ficou surpreendida ao ver a Sra. Clay lançar-lhe um olhar furtivo, bem como a Elizabeth. O seu rosto talvez exprimisse alguma cautela, mas o elogio a um espírito delicado não pareceu despertar qualquer preocupação na irmã. A senhora não pôde resistir às súplicas dos dois e prometeu ficar.

No decorrer dessa mesma manhã, Anne e o pai encontraram-se, por acaso, a sós, e ele começou a elogiá-la pela sua aparência melhorada; achava-a menos magra de corpo e de cara; a pele, a cútis, estava muito melhor-mais clara, mais fresca. Andava a usar alguma coisa especial?

Não, nada.

Só Gowland- supôs ele.

Não, absolutamente nada.

Ah! - ele mostrou-se surpreendido e acrescentou: Certamente, o melhor que tens a fazer é continuar como estás; não podes aperfeiçoar o que já está bem; se não, eu recomendava-te o Gowland, a utilização constante de Gowland nos meses de Primavera. A Sra. Clay tem-no usado, recomendada por mim, e vê como lhe tem feito bem. Vê como lhe fez desaparecer as sardas.

Se Elizabeth tivesse ouvido isto! Este elogio pessoal talvez a tivesse perturbado, principalmente porque não parecia a Anne que as sardas tivessem diminuído absolutamente nada. Mas tudo tem a sua oportunidade. Os malefícios do casamento seriam muito menores se Elizabeth também se casasse. Quanto a si própria, ela teria sempre a casa de Lady Russell à sua disposição.

A mente calma e os modos educados de Lady Russell foram postos à prova nesta altura, nas suas relações com Camden Place. Ver a Sra. Clay em tão boas graças e Anne tão ignorada constituía para ela uma provocação permanente; e, quando estava longe, isso aborrecia-a tanto quanto uma pessoa que está em Bath e que toma as águas, recebe todas as publicações novas e tem um vasto círculo de conhecimentos, tem tempo para se aborrecer.

Quando conheceu o Sr. Elliot, tornou-se mais tolerante, ou mais indiferente, em relação aos outros. Os modos dele constituíram uma recomendação imediata e, ao conversar com ele, viu que o interior estava tão de acordo com a superfície que, a princípio, como contou a Anne, esteve quase prestes a exclamar:

Será este o Sr. Elliot?

Ela não conseguia imaginar um homem mais simpático ou digno de apreço. Ele reunia todas as qualidades: compreensão, opiniões corretas, conhecimento do mundo e um coração afetuoso. Possuía fortes sentimentos em relação a laços familiares e à honra da família, sem orgulho nem fraqueza; vivia com a prodigalidade de um homem de fortuna, sem ostentação; julgava por si próprio a respeito de tudo o que era essencial, sem desafiar a opinião pública em qualquer questão de decoro mundano. Era firme, observador, moderado, sincero; nunca, imaginando-se forte, se deixava dominar pelo entusiasmo ou pelo egoísmo; tinha, no entanto, uma sensibilidade delicada para tudo o que era agradável e delicado, e dava valor a todas as alegrias da vida doméstica, coisas que personalidades dadas a entusiasmos fictícios e agitações violentas raramente possuem.

Ela tinha a certeza de que ele não fora feliz no casamento.

O coronel Wallis dissera-o, e Lady Russell viu-o; mas não tinha sido um infortúnio que lhe tivesse azedado o espírito, nem (começou ela pouco depois a desconfiar) que o impedisse de pensar numa segunda escolha. A sua satisfação em relação ao Sr. Elliot excedia a aversão que sentia pela Sra. Clay. HÁ já alguns anos que Anne se apercebera de que ela e a sua excelente amiga podiam, por vezes, ter opiniões diferentes; e, assim, não ficou surpreendida por Lady Russell não ver, no enorme desejo de reconciliação do Sr. Elliot, nada de suspeito ou incoerente, nada que tivesse outros motivos para além dos que eram óbvios.

No ponto de vista de Lady Russell, era perfeitamente natural que o Sr. Elliot, numa fase mais amadurecida da sua vida, achasse desejável estar em boas relações com o chefe da sua família, fato esse que merecia toda a aprovação das pessoas sensatas; era o processo mais simples do mundo de uma mente naturalmente lúcida, que só errara no auge da juventude.

Anne, porém, limitou-se a esboçar um sorriso; e por fim, referiu-se a Elizabeth. Lady Russell ouviu, olhou e deu apenas uma resposta cautelosa:

Elizabeth! Muito bem. O tempo dirá. Era uma referência ao futuro, ao qual Anne, depois de pensar um pouco, sentiu que tinha de se submeter. De momento, não podia ter a certeza de nada. Naquela casa, Elizabeth estava em primeiro lugar; e ela estava tão habituada a atrair as atenções gerais como Menina Elliot¯ que quaisquer atenções para com outras pessoas pareciam quase impossíveis. Era preciso lembrar também que o Sr. Elliot só tinha enviuvado há sete meses. Uma ligeira demora da sua parte era perfeitamente desculpável.

Na realidade, Anne nunca conseguia ver o fumo à volta do chapéu dele sem recear que talvez fosse ela quem não merecia desculpa, ao atribuir-lhe tais fantasias; pois, embora o casamento dele não tivesse sido muito feliz, o mesmo durara tantos anos que ela não conseguia compreender um restabelecimento tão rápido do desgosto provocado pela sua dissolução. Qualquer que fosse o desfecho, o Sr. Elliot era, sem dúvida, a pessoa mais agradável que conheciam em Bath; ela não via ninguém que se lhe comparasse; e dava-lhe um enorme prazer conversar com ele de vez em quando sobre Lyme, que ele desejava, tanto como ela, voltar a ver e conhecer melhor.

Recordaram muitas vezes os pormenores do seu primeiro encontro. Ele deu-lhe a entender que a tinha olhado com muito interesse. Ela sabia-o bem; e ela recordava também o olhar de outra pessoa. As suas maneiras de pensar nem sempre coincidiam. Ela viu que ele atribuía mais valor do que ela à posição e relações sociais. Não foi apenas por tolerância, devia ser por gosto próprio que ele se associou empenhadamente ao interesse do pai e da irmã sobre um assunto que ela considerava indigno da atenção deles.

Uma manhã, o jornal de Bath anunciou a chegada da viúva viscondessa de Dalrymple e da filha, a Menina Carteret; e, durante muitos dias, toda a tranquilidade do apartamento de Camden Place desapareceu; pois os Dalrymple (infelizmente, na opinião de Anne) eram primos dos Elliot; e a preocupação era com o modo como lhes seriam condignamente apresentados.

Anne nunca tinha visto o pai e a irmã em contato com a nobreza e teve de reconhecer que se sentiu desiludida. Esperara mais da noção elevada que eles tinham da sua posição social, e viu-se reduzida a formular um desejo que nunca previra - um desejo de que eles tivessem mais orgulho; as palavras -as nossas primas Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯ e as nossas primas, as Dalrymple¯ soavam nos seus ouvidos durante todo o dia.

Sir Walter tinha-se encontrado uma vez na companhia do falecido visconde, mas nunca vira o resto da família, e as dificuldades da situação deviam-se ao fato de ter havido uma suspensão de cartas cerimoniosas, desde a morte do visconde, quando, em consequência de uma grave doença de Sir Walter ao mesmo tempo, se verificara uma infeliz omissão em Kellynch.

Não fora enviada para a Irlanda nenhuma carta de condolências. A negligência voltara-se contra o prevaricador, pois, quando a pobre Lady Elliot morreu, nenhuma carta foi recebida em Kellynch e, consequentemente, havia motivo suficiente para supor que as Dalrymple consideravam as relações cortadas. A questão agora era corrigir este preocupante contratempo e serem admitidos de novo como primos; essa era uma questão que, embora com uma atitude mais racional, nem Lady Russell nem o Sr. Elliot consideravam insignificante. - As relações familiares devem ser sempre preservadas, tal como se deve sempre procurar boas companhias - diziam eles.

Lady Dalrymple tinha alugado uma casa por três meses em Laura Place e iria viver em grande estilo. Estivera em Bath no ano anterior, e Lady Russell ouvira falar dela como sendo uma mulher encantadora. Seria muito desejável que reatassem relações, se tal pudesse ser feito sem qualquer perda de compostura por parte dos Elliot.

Sir Walter, porém, decidiu escolher os seus próprios meios e, por fim, escreveu uma bela carta dirigida à sua ilustre prima, cheia de explicações, lamentações e súplicas. Nem Lady Russell nem o Sr. Elliot aprovaram a carta; mas ela teve o efeito pretendido, que foi três linhas rabiscadas pela viscondessa. Ela sentia-se muito honrada e gostaria muito de os conhecer. Terminada a aflição, começava a doçura.

Eles visitaram Laura Place, receberam os cartões de visita da viscondessa de Dalrymple e da ilustre Menina Carteret, os quais foram colocados em locais bem visíveis, e falavam a toda a gente das primas de Laura Place¯ e das nossas primas, Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯. Anne sentia-se envergonhada.

Se, ao menos, Lady Dalrymple e a filha fossem muito simpáticas, mesmo assim ela teria sentido vergonha da agitação que elas tinham provocado; mas elas não passavam de duas nulidades. Não possuíam qualquer superioridade de maneiras, talentos ou inteligência. Lady Dalrymple adquirira o epíteto de uma mulher encantadora¯ porque tinha um sorriso e uma resposta educada para toda a gente. A Menina Carteret, com ainda menos para dizer, era tão feia e tão desajeitada que, se não fosse quem era, nunca seria tolerada em Camden Place.

Lady Russell confessou que tinha esperado algo melhor; mas, mesmo assim, era um conhecimento valioso¯, e, quando Anne se atreveu a emitir a sua opinião sobre elas ao Sr. Elliot, ele concordou que elas, em si, eram nulidades, mas continuava a pensar que tinham o seu valor como ligação familiar, como boa companhia e ainda como pessoas que reuniam uma boa companhia à sua volta.

Anne sorriu e disse:

A minha idéia de boa companhia, Sr. Elliot, é a companhia de pessoas inteligentes, bem informadas, que têm muito sobre que conversar; é a isso que eu chamo boa companhia.

Está enganada - disse ele suavemente -, isso não é boa companhia, é ótima. Boa companhia exige apenas nascimento, educação e boas-maneiras, e nem sequer é muito exigente quanto à educação. Linhagem e boas-maneiras é o essencial; mas uma certa instrução não é, de modo algum, uma coisa perigosa em companhia; pelo contrário, até é uma vantagem. A minha prima Anne abana a cabeça. Ela não está satisfeita. É difícil de contentar. A minha cara prima - (sentando-se a seu lado) – tem mais direito de ser exigente do que qualquer mulher que eu conheço; mas será isso aconselhável? Será que isso a fará feliz? Não será mais sensato aceitar a companhia destas boas senhoras de Laura Place e usufruir o mais possível de todas as vantagens do parentesco? Pode ter a certeza de que elas frequentarão a melhor sociedade de Bath e, como nobreza é nobreza, o fato de se saber que são parentes delas será útil para colocar a sua família... a nossa família, devo dizer... naquele nível de consideração que todos desejamos.

Sim - suspirou Anne -, na realidade, vai saber-se que somos parentes delas! - Depois, dominando-se e não querendo que ele respondesse, acrescentou: - Eu realmente penso que houve demasiada preocupação em estabelecer relações. Suponho (sorrindo) - que tenho mais orgulho do que qualquer um de vós; mas confesso que me aborrece que nos tenhamos mostrado tão ansiosos em ver reconhecido o parentesco, o qual lhes é, sem dúvida, perfeitamente indiferente.

Perdoe-me, minha querida prima, mas está a ser injusta para com os vossos direitos. Em Londres, talvez, com o vosso atual estilo de vida tranquilo, talvez fosse como diz; mas em Bath, Sir Walter Elliot e a sua família serão sempre dignos de ser conhecidos, serão sempre aceites como conhecimentos importantes.

Bem - disse Anne -, certamente que me sinto orgulhosa, demasiado orgulhosa para apreciar um acolhimento que depende exclusivamente de posição social.

Adoro a sua indignação - disse ele -, ela é muito natural. Mas, já que estão aqui em Bath, o objetivo deverá ser instalarem-se com toda a honra e dignidade a que Sir Walter Elliot tem direito.

Diz que é orgulhosa; eu sei que me chamam orgulhoso, e não gostaria de ser de outro modo, pois o nosso orgulho, se analisarmos bem as coisas, tem o mesmo objetivo, não tenho qualquer dúvida, embora possam ser de um tipo um pouco diferente. Num ponto, tenho a certeza, minha querida prima - prosseguiu ele, num tom de voz mais baixo, embora não estivesse mais ninguém na sala -, num ponto, tenho a certeza de que estamos de acordo. Ambos sentimos que, se o seu pai aumentar o seu círculo de conhecimentos entre os seus iguais ou superiores, isso poderá servir para desviar os seus pensamentos dos que lhe são inferiores.

Enquanto falava, ele olhava para o lugar em que a Sra. Clay se sentara havia pouco tempo, uma indicação suficiente do que ele queria dizer; e, embora Anne não acreditasse que tivessem o mesmo tipo de orgulho, ficou satisfeita por ele não gostar da Sra. Clay; e a sua consciência admitiu que o desejo dele de aumentar o círculo social do seu pai era mais do que desculpável se visasse derrotá-la.


Capítulo Cinco (Dezessete)

Enquanto Sir Walter e Elizabeth tentavam assiduamente cair nas boas graças de Laura Place, Anne reatava um conhecimento de natureza muito diferente. Ela tinha visitado a sua antiga preceptora, e soubera por ela que se encontrava em Bath uma antiga colega que tinha dois fortes motivos para que a recordasse: a sua bondade passada e o seu sofrimento atual.

A Menina Hamilton, agora Sra. Smith, tinha sido bondosa para com ela num dos períodos da sua vida em que mais precisara. Anne fora para o colégio sentindo-se muito infeliz, chorando a morte da mãe muito amada, ressentindo-se do afastamento de casa e sofrendo como uma menina de 14 anos, sensível e pouco alegre, sofre em circunstâncias destas; e a Menina Hamilton, três anos mais velha do que ela, mas que, por não ter familiares próximos nem um lar definitivo, tinha ficado mais um ano no colégio, tinha sido útil e bondosa para ela, de um modo que minorara consideravelmente a sua infelicidade e, por esse motivo, ela nunca a poderia recordar com indiferença.

A Menina Hamilton deixara o colégio e casara pouco depois, ao que se dizia, com um homem de fortuna; e isto era tudo o que Anne soubera dela, até que, agora, a preceptora lhe revelou a sua situação de uma forma mais segura mas muito diferente. Ela estava viúva e pobre. O marido tinha sido extravagante; quando morrera, dois anos antes, ele tinha deixado os seus negócios terrivelmente emaranhados. Ela tivera de lutar contra todo o tipo de dificuldades e, para além destes desgostos, sofria de uma grave febre reumática que acabara por atacar-lhe as pernas e a deixara aleijada. Ela viera para Bath por causa disso e estava agora instalada numa casa alugada perto das termas quentes, a viver de um modo muito humilde, sem poder sequer ter o conforto de uma criada e, obviamente, quase excluída da sociedade.

A amiga comum garantiu que a Sra. Smith ficaria muito satisfeita com a visita da Menina Elliot e, assim, Anne não perdeu tempo em ir vê-la. Não disse nada em casa sobre o que ouvira nem o que tencionava fazer. Isso não suscitaria grande interesse. Limitou-se a consultar Lady Russell, e esta compreendeu-a perfeitamente e teve o maior prazer em levá-la tão perto da morada da Sra. Smith nos Westgate Buildings quanto Anne quis.

A visita foi feita, o conhecimento reatado e a amizade de uma pela outra mais do que reacendida. Os primeiros dez minutos tiveram o seu quê de embaraço e emoção. Tinham-se passado doze anos desde que se tinham separado, e cada uma delas era um tanto diferente do que

a outra imaginara. Doze anos tinham transformado Anne de uma menina sem formas, calada e a desabrochar, numa elegante mulher de 27 anos, de baixa estatura, com toda a beleza exceto o viço da juventude e com modos conscientemente corretos e invariavelmente meigos; e doze anos tinham transformado a bonita e crescida Menina Hamilton, com todo o fulgor da saúde e confiança na sua superioridade, numa viúva pobre, enferma e indefesa, recebendo a visita da sua antiga protegida como um favor; mas tudo o que era penoso no encontro depressa se desvaneceu, deixando apenas o interesse e o encanto de recordar amizades antigas e de falar sobre os velhos tempos.

Anne encontrou na Sra. Smith o bom senso e os modos agradáveis com os quais ela quase se atrevera a contar, e uma vontade de conversar e ser alegre para além da sua expectativa. Nem a dissipação do passado - e ela tinha tido uma vida muito mundana - nem as restrições do presente; nem a doença nem a dor pareciam ter-lhe endurecido o coração e feito perder a jovialidade.

Durante a segunda visita, ela falou com muita franqueza, e o espanto de Anne aumentou. Não conseguia imaginar uma situação mais triste do que a da Sra. Smith. Ela gostara muito do marido - e enterrara-o. Habituara-se à afluência - e esta terminara. Não tinha filhos que a voltassem a prender à vida e à felicidade, nem familiares que a auxiliassem a pôr em ordem os seus negócios confusos, não tinha saúde que tornasse tudo o resto suportável. Os seus aposentos estavam limitados a uma sala barulhenta e um quarto escuro atrás, e ela não conseguia mover-se de um aposento para o outro sem ajuda; havia só uma criada na casa para lhe dar essa ajuda, e ela só saía para ir para as termas. No entanto, apesar de tudo isso, Anne tinha motivo para acreditar que ela tinha apenas momentos de desânimo e depressão, e horas de ocupação e alegria. Como podia isso ser?

Ela prestou atenção - observou – refletiu - e decidiu finalmente que não se tratava simplesmente de um caso de coragem e resignação. Um espírito submisso talvez fosse paciente, uma inteligência sólida poderia encontrar soluções, mas ali havia qualquer coisa mais; havia aquela elasticidade de espírito, aquela disposição para se deixar confortar, o poder de transformar rapidamente o mal em bem, de encontrar ocupações que a distraíssem, que só podia provir da natureza. Era o mais precioso dom do Céu, e Anne via a sua amiga como um daqueles casos que, devido a um desígnio misericordioso, parece destinado a contrabalançar quase todas as outras deficiências.

"Houvera uma altura", disse-lhe a Sra. Smith, em que quase desanimara. Agora já não se podia considerar uma inválida, comparada com o seu estado quando chegara a Bath. Nessa altura, ela tinha sido realmente digna de dó, pois apanhara uma constipação durante a viagem e, mal se instalara nos seus aposentos, ficara de cama, sofrendo constantemente de dores violentas; e tudo isso no meio de desconhecidos – com necessidade absoluta de uma enfermeira permanente, e sem dinheiro, de momento, para quaisquer despesas imprevistas. Ela tinha resistido, porém, e podia dizer com toda a sinceridade que a provação lhe tinha feito bem. Saber que estava em boas mãos fizera-a sentir-se melhor. Tinha visto demasiado do mundo para esperar uma amizade súbita e desinteressada em qualquer lado, mas a doença provara-lhe que a sua senhoria tinha um bom caráter não a iria tratar mal; e ela tivera sorte, sobretudo, com a enfermeira, irmã da senhoria, enfermeira de profissão, que, quando desempregada, tinha sempre um lar naquela casa, e, por acaso, se encontrava, nessa altura, livre para tratar dela.

E ela- disse a Sra. Smith-, além de me tratar muito bem, tem sido um conhecimento precioso. Assim que consegui usar as mãos, ela ensinou-me a tricotar, o que tem constituído para mim uma grande distração; ensinou-me a fazer estas caixinhas, alfineteiras e estojos para cartões de visita que me vê sempre a fazer e que me proporcionam um meio de fazer um pouco de bem a uma ou duas famílias pobres desta região. Devido à sua profissão, claro, ela conhece muita gente que pode comprar, e ela vende as minhas coisas. Dirige-se sempre às pessoas na altura certa. Toda a gente é generosa, sabe, quando acabou de se libertar de dores violentas ou está a recuperar a bênção da saúde, e a enfermeira Rooke sabe perfeitamente quando deve falar. Ela é uma mulher perspicaz, inteligente e sensata. Gosta de observar a natureza humana e possui um fundo de bom senso e sentido crítico que a tornam infinitamente superior, como companhia, a milhares que, tendo recebido a melhor educação do mundo¯, não sabem nada que valha a pena escutar.

Pode chamar-lhe má língua, se quiser; mas quando a enfermeira Rooke tem meia hora livre para passar comigo, é certo que tem algo interessante e útil para contar, algo que nos faz conhecer melhor os outros seres humanos. Todos gostam de ouvir o que se passa, de estar atualizados quanto às últimas modas fúteis e tolas. Para mim, que vivo sozinha, garanto-te que a conversa dela é um verdadeiro prazer.

Anne, longe de querer pôr em causa esse prazer, respondeu:

Posso bem acreditar. As mulheres da classe dela têm ótimas oportunidades e, se forem inteligentes, vale a pena escutá-las. Elas estão habituadas a presenciar tantas variações da natureza humana! E não conhecem bem apenas as suas loucuras; pois, ocasionalmente, elas conseguem vê- la sob os seus aspectos mais interessantes e comoventes. Quantos casos de amor ardente, desinteressado, altruísta, de heroísmo, coragem, paciência, resignação não desfilarão perante elas... de todos os conflitos e todos os sacrifícios que mais nos enobrecem? Um quarto de um doente pode, muitas vezes, ensinar mais do que muitos livros.

Sim - disse a Sr.a Smith num tom de dúvida -, às vezes pode ser que assim seja, mas eu receio que as suas lições não tenham frequentemente o estilo eloquente que descreve. De vez em quando, a natureza humana pode ser grandiosa em alturas difíceis, mas, de um modo geral, num quarto de um doente, são as suas fraquezas e não as suas forças que emergem; é do egoísmo e da impaciência que se ouve falar, e não de generosidade e de coragem. HÁ tão pouca amizade no mundo!, e, infelizmente - concluiu ela numa voz baixa e trémula -, há tantos que se esquecem de pensar a sério até ser demasiado tarde.

Anne viu como ela se sentia infeliz. O marido não tinha sido o que devia, e a mulher fora levada para o meio daquele setor da humanidade que a tinha feito pensar pior do mundo do que esperava que este merecesse. Foi, porém, apenas uma emoção passageira da Sra. Smith; ela sacudiu-a e, pouco depois, acrescentou num tom diferente:

Eu não penso que o emprego que a minha amiga, a Sra. Rooke, tem neste momento me vá fornecer exemplos interessantes e edificantes. Ela está apenas a tratar da Sra. Wallis de Malborough Buildings; creio que esta não passa de uma mulher moderna, bonita, tola e cara, e claro que não vai ter nada para contar a não ser sobre rendas e roupas elegantes. Mas tenciono fazer lucro com a Sra. Wallis. Ela tem muito dinheiro, e eu tenciono fazê-la comprar as coisas caras que tenho entre mãos. Anne visitou várias vezes a sua amiga antes de a existência desta ser conhecida em Camden Place. Por fim, tornou-se necessário falar dela.

Sir Walter, Elizabeth e a Sra. Clay regressaram uma manhã de Laura Place com um convite repentino de Lady Dalrymple para esse serão, e Anne já se tinha comprometido a passá-lo em Westgate Buildings. Não lamentou ter uma desculpa. Ela tinha a certeza de que eles só tinham sido convidados porque Lady Dalrymple, retida em casa com uma constipação, ficara satisfeita por poder utilizar o parentesco que lhe tinha sido imposto, e ela recusou o convite com grande satisfação. Disse que se tinha comprometido a passar o serão com uma antiga colega do colégio. Eles não se interessavam muito pelo que tinha a ver com Anne, mas, mesmo assim, houve perguntas suficientes para ter de explicar quem era essa antiga colega; Elizabeth mostrou-se desdenhosa, e Sir Walter, severo.

Westgate Buildings - disse ele -, e quem é que a Menina Anne Elliot vai visitar em Westgate Buildings? Uma Sra. Smith viúva. E quem era o marido dela? Um dos cinco mil Srs. Smiths cujos nomes se encontram por todo o lado? E que atrativo tem ela? É velha e enferma. Palavra de honra, Menina Anne Elliot, que a menina tem um gosto extraordinário! Tudo o que enoja as outras pessoas, companhias de baixo nível, aposentos miseráveis, ar viciado e relações desagradáveis é convidativo para si. Mas certamente que essa velha senhora pode esperar até amanhã. Ela não se encontra tão perto do fim que pense não chegar até amanhã. Que idade tem ela? Quarenta anos?

Não, senhor, ela tem trinta e um anos; mas acho que não posso adiar o meu compromisso; porque é a única noite, nos dias mais próximos, que convém tanto a mim como a ela. Ela vai para as termas quentes amanhã e, durante o resto da semana, o senhor sabe que estamos ocupados.

Mas que pensa Lady Russell desse conhecimento? – perguntou Elizabeth.

Ela não vê nada de mal nele - respondeu Anne -, pelo contrário, aprova-o; e, geralmente, leva-me lá, quando vou visitar a Sr.a Smith.

Os habitantes de Westgate Buildings devem ter ficado muito surpreendidos ao verem uma carruagem parar junto do passeio! comentou Sir Walter. - A viúva de Sir Henry Russell, é verdade, não tem títulos que distingam o seu brasão; mas, mesmo assim, é uma bela equipagem, e, sem dúvida, bem digna de transportar a Menina Elliot. Uma Sra. Smith viúva, alojada em Westgate Buildings! Uma pobre viúva, que mal consegue sobreviver, entre trinta e quarenta anos... uma simples Sra. Smith, uma Sra. Smith vulgar, escolhida entre toda a gente e todos os nomes do mundo, para amiga da Menina Anne Elliot, e ser por ela preferida aos seus próprios familiares pertencentes à nobreza de Inglaterra e da Irlanda! Sra. Smith, que nome! A Sra. Clay, que estivera presente enquanto tudo isto se passava, achou agora aconselhável sair da sala, e Anne podia ter dito muita coisa e desejou dizer alguma coisa, em defesa dos direitos da sua amiga, não muito diferentes dos deles, mas o respeito que tinha pelo pai impediu-a de o fazer. Não deu resposta. Ela deixou que ele se recordasse, por si próprio, de que a Sra. Smith não era a única viúva em Bath, entre 30 e 40 anos, com pouco dinheiro e sem qualquer apelido nobre. Anne manteve o seu compromisso; os outros mantiveram os deles, e claro que, na manhã seguinte, ela ficou a saber que tinham passado um serão delicioso. Ela fora a única do grupo que estivera ausente; pois Sir Walter e Elizabeth tinham estado às ordens de Sua Senhoria e tinham ficado encarregados por ela de trazer outras pessoas, e eles tinham-se dado ao incômodo de convidar Lady Russell e o Sr. Elliot; o Sr. Elliot tinha feito questão de deixar o coronel Wallis cedo, e Lady Russell tinha alterado todos os seus compromissos dessa noite para fazer companhia a Lady Dalrymple.

Anne ouviu de Lady Russell toda a história do que se passara nesse serão. Para ela, o mais interessante foi a sua amiga e o Sr. Elliot terem falado muito dela, terem desejado que ela estivesse presente, lamentado que não estivesse e, ao mesmo tempo, elogiado o motivo da sua ausência. As suas bondosas visitas a uma antiga colega, doente e diminuída, pareciam ter encantado o Sr. Elliot. Ele achava que ela era uma jovem extraordinária; pelo seu temperamento, modos, inteligência, era um modelo de perfeição feminina. Ele conseguia até mesmo ultrapassar Lady Russell na afirmação dos seus méritos; e Anne não conseguia escutar o que a amiga lhe dizia, não lhe era possível saber-se tida em tão elevada consideração por um homem sensato, sem experimentar as agradáveis sensações que a sua amiga pretendia provocar.

Lady Russell estava já perfeitamente segura da sua opinião em relação ao Sr. Elliot. Ela estava tão convencida de que ele pretendia conquistar Anne como de a merecer; e começava a calcular o número de semanas que lhe faltavam para se libertar das últimas restrições da viuvez, quando ficaria livre para exercer os seus poderes de sedução. Ela não queria comunicar a Anne metade da certeza que tinha sobre o assunto e arriscava-se apenas a fazer algumas insinuações sobre o que aconteceria no futuro, sobre um possível afeto por parte dele, sobre como essa aliança seria desejável, se esse afeto fosse real e correspondido.

Anne escutou-a e não emitiu qualquer exclamação peremptória. Limitou-se a sorrir, a corar e a abanar ligeiramente a cabeça.

Eu não sou casamenteira, como bem sabes - disse Lady Russell -, pois conheço muito bem a incerteza de todos os acontecimentos e projetos humanos. Só quero dizer que, se daqui a algum tempo o Sr. Elliot te fizesse a corte e tu estivesses disposta a aceitá-lo, penso que haveria todas as possibilidades de serem felizes juntos. Uma união que todos considerariam extremamente apropriada... mas que eu penso que seria uma união muito feliz.

O Sr. Elliot é um homem extremamente simpático e, em muitos aspectos, tenho muita consideração por ele - disse Anne -, mas não estaríamos bem um para o outro. Lady Russell não comentou estas palavras, limitando-se a dizer:

Confesso que gostaria de poder considerar-te a futura senhora de Kellynch, a futura Lady Elliot... que me seria extremamente grato ver-te, no futuro, ocupar o lugar da tua querida mãe, sucedendo-lhe em todos os seus direitos, em toda a sua popularidade, bem como em todas as suas virtudes. Tu és tal e qual a tua mãe no aspecto e no temperamento e, se me é permitido imaginar- te como ela era, em posição, em nome, no lar, presidindo e abençoando o mesmo local, e só superior a ela pelo fato de seres mais estimada! Minha querida Anne, isso dar-me-ia mais alegria do que geralmente se sente na minha idade.

Anne viu-se obrigada a voltar-se, levantar-se e dirigir-se a uma mesa distante, e, inclinando- se para fingir que estava ocupada, tentou dominar as sensações que esta imagem provocava. Durante alguns momentos, a sua imaginação e o seu coração sentiram-se seduzidos. A idéia de se tornar o que a mãe fora; de voltar a Kellynch, de lhe chamar novamente o seu lar, o seu lar para sempre, possuía um encanto a que ela não conseguia, de imediato, resistir.

Lady Russell não disse mais nada, disposta a deixar que o assunto seguisse o seu curso normal; ela acreditava que, se o Sr. Elliot pudesse, nesse momento, pleitearia a sua causa... Em suma, ela acreditava no que Anne não acreditava. Essa mesma imagem do Sr. Elliot a defender a sua causa devolveu a compostura a Anne. O encanto de Kellynch e de Lady Elliot desvaneceu-se completamente. Ela nunca poderia aceitá-lo. E não era só porque os seus sentimentos se opunham a que ela se casasse com qualquer homem a não ser um; o seu raciocínio, após uma séria ponderação das possibilidades de tal acontecimento, também era contra o Sr. Elliot. Embora se conhecessem apenas há um mês, ela achava que já o conhecia bem. Que ele era um homem sensato, simpático, bem-falante, que emitia opiniões sólidas e parecia julgar com correção e como homem de princípios - isso era bastante óbvio. Ele, certamente, sabia o que estava certo, e ela não conseguia identificar um só princípio moral que ele transgredisse claramente; mas, mesmo assim, ela hesitaria em colocar as mãos no fogo pela sua conduta. Ela desconfiava do passado, se não do presente. Os nomes de antigos companheiros que eram ocasionalmente mencionados, as alusões a ocupações e hábitos passados sugeriam suspeitas que não abonavam a favor do que ele fora. Ela via que houvera maus hábitos; que viajar ao domingo tinha sido uma coisa habitual; que houvera um período na sua vida (e, provavelmente, não fora um período curto) em que ele fora, pelo menos, indiferente a todos os assuntos sérios; e, embora a sua maneira de pensar pudesse agora ser diferente, quem poderia garantir a veracidade dos verdadeiros sentimentos de um homem esperto e cauteloso que amadurecera o suficiente para apreciar um caráter leal?

Como se poderia ter a certeza de que a sua alma estava verdadeiramente purificada? O Sr. Elliot era racional, discreto, educado - mas não era franco. Nunca havia uma explosão de sentimentos, nenhuma indignação ou deleite acalorados perante o mal ou o bem dos outros. Para ela, isto era decididamente um defeito. As suas primeiras impressões eram imutáveis. Ela gostava, acima de tudo, de pessoas francas, sinceras e impulsivas. O ardor e o entusiasmo ainda a cativavam. Ela achava que podia confiar mais na sinceridade dos que por vezes diziam uma coisa imprudente e precipitada do que na daqueles que nunca perdiam a presença de espírito ou cuja língua nunca tinha um deslize. O Sr. Elliot era demasiado simpático em relação a todos. Eram várias as maneiras de ser em casa do pai dela, e ele agradava a todas elas. Ele suportava tudo com a maior complacência, dava-se demasiado bem com toda a gente. Ele falara-lhe da Sra. Clay com alguma franqueza; parecera que vira claramente o que a Sra. Clay pretendia, que a desprezava; no entanto, a Sra. Clay achava-o tão simpático como toda a gente. Lady Russell via menos ou mais do que a sua jovem amiga, pois não via nada que provocasse desconfiança. Ela não conseguia imaginar um homem mais ideal do que o Sr. Elliot; nem sensação alguma lhe era mais agradável do que a esperança de o ver receber a mão da sua querida Anne na igreja de Kellynch, no Outono seguinte.


Capítulo Seis (Dezoito)

Era o início de Fevereiro; e Anne, encontrando-se já há um mês em Bath, estava ansiosa por ter notícias de Uppercross e de Lyme. Ela queria saber muito mais do que Mary lhe comunicava. HÁ três semanas que não tinha notícias. A única coisa que sabia era que Henrietta estava de novo em casa; e que Louisa, embora considerada em rápida convalescença, ainda se encontrava em Lyme; e, um serão, ela estava a pensar muito neles quando uma carta de Mary, muito mais espessa do que de costume, lhe foi entregue, com os cumprimentos do almirante e da Sra. Croft, o que lhe causou grande surpresa e prazer. Os Croft deviam estar em Bath! Uma circunstância que lhe interessava. Eles eram pessoas de quem ela muito naturalmente gostava.

Que se passa? - exclamou Sir Walter.

Os Croft chegaram a Bath? Os Croft que alugaram Kellynch? Que foi que eles te trouxeram?

Uma carta do chalé de Uppercross.

Oh! Essas cartas são passaportes muito convenientes. Asseguram uma apresentação. De qualquer modo, eu iria visitar o almirante Croft. Eu conheço as minhas obrigações para com o meu inquilino. Anne não conseguiu prestar mais atenção; nem sequer poderia dizer se o rosto do pobre almirante escapara aos comentários do pai; a carta absorveu-a. Tinha sido começada alguns dias antes.


1 de Fevereiro


Minha querida Anne, Não te peço desculpa pelo meu silêncio porque sei como as pessoas se interessam pouco por cartas quando se encontram num Lugar como Bath. Deves sentir-te demasiado feliz para te importares com Uppercross, que, como tu bem sabes, tem muito pouco sobre o qual se possa escrever. Tivemos um Natal muito aborrecido; o Sr. e a Sra. Musgrove não deram um único jantar durante as férias. Eu não considero os Hayter como gente importante. As férias, porém, chegaram finalmente ao fim: acho que as crianças nunca tiveram umas férias tão compridas. Eu, certamente, não tive. Foram-se todos embora ontem, com exceção dos pequenos Harville; ficarás surpreendida quando souberes que eles ainda não foram para casa. A Sra. HarvilLe deve ser uma mãe estranha, para estar tanto tempo separada deles. Eu não compreendo. Na minha opinião, não são crianças nada simpáticas; mas a Sar. Musgrove parece gostar tanto

deles, se não mais, do que dos netos. Que tempo terrível temos tido! O mau tempo talvez não se faça sentir em Bath, com as vossas ruas bem pavimentadas; mas no campo traz conseqüências desagradáveis.

Não recebi uma única visita desde a segunda semana de Janeiro, a não ser a de Charles Hayter, que tem aparecido muito mais vezes do que é desejado. Aqui para nós, acho que foi pena Henrietta não ter ficado em Lyme tanto tempo como Louisa; isso tê-la-ia mantido um pouco afastada dele. A carruagem partiu hoje, para trazer Louisa e os Harville amanha. Musgrove receia que ela se sinta fatigada da viagem, o que não é muito provável, tendo em conta os cuidados que terão com ela; ser-me-ia muito mais conveniente jantar lá amanhã. Ainda bem que achas o Sr. Elliot tão simpático; também gostaria de o conhecer; mas eu tenho o meu azar habitual, encontro-me sempre longe quando qualquer coisa boa acontece; sou sempre a última da família a ser convidada.

Há que tempos que a Sra. Clay está junto de Elizabeth! Ela não tenciona ir-se embora? Mas, mesmo que o quarto ficasse livre, nós talvez não fôssemos convidados. Diz-me o que pensas disto. Não estou a contar que os meus filhos sejam convidados. Posso muito bem deixá-los na Casa Grande durante um mês ou seis semanas. Ouvi dizer agora mesmo que os Croft vão para Bath dentro de pouco tempo; eles acham que o almirante sofre um pouco de gota. Charles ouviu dizê-lo por acaso; eles não tiveram a delicadeza de nos comunicar nem de se oferecerem para levar qualquer coisa. Acho que, como vizinhos, eles não têm melhorado absolutamente nada. Nunca os vemos, e isto é realmente um caso de flagrante falta de atenção. Charles associa-se aos meus cumprimentos.

Tua afeiçoada Mary M.


Lamento comunicar-te que me encontro longe de estar bem; Jemina acabou de me informar que o carniceiro lhe disse que andam muitas anginas por aí. Claro que também as vou apanhar; e as minhas anginas, tu sabes, são piores do que as de qualquer outra pessoa. Assim terminava a primeira parte, que fora posteriormente colocada num sobrescrito contendo outra de tamanho quase idêntico.

Mantive a minha carta aberta para te poder dizer como Louisa suportou a viagem, e agora sinto-me extremamente satisfeita por o ter feito, pois tenho muito a acrescentar. Em primeiro Lugar, recebi ontem um bilhete da Sra. Croft, oferecendo-se para te levar qualquer coisa; um bilhete muito simpático e amável, dirigido a mim, como deve ser; poderei, assim, alongar a minha carta tanto quanto quiser. O almirante não parece muito doente, e espero sinceramente que Bath lhe seja tão benéfica quanto ele pretende. Ficarei muito satisfeita em os ver de volta. A nossa vizinhança não pode dispensar uma família tão agradável.

Mas agora a respeito de Louisa. Tenho algo a comunicar-te que certamente te vai causar admiração. Ela e os Harville chegaram na terça-feira, após uma boa viagem, e à noite fomos saber como ela estava, e ficámos surpreendidos por não vermos o comandante Benwick, pois ele também tinha sido convidado, juntamente com os Harville, e qual achas que foi o motivo? Nem mais nem menos do que o fato de ele estar apaixonado por Louisa e preferir não vir a Uppercross antes de ter uma resposta do Sr. Musgrove; pois ficou tudo assente entre os dois antes de ela se ir embora, e ele escrevera ao pai dela por intermédio do comandante Harville. É verdade, dou-te a minha palavra de honra. Não estás espantada? Eu, pelo menos, ficarei surpreendida se me disseres que alguma vez imaginaste uma coisa dessas, pois eu nunca o fiz.

A Sra. Musgrove afirma solenemente que não sabia nada do assunto. Estamos todos muito satisfeitos, porém; pois, embora não seja a mesma coisa que ela casar com o comandante Wentworth, é infinitamente melhor do que CharLes Hayter; e o Sr. Musgrove já respondeu a dar o seu consentimento, e o comandante Benwick é esperado hoje. A Sra. Harville diz que o marido sofre muito por causa da irmã, mas, no entanto, gostam ambos muito de Louisa. Na verdade, eu e a Sra. HarviLLe concordamos que gostamos mais dela por termos tomado conta dela.

Charles pergunta o que dirá o comandante Wentworth; mas, se bem te Lembras, eu nunca o achei afeiçoado a Louisa; nunca vi nada disso. E isto é o fim, como vês, da suposição de que o comandante Benwick era teu admirador. É incompreensível como CharLes pode ter imaginado uma coisa dessas. Espero que agora ele seja mais simpático.

Certamente não é um grande partido para Louisa Musgrove; mas é um milhão de vezes melhor do que casar com um dos Hayter. Mary não precisava de recear que a irmã estivesse de qualquer modo preparada para a notícia. Ela nunca ficara mais espantada na vida. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! Era demasiado espantoso para poder acreditar; e foi com grande esforço que ela conseguiu continuar na sala, mantendo um ar calmo, e responder às perguntas do momento. Felizmente para ela, não houve muitas.

Sir Walter queria saber se os Croft viajavam numa carruagem de quatro cavalos e se era provável que estivessem instalados numa parte de Bath em que pudessem ser visitados por ele e pela Menina Elliot. Para além disso, sentia pouca curiosidade.

Como está Mary? - disse Elizabeth; e, sem esperar por uma resposta, acrescentou: - E que trouxe os Croft a Bath? - Vieram por causa do almirante. Pensam que ele tem gota.

Com gota e decrépito? - disse Sir Walter. - Pobre velho.

Eles conhecem alguém aqui? - perguntou Elizabeth.

Não sei; mas não me parece que, com a idade do almirante Croft, e com a sua profissão, ele não conheça muita gente num local destes.

Desconfio - disse Sir Walter friamente - de que o almirante Croft é mais conhecido em Bath como inquilino do Solar de Kellynch. Elizabeth, achas que poderemos apresentá-lo e à mulher em Laura Place?

Oh!, não, penso que não. Relacionados, como nós estamos, com Lady Dalrymple, devemos ter muito cuidado em não a embaraçar com conhecimentos que ela possa não aprovar. Se não tivéssemos relações de parentesco, isso não seria importante; mas, como primos, ela teria escrúpulos em recusar qualquer proposta nossa. É melhor deixarmos que os Croft encontrem o seu próprio nível. Há vários homens de aspecto estranho por aí, que, segundo me dizem, são marinheiros. Os Croft relacionar-se-ão com eles.

Este foi o interesse que Sir Walter e Elizabeth manifestaram quanto à carta; depois de a Sra. Clay ter pago o seu tributo de um pouco mais de atenção, com uma pergunta sobre a Sra. Charles Musgrove e os seus belos rapazinhos, Anne ficou livre. Já no seu quarto, tentou compreender a situação. Charles bem podia interrogar-se sobre o que o comandante Wentworth sentiria! Talvez ele tivesse abandonado o campo, tivesse desistido de Louisa, tivesse deixado de a amar, tivesse descoberto que não a amava. Ela não conseguia suportar a idéia de traição ou leviandade, ou de algo semelhante a má vontade entre ele e o amigo. Não podia suportar a idéia de que uma amizade como a deles pudesse ser destruída injustamente. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! A alegre e faladora Louisa Musgrove e o comandante Benwick, triste, pensativo, sensível e amante da leitura, pareciam, cada um deles, ser tudo o que não se adequava ao outro. As suas mentalidades eram tão diferentes! Onde teria estado a atração?

A resposta surgiu-lhe pouco depois. Fora a situação. Tinham estado juntos durante várias semanas; tinham vivido no mesmo grupo familiar; desde que Henrietta partira, eles passaram a contar quase exclusivamente um com o outro, e Louisa, convalescente, estava bastante atraente, e o comandante Benwick não era inconsolável. Esse era um ponto de que Anne não conseguira deixar de duvidar antes e, em vez de chegar à mesma conclusão que Mary a respeito do atual curso de acontecimentos, estes serviram apenas para confirmar a idéia de que ele tinha sentido algum assomo de ternura para com ela. Ela não tencionava, porém, lisonjear a sua vaidade mais do que Mary teria permitido.

Estava convencida de que qualquer mulher toleravelmente agradável que o tivesse escutado e parecesse sentir algo por ele teria recebido a mesma atenção. Ele tinha um coração afetuoso. Ele precisava de amar alguém. Ela não via qualquer motivo para que não fossem felizes: para começar, Louisa possuía um grande entusiasmo pela Marinha, e em breve ficariam muito parecidos. Ele tornar-se-ia mais alegre, e ela aprenderia a gostar de Scott e de Lorde Byron; não, isso provavelmente já tinha acontecido; claro que se tinham apaixonado através da poesia.

A idéia de Louisa Musgrove transformada numa pessoa de gostos literários e meditações sentimentais era divertida, mas ela não duvidava de que assim fosse. Era possível que o dia em Lyme, a queda do Cobb, tivesse afetado a sua saúde, os seus nervos, a sua coragem, a sua personalidade, até ao fim da sua vida, tanto como parecia ter afetado o seu destino. A conclusão final era que, se a mulher que tinha sido sensível aos méritos do comandante Wentworth podia preferir outro homem, não havia nada no noivado que pudesse provocar um espanto duradouro; e, se o comandante Wentworth não perdera um amigo, não havia nada a lamentar.

Não, não era o pesar que fazia o coração de Anne bater contra a sua vontade e lhe fazia corar o rosto quando pensava que o comandante Wentworth estava livre. Ela sentia vergonha de investigar alguns dos seus sentimentos. Estes pareciam-se demasiado com a alegria, uma alegria louca! Ela ansiava por ver os Croft, mas, quando o encontro se realizou, era evidente que eles ainda não tinham ouvido quaisquer rumores sobre o assunto. A visita de cerimônia foi feita e retribuída, e Louisa Musgrove foi referida, bem como o comandante Benwick, sem sequer um esboço de sorriso.

Os Croft tinham alugado uma casa em Gay Street, inteiramente do agrado de Sir Walter. Ele não se sentiu absolutamente nada envergonhado por os conhecer e, na realidade, falava muito mais do almirante do que o almirante pensava ou falava dele.

Os Croft conheciam tantas pessoas em Bath quanto desejavam, e consideravam as suas relações com os Elliot uma mera formalidade que não lhes iria provocar qualquer prazer. Tinham trazido do campo o hábito de andarem sempre juntos. Ele recebera ordens para andar a pé, a fim de evitar a gota, e a Sra. Croft parecia partilhar tudo com ele, fartando-se de andar, para que ele melhorasse. Anne via-os em todo o lado para onde ia. Lady Russell levava-a a passear na carruagem quase todas as manhãs, e ela pensava sempre neles e via-os sempre.

Conhecendo os sentimentos deles como ela conhecia, eles formavam, a seus olhos, um atraente quadro de felicidade. Ela ficava sempre a olhar para eles o mais demoradamente que conseguia; ficava encantada a imaginar que sabia do que eles conversavam enquanto caminhavam sozinhos e felizes; ou igualmente encantada ao ver o almirante apertar vigorosamente a mão quando encontrava um velho amigo, e observar a vivacidade da conversa quando encontrava ocasionalmente um pequeno grupo da Marinha. A Sra. Croft parecia tão inteligente e atenta como qualquer dos oficiais à sua volta.

Anne estava demasiado ocupada com Lady Russell para andar muito a pé; mas uma manhã, cerca de uma semana ou dez dias depois da chegada dos Croft, deixou a amiga, ou melhor, a carruagem da amiga, na parte inferior da cidade e voltou sozinha para Camden Place; ao subir Milsom Street, teve a boa sorte de encontrar o almirante. Ele estava sozinho, junto da montra de uma loja de estampas, com as mãos atrás das costas, a olhar atentamente para um quadro, e ela não só podia ter passado por ele sem que ele a visse mas viu-se inclusivamente obrigada a tocar- lhe e a dirigir-lhe a palavra para atrair a sua atenção. Quando, porém, ele finalmente reparou nela e a cumprimentou, isto foi feito com a sua franqueza e bom humor habituais.

Ah! É a menina? Obrigado, obrigado. Isto é tratar-me como amigo. Aqui estou eu, como vê, a olhar para um quadro. Nunca consigo passar por esta loja sem parar. Que coisa esta, a fingir que é um barco. Olhe bem. Já alguma vez viu algo parecido? Que pessoas estranhas os pintores devem ser, para pensar que alguém arriscaria a vida numa casca de noz daquelas. E, no entanto, aqui estão dois cavalheiros dentro dele, perfeitamente à vontade e a olhar em redor para os rochedos e montanhas, como se não fossem afundar-se no momento seguinte, que é sem dúvida o que vai acontecer. Gostaria de saber onde aquele barco foi construído. - Ele riu-se com vontade. - Agora, aonde vai? Posso acompanhá-la ou ir por si a algum lado? Posso ser-lhe útil nalguma coisa?

Não, obrigada, a não ser que me queira dar o prazer da sua companhia durante o pequeno percurso em que seguimos pela mesma rua. Eu vou para casa.

Irei sim, com todo o gosto, e até mais longe. Sim, sim, vamos dar um agradável passeio juntos; e tenho uma coisa para lhe contar enquanto formos andando. Tome o meu braço; assim mesmo; não me sinto bem se não tiver uma senhora apoiada em mim. Meu Deus! Que barco! - disse ele, lançando um último olhar ao quadro, antes de começarem a andar.

Disse que tinha algo para me contar, sir?

Tenho, sim. Daqui a pouco. Mas vem ali um amigo meu, o comandante Brigden; mas vou só dizer-lhe -Como está?- quando passarmos por ele. Não vou parar.

-Como está?- Brigden ficou de olhos arregalados por me ver acompanhado por alguém que não é a minha mulher. Ela, coitada, ficou presa por causa de uma perna. Tem uma bolha do tamanho de uma moeda de três xelins num dos calcanhares. Se olhar para o outro lado da rua, verá o almirante Brand, que vem aí com o irmão. Uns sujeitos miseráveis, os dois. Ainda bem que eles não vêm deste lado do caminho. Sophy não os suporta. Eles pregaram-me uma vez uma partida miserável... levaram-me alguns dos meus melhores homens. Eu hei-de contar-lhe a história noutra altura. Ali vem o velho Sir Archibald com o neto. Repare, ele viu-nos; fez o gesto de lhe beijar a mão; pensa que é a minha mulher. Ah! A paz chegou demasiado cedo para aquele aspirante. Pobre Sir Archibald!

-Gosta de Bath, Menina Elliot? Nós gostamos muito. Estamos sempre a encontrar amigos ; as ruas estão cheias deles todas as manhãs; temos sempre muito que conversar; depois afastamo-nos deles, fechamo-nos em casa, puxamos as cadeiras e sentimo-nos tão bem como em Kellynch, ou como nos sentíamos antigamente em North Yarmouth e Deal. Não gostamos menos da casa aqui, garanto-lhe, por ela nos lembrar a primeira que tivemos em North Yarmouth. O vento sopra através de um dos armários da mesma maneira.

Depois de andarem mais um pouco, Anne atreveu-se a insistir de novo no que ele tinha a comunicar-lhe. Ela tivera esperança de que a curiosidade seria satisfeita logo que saíssem de Milsom Street, mas o almirante tinha decidido não começar antes de chegarem à zona mais ampla e tranquila de Belmont e, como ela não era, de fato, a Sra. Croft, tinha de lhe fazer a vontade. Assim que começaram a subir Belmont, ele começou:

Bem, agora vai ouvir uma coisa que a vai surpreender. Mas primeiro diga-me o nome da jovem de que lhe vou falar. a jovem que conhece, com a qual nos temos preocupado tanto. A Menina Musgrove, a quem tudo isto aconteceu. O nome dela... esqueço-me sempre do nome dela.

Anne tivera vergonha de mostrar que compreendera tão depressa como realmente compreendeu; mas agora podia sugerir, com segurança, o nome Louisa.

Sim, sim, Menina Louisa Musgrove, é esse o nome. Quem me dera que as jovens não tivessem tantos nomes bonitos. Se fossem todas Sophy, ou algo semelhante, eu nunca me esqueceria. Bem, esta Menina Louisa, pensávamos nós, ia casar-se com Frederick. Ele cortejou-a durante semanas seguidas. A única coisa que perguntávamos a nós próprios era de que é que eles estavam à espera, até o acidente de Lyme acontecer; nessa altura, era óbvio que tinham de esperar até o cérebro dela se restabelecer. Mas, mesmo assim, passava-se qualquer coisa estranha. Em vez de ficar em Lyme, ele partiu para Plymouth, depois foi visitar Edward. Quando voltámos de Minehead, ele tinha ido para casa de Edward e lá está desde essa altura. Não o vemos desde Novembro. Nem mesmo Sophy consegue compreender. Mas, agora, o assunto deu uma reviravolta muito estranha; pois esta jovem, a mesma Menina Musgrove, em vez de se ir casar com Frederick, vai casar-se com James Benwick. A menina conhece James Benwick.

Sim, conheço o comandante Benwick, embora não muito bem.

Bem, ela vai casar-se com ele. Provavelmente, já se casaram, pois não sei de que hão-de estar à espera.

Eu achei o comandante Benwick um jovem muito simpático disse Anne -, e creio que possui um excelente caráter.

Oh, sim, sim, não há nada a dizer contra James Benwick. Ele é apenas comandante, é verdade, promovido no Verão passado, e esta é uma má altura para progredir, mas, que eu saiba, não tem nenhum outro defeito. Um sujeito excelente, de bom coração, garanto-lhe; um oficial muito ativo e zeloso, mais do que se poderia pensar, pois os seus modos suaves são muito enganadores.

Na realidade, engana-se, sir. Os modos do comandante Benwick nunca me levariam a pensar que lhe faltava energia. Eu achei-os particularmente amáveis, e posso garantir que, de um modo geral, eles agradarão a toda a gente.

Bem, bem, as senhoras são os melhores juízes, mas, para mim, James Benwick é um pouco demasiado tímido; e, embora muito provavelmente estejamos a ser parciais, não consigo deixar de pensar que Frederick tem modos mais agradáveis do que ele. Há algo em Frederick de que gostamos mais. Anne ficou atrapalhada. Ela tencionara apenas contrariar a idéia de que a energia e a gentileza eram incompatíveis e não retratar os modos do comandante Benwick como se fossem os melhores possíveis, e, após uma ligeira hesitação, começou a dizer: -Eu não estava a comparar os dois amigos- , mas o almirante interrompeu-a:

E isso é realmente verdade. Não é apenas um mexerico. Foi o próprio Frederick que nos contou. A irmã recebeu ontem uma carta dele em que nos fala do assunto; ele acabara de saber através de uma carta de Harville, escrita no mesmo local, em Uppercross. Imagino que estejam todos em Uppercross.

Esta foi uma oportunidade a que Anne não conseguiu resistir, pelo que disse:

Eu espero, senhor almirante, que não haja nada no estilo da carta que vos preocupe, a si e à Sra. Croft. No Outono passado, parecia, realmente, existir uma relação amorosa entre ele e Louisa Musgrove; mas faço votos para que a mesma tenha morrido para ambas as partes, e sem violência. Espero que essa carta não reflita o humor de um homem atraiçoado.

-Absolutamente nada, absolutamente nada; do princípio ao fim, não existe uma única praga ou lamento. Anne baixou a cabeça para esconder um sorriso.

Não, não; Frederick não é homem de queixas nem de lamúrias; é demasiado corajoso para isso. Se a menina gosta mais de outro homem, é justo que fique com ele.

Sem dúvida. Mas o que eu quero dizer é que espero que não haja nada no estilo da carta do comandante Wentworth que vos leve a supor que ele se considere traído pelo amigo, que se possa deduzir isso, compreende, sem ser afirmado explicitamente. Eu teria muita pena se uma amizade como a que existia entre ele e o comandante Benwick fosse destruída, ou, até mesmo, apenas prejudicada, por uma circunstância desta natureza.

Sim, sim, eu compreendo-a. Mas na carta não existe absolutamente nada dessa natureza. Ele não faz a mínima acusação a Benwick; nem sequer diz -Estou admirado, tenho motivo para estar admirado-. Não, pelo seu modo de escrever, não se imaginaria que ele alguma vez tivesse querido essa Menina... como é que ela se chama?... para si próprio. Ele fez, muito generosamente, votos para que sejam felizes, e creio que não existe o mínimo rancor nisso.

 

Anne não ficou plenamente convencida do que o almirante pretendia dizer, mas não valia a pena insistir mais. Limitou-se, assim, aos comentários normais ou a escutar em silêncio, e o almirante levou a sua avante.

Pobre Frederick! - disse ele, por fim. - Agora tem de começar tudo de novo com outra pessoa. Eu acho que temos de o trazer para Bath. Sophy tem de lhe escrever a pedir-lhe que venha. Aqui há bastantes meninas bonitas, tenho a certeza. Não valeria a pena voltar para Uppercross, pois aquela outra Menina Musgrove, segundo soube, está prometida ao primo, o jovem cura. Não acha, Menina Elliot, que é melhor tentar trazê-lo para Bath?


Capítulo Sete (Dezenove)

Enquanto o almirante Croft passeava com Anne e manifestava o seu desejo de trazer o comandante Wentworth para Bath, o comandante Wentworth já se encontrava a caminho. Chegou antes de a Sra. Croft ter escrito; na vez seguinte em que Anne saiu, ela viu-o. O Sr. Elliot acompanhava as suas duas primas e a Sra. Clay. Estavam na Milsom Street.

Começou a chover, não muito, mas o suficiente para que as senhoras desejassem abrigar-se e o bastante para que a Menina Elliot desejasse ser levada a casa na carruagem de Lady Dalrymple, que se via a uma curta distância; assim, ela, Anne e a Sra. Clay viraram para a Molland, enquanto o Sr. Elliot entrou na casa de Lady Dalrymple, para pedir auxílio. Ele reuniu-se-lhes pouco depois, com êxito, claro; Lady Dalrymple teria muito gosto em levá-los a casa, e chamá-los-ia dentro de alguns minutos.

A carruagem de Sua Senhoria era uma caleche e não levava mais de quatro pessoas confortavelmente. A Menina Carteret estava com a mãe; como consequência, não era razoável esperar acomodação para as três senhoras de Camden Place. Não havia qualquer dúvida quanto à Menina Elliot. Fosse quem fosse que devesse sofrer desconforto, ela não deveria sofrer nenhum, mas a questão de cortesia entre as outras duas levou algum tempo a decidir.

Chovia muito pouco, e Anne era sincera ao dizer que preferia ir a pé com o Sr. Elliot. Mas a chuva também era pouca para a Sra. Clay; ela nem a sentiria, e as suas botas eram tão grossas, muito mais grossas que as de Anne - e, em suma, a sua amabilidade tornava-a tão ansiosa por ir a pé com o Sr. Elliot como Anne, e a questão foi discutida entre elas com uma generosidade tão delicada e tão firme que os outros se viram obrigados a decidir por elas. A Menina Elliot insistiu que a Sra. Clay já estava um pouco constipada, e o Sr. Elliot decidiu, quando lhe foi perguntada a opinião, que as botas da sua prima Anne eram as mais resistentes. Foi, assim, decidido que a Sra. Clay faria parte do grupo que iria na carruagem; e tinham chegado a este ponto quando Anne, que estava sentada junto da janela, viu, decidida e distintamente, o comandante Wentworth descer a rua.

O seu sobressalto foi perceptível apenas para si própria; mas sentiu de imediato que era a maior, a mais irresponsável e mais absurda tola do mundo! Durante alguns minutos, não viu nada à sua frente. Estava tudo confuso. Sentia-se perdida; e, quando conseguiu dominar-se, viu que os outros ainda estavam à espera da carruagem e que o Sr. Elliot (sempre atencioso) tinha partido para a Union Street para fazer um recado à Sra. Clay. Sentiu um grande desejo de ir até à porta da rua; queria ver se estava a chover. Por que desconfiava de ter outro motivo? O comandante Wentworth já devia ter passado.

Levantou-se, decidida a ir; metade dela não iria ser sempre mais sensata que a outra, nem iria sempre desconfiar que a outra era pior do que realmente era. Iria ver se chovia.

Voltou para trás, porém, no momento seguinte, quando o próprio comandante Wentworth entrou, no meio de um grupo de senhoras e cavalheiros, evidentemente seus conhecidos, a quem ele se devia ter juntado um pouco abaixo da Milsom Street. Ao vê-la, ele ficou mais obviamente enleado e confuso do que ela alguma vez reparara; ficou muito corado. Pela primeira vez desde que se tinham voltado a encontrar, ela sentiu que era ela quem evidenciava menos emoção. Tivera a vantagem de ter tido alguns momentos para se preparar. Todos os poderosos, ofuscantes e desconcertantes efeitos da enorme surpresa já se tinham desvanecido. Mesmo assim, porém, sentiu-se dominada pela emoção! Era um misto de agitação, dor, prazer, algo entre a alegria e a tristeza.

Ele falou-lhe, depois afastou-se. Os seus modos denotavam embaraço. Ela não podia chamar- lhe frieza ou afeto, nem qualquer outra coisa a não ser embaraço. Depois de um pequeno intervalo, porém, ele dirigiu-se a ela e voltou a falar-lhe. Trocaram perguntas sobre assuntos habituais; nenhum deles, provavelmente, prestou muita atenção ao que ouviu, e Anne continuou a ter a sensação de que ele se sentia muito menos à vontade do que anteriormente. Devido ao fato de estarem juntos tantas vezes, eles tinham aprendido a falar um com o outro com indiferença e calma aparentes; mas agora ele não conseguia fazê-lo. O tempo tinha-o modificado, ou Louisa tinha-o modificado. Parecia ter consciência de que algo se passava.

Ele estava com muito bom aspecto, não parecendo sofrer de qualquer mal físico ou moral; falou de Uppercross e até mesmo de Louisa, e teve mesmo um ar momentâneo de malícia ao falar dela; mas o comandante Wentworth estava embaraçado, pouco à vontade e incapaz de fingir o contrário.

Anne não ficou surpreendida, mas sentiu-se magoada ao ver que Elizabeth o ignorava. Ela reparou que ele vira Elizabeth e que Elizabeth o vira a ele e que, no íntimo, ambos se tinham reconhecido. Estava convencida de que ele desejava e esperava ser reconhecido como um conhecimento antigo, e sentiu-se magoada ao ver a irmã voltar-lhe as costas com frieza.

A carruagem de Lady Dalrymple, cuja demora impacientava Elizabeth, aproximou-se; o criado veio anunciá-la. Estava a começar a chover de novo, e houve uma demora, um alvoroço e uma troca de palavras para que todos os que estavam na loja soubessem que Lady Dalrymple vinha buscar a Menina Elliot. Por fim, a Menina Elliot e a sua amiga, acompanhada apenas pelos criados (pois o primo ainda não voltara), afastaram-se; o comandante Wentworth ficou a observá- las, depois virou-se outra vez para Anne e, pela sua atitude, mais do que por palavras, ofereceu- lhe os seus préstimos.

Muito obrigada - foi a resposta dela -, mas eu não vou com elas. A carruagem não pode levar tanta gente. Vou a pé. Prefiro andar.

Mas está a chover.

Oh! Muito pouco. Nada que me incomode. Após uma breve pausa, ele disse: - Embora só tenha chegado ontem, já me equipei devidamente para Bath, como vê - (apontando para um guarda-chuva novo). Gostaria que fizesse uso dele, se está decidida a ir a pé, embora eu pense que seria mais prudente deixar-me arranjar-lhe uma carruagem.

Ela agradeceu-lhe muito, mas recusou tudo, reafirmando a sua convicção de que a chuva passaria dentro em pouco, e acrescentou:

Só estou à espera do Sr. Elliot. Estou certa de que ele deverá estar a chegar. Mal acabara de dizer estas palavras quando o Sr. Elliot entrou. O comandante Wentworth lembrava-se perfeitamente dele. Não havia qualquer diferença entre ele e o homem que parara no cimo dos degraus em Lyme, admirando Anne quando ela passou por ele, exceto no ar e nos modos de parente e amigo privilegiado.

Ele entrou com um ar ansioso, parecendo não ver e não pensar em nada a não ser nela, pediu desculpa pela demora, lamentou tê-la feito esperar sozinha e mostrou-se impaciente por acompanhá-la, antes que a chuva aumentasse; e, no minuto seguinte, saíram juntos, de braço dado, e, ao afastar-se, ela apenas teve tempo de lançar um olhar meigo e embaraçado e de dizer:

Um muito bom dia!

Assim que eles se afastaram, as senhoras do grupo do comandante Wentworth começaram a falar deles.

O Sr. Elliot não desgosta da prima, segundo me parece.

Oh!, não, isso é bastante óbvio. É possível adivinhar o que vai acontecer ali. Ele está sempre ao pé deles; vive praticamente com a família, creio. Que homem tão atraente!

Sim, e a Menina Atkinson, que jantou com ele uma vez em casa dos Wallisse, diz que ele é o homem mais simpático que ela já conheceu.

Penso que Anne Elliot é bonita; muito bonita mesmo, quando se olha bem para ela. Bem sei que essa não é a opinião geral, mas confesso que a admiro mais do que à irmã.

Oh! Eu também.

E eu também. Não há qualquer comparação. Mas os homens são todos loucos pela Menina Elliot. Anne é demasiado delicada para eles.

Anne ter-se-ia sentido particularmente grata ao primo se este a tivesse acompanhado até Camden Place sem dizer uma palavra. Ela nunca sentira tanta dificuldade em escutá-lo, embora a sua solicitude e atenção fossem inexcedíveis, e embora os assuntos fossem os que lhe eram mais interessantes elogios calorosos e justos a Lady Russell e insinuações muito bem observadas em relação à Sra. Clay. Mas agora ela só conseguia pensar no comandante Wentworth. Não conseguia compreender os seus sentimentos atuais, se ele estava a sofrer muito com a desilusão ou não; e, até chegar a uma conclusão, não conseguiria ter sossego. Esperava, com o tempo, recuperar o bom senso e o juízo; mas, infelizmente, tinha de confessar a si própria que ainda não possuía qualquer bom senso.

Outra questão muito importante para ela era saber quanto tempo ele tencionava ficar em Bath; ele não o mencionara, ou ela não se conseguia recordar. Ele podia estar apenas de passagem. Mas era mais provável que tivesse vindo para ficar. Nesse caso, uma vez que toda a gente em Bath se encontrava, Lady Russell, com toda a probabilidade, vê-lo-ia algures. Ela lembrar-se-ia dele? Como se passariam as coisas? Ela já se vira na obrigação de dizer a Lady Russell que Louisa Musgrove iria casar com o comandante Benwick. Fora-lhe penoso ver a surpresa de Lady Russell; e agora, se por acaso ela se encontrasse na companhia do comandante Wentworth, o seu conhecimento imperfeito do assunto poderia funcionar como mais um preconceito contra ele.

Na manhã seguinte, Anne saiu com a amiga e, durante a primeira hora, tentou incessantemente, de um modo receoso, ver se o via, mas em vão; finalmente, ao voltarem na Pulteney Street, ela avistou-o no passeio do lado direito, a uma distância que lhe permitia ver a maior parte da rua. Havia muitos outros homens à volta dele, muitos grupos que caminhavam na mesma direção, mas não havia dúvida de que era ele. Ela olhou instintivamente para Lady Russell; mas não devido à idéia louca de que esta o fosse reconhecer tão depressa quanto ela. Não, não era de supor que Lady Russell o visse até estarem quase em frente dele. De vez em quando, porém, ela fitava-a com ansiedade; e, quando se aproximou o momento em que devia referir-se a ele, embora sem se atrever a voltar a olhar (pois o seu rosto estava demasiado perturbado), teve plena consciência de que os olhos de Lady Russell se voltaram exatamente na direção dele, de que ela estava a observá-lo atentamente. Ela compreendia perfeitamente o tipo de atração que ele devia constituir para Lady Russell, a dificuldade que ela teria em desviar a vista, o espanto que devia sentir por terem passado por ele oito ou nove anos em climas distantes e no serviço ativo, sem que ele tivesse perdido a elegância. Por fim, Lady Russell inclinou a cabeça para trás. Agora, que iria ela dizer dele?

Deves estar a perguntar a ti própria - disse ela – para que estive tanto tempo a olhar; mas estava à procura de umas cortinas de que Lady Alicia e a Sra. Frankland me falaram ontem à noite. Elas descreveram as cortinas da janela de uma das casas deste lado, desta zona da rua, como sendo as mais bonitas de Bath, mas não conseguiam recordar-se do número exato, e eu tenho estado a tentar descobrir qual delas seria; mas confesso que não consigo ver quaisquer cortinas que correspondam à descrição feita por elas.

Anne suspirou, corou e sorriu de pena e desdém, tanto por si própria como pela amiga. O que mais a aborrecia era que, com toda aquela preocupação e cautela, perdera o momento exato de reparar se ele as vira.

Passaram um dia ou dois, sem que nada acontecesse. O teatro e os salões que ele provavelmente frequentava não eram suficientemente distintos para os Elliot, cujas distrações se limitavam à elegante estupidez de festas privadas, com as quais se encontravam cada vez mais ocupados; e Anne, cansada de uma tal estagnação, aborrecida por não saber de nada e imaginando-se forte porque a sua força não fora posta à prova, aguardava com impaciência a noite do concerto. Era um concerto a favor de uma pessoa protegida de Lady Dalrymple. Claro que eles tinham de ir. Esperava-se que fosse um bom concerto, e o comandante Wentworth gostava muito de música. E imaginava que ficaria satisfeita se conseguisse conversar durante alguns minutos com ele; sentia-se com coragem para lhe dirigir a palavra, se a oportunidade surgisse.

Elizabeth tinha-lhe voltado às costas, Lady Russell não o vira; sentiu os nervos mais fortes devido a estas circunstâncias; ela achava que lhe devia atenção. Tinha prometido à Sra. Smith passar o serão com ela; mas, numa rápida e curta visita, desculpara-se e adiara o serão, com uma promessa mais firme de uma visita mais demorada no dia seguinte. A Sra. Smith concordou, bem- humorada.

Com certeza - disse ela -, mas, quando vier, vai contar-me tudo. Quem faz parte do seu grupo? Anne nomeou-os a todos. A Sra. Smith não respondeu; mas, quando ela ia a sair, disse com uma expressão meio a sério, meio a brincar:

Bem, desejo de todo o coração que o concerto corresponda aos seus desejos; e, se puder vir amanhã, não falte, pois começo a ter o pressentimento de que não vou receber muito mais visitas suas.

Anne ficou surpreendida e atrapalhada, mas, depois de permanecer um momento na expectativa, viu-se obrigada, se bem que isso a contrariasse, a afastar-se rapidamente.


 Leia a PARTE 5 (final) aqui.

Leia aqui meus inúmeros estudos & pesquisas sobre Persuasão, Jane Austen e suas obras.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Persuasão de Jane Austen - parte 3

Persuasão

Jane Austen

Créditos:

Por ocasião da Leitura Coletiva do Clubinho do Canal/Podcast Sincericídio Literário, resolvi postar na íntegra a tradução encontrada no Free-Ebooks.net e Biblioteca Digital

Agradeço a gentileza de postar. 

Direitos autorais são interamente ligados a estas fontes, eu não fiz alterações e/ou correções. Clique nos nomes para ter acesso a essas versões que, infelizmente, não incluem os famosos 'CAPÍTULOS DELETADOS' que foram traduzidos por mim em julho de 2025.

O uso de imagens capas de diversas edições é meramente decorativo.


PARTE 3

leia a parte 2 aqui

Capítulo Onze

Aproximava-se a altura do regresso de Lady Russell; o dia estava já marcado e Anne, decidida a ir reunir-se a ela assim que ela estivesse instalada, sentia-se ansiosa por ir para Kellynch, e começava a pensar em como a mudança iria afetar a sua tranquilidade. Ela iria viver na mesma aldeia que o Comandante Wentworth, a menos de meia milha dele; eles teriam de frequentar a mesma igreja, e teria de haver relações sociais entre as duas famílias. Isto era um contra; mas, por outro lado, ele passava tanto tempo em Uppercross que quase se poderia considerar que, ao sair de lá, ela estava a afastar-se e não a aproximar-se dele. E, feitas as contas, ela achava que, no que dizia respeito a esta interessante questão, ficava a ganhar, o mesmo sucedendo quanto à mudança de companhia, ao trocar a pobre Mary por Lady Russell. Ela desejava que fosse possível evitar ver o comandante Wentworth no Solar.

Aquelas salas tinham presenciado encontros anteriores cuja recordação seria demasiado dolorosa para ela; mas causava-lhe ainda maior ansiedade a possibilidade de Lady Russell e o comandante Wentworth se encontrarem. Eles não gostavam um do outro, e nada de proveitoso resultaria da renovação do seu conhecimento; e Lady Russell, se os visse juntos, talvez pensasse que ele estava demasiado seguro de si, e ela demasiado pouco.

Estas questões constituíam a sua principal preocupação quando pensava que ia deixar Uppercross, onde achava que estivera já tempo suficiente. O fato de ter sido útil ao pequeno Charles conferiria sempre alguma doçura à recordação

da visita de dois meses, mas ele estava a restabelecer-se rapidamente, e não havia qualquer outro motivo que a prendesse ali. A estada, porém, teve um final diferente, como ela nunca imaginara.

O comandante Wentworth, depois de não ter sido visto em Uppercross nem dado notícias durante dois dias, voltou a aparecer e justificou-se, relatando o que o mantivera ausente. Uma carta do seu amigo, o comandante Harville, que lhe chegara finalmente às mãos, dera-lhe conta de que o comandante se instalara com a família em Lyme, para aí passar o Natal; e eles estavam, por conseguinte, sem o saberem, a menos de vinte milhas um do outro. O comandante Harville nunca mais gozara de boa saúde desde que fora gravemente ferido dois anos antes, e o comandante Wentworth estava tão ansioso por voltar a vê-lo que decidira ir imediatamente a Lyme. Estivera lá vinte e quatro horas.

A absolvição foi completa, a sua amizade foi calorosamente homenageada, e foi despertada uma enorme curiosidade a respeito do amigo; e a sua descrição das belas paisagens em redor de Lyme foi escutada com tanto interesse que o resultado foi um enorme desejo de eles conhecerem Lyme e um projeto de um passeio até lá. Os jovens estavam ansiosos por conhecer Lyme.

O comandante Wentworth falou em voltar lá outra vez; ficava apenas a dezassete milhas de Uppercross; embora estivessem em Novembro, o tempo não estava mau; e, em resumo, Louisa, que era a mais ansiosa dos ansiosos, tinha decidido ir; além do prazer de fazer o que queria, ela estava agora fortalecida com a idéia de que era meritório não ceder e, assim, rebateu todas as razões do pai e da mãe para adiarem o passeio até ao Verão; deste modo, decidiram ir a Lyme - Charles, Mary, Anne, Henrietta, Louisa e o comandante Wentworth. O primeiro plano, bastante

insensato, era irem de manhã e voltarem à noite, mas o Sr. Musgrove não concordou com ele, por causa dos cavalos; e, pensando racionalmente, um dia de meados de Novembro não deixaria muito tempo para ver um novo local, depois de deduzidas sete horas para ir e vir, como a natureza do terreno exigia. Por conseguinte, eles passariam lá a noite e só deveriam voltar no dia seguinte, à hora do jantar.

Isto foi considerado uma alteração considerável; e, embora se tivessem reunido todos na Casa Grande a uma hora muito matutina e tivessem partido pontualmente, passava muito do meio-dia quando as duas carruagens, a do Sr. Musgrove com as quatro senhoras e o cabriolé de Charles em que este levava o comandante Wentworth, desciam a longa colina para Lyme e entravam na rua, ainda mais íngreme, da cidade em si; era evidente que só teriam tempo de dar uma vista de olhos em redor antes de a luz e o calor do Sol desaparecerem.

Depois de terem encontrado alojamento e encomendado jantar numa das hospedarias, o passo seguinte era, inquestionavelmente, dirigirem-se imediatamente ao mar. Era demasiado tarde no ano para quaisquer diversões ou espetáculos que Lyme, como local público, pudesse oferecer: as casas para alugar estavam fechadas, os hóspedes tinham-se ido quase todos embora, já poucas famílias restavam para além das ali residentes. E, como nÆo havia nada para admirar nos edifícios em si, os olhos dos viajantes espraiaram-se pela magnífica localização da cidade, pela rua principal, que parecia correr apressadamente para a água, pelo caminho até ao Cobb, que rodeava a pequena e agradável baía que na época alta se animava com barracas e banhistas, pelo Cobb em si, as suas maravilhas e novos melhoramentos, com a bela linha de rochedos a alongar-se para o leste da cidade; e só um estranho muito estranho não veria os encantos dos arredores próximos de Lyme e teria vontade de os conhecer melhor. As paisagens de Charmouth, corxi os seus belos parques e longas extensões de terreno e, ainda mais, a encantadora e tranquila baía rodeada de rochedos escuros, onde os fragmentos de rochas no meio da areia fazem dela o melhor local para ver a maré encher, para ficará sentado em contemplação; os bosques da alegre aldeia de Up Lyme, com inúmeras variedades de árvores, e, sobretudo, Pinny, com os seus abismos verdejantes no meio de rochas românticas, em que as árvores da floresta e os pomares de luxuriante exuberância afirmam que muitas gerações se devem ter sucedido desde que a primeira queda parcial do rochedo preparou a terra para esta maravilhosa e encantadora paisagem, que se compara favoravelmente com paisagens semelhantes da famosa ilha de Wight; estes locais têm de ser visitados e revisitados, para se poder compreender o valor de Lyme.

O grupo de Uppercross desceu a rua, passando pelas casas agora desertas e de aspecto melancólico, e, continuando a descer, encontrou-se pouco depois à beira-mar; ali, demorou-se um pouco, como todos os que são dignos de contemplar o mar se devem demorar a contemplá-lo quando o voltam a ver; seguiram depois em direção ao Cobb, igualmente um objetivo em si, devido ao relato do comandante Wentworth; pois os Harville tinham-se instalado numa pequena casa próxima da base do velho molhe, de data desconhecida.

O comandante Wentworth foi visitar o amigo, tendo os outros prosseguido o passeio e ele ficado de ir ter com eles ao Cobb. Não se tinham ainda cansado de se maravilhar e de admirar, e nem sequer Louisa parecera achar que se tinham separado do comandante Wentworth há muito tempo, quando o viram vir ter com eles, acompanhado por três pessoas que já conheciam bem de nome: o comandante e a Sra. Harville e um comandante Benwick, que estava hospedado em casa deles. O comandante Benwick tinha, há algum tempo, sido primeiro-tenente do Lavônia, e a descrição que o comandante Wentworth fizera dele quando regressara de Lyme, os calorosos elogios que lhe fizera como um excelente jovem e oficial que ele sempre prezara, tinham granjeado a estima de todos os ouvintes; aquela descrição fora seguida de um breve historia da sua vida privada, o que o tornou muitíssimo interessante aos olhos das senhoras. Ele tinha estado noivo da irmã do comandante Harville e agora chorava a sua morte.

Eles tinham ficado um ano ou dois à espera de fortuna e promoção. A fortuna chegou, uma vez que, como tenente, a sua percentagem do dinheiro resultante da venda das presas marítimas era elevada; a promoção veio também, finalmente; mas Fanny Harville não chegou a sabê-lo. Morrera no ano anterior, enquanto ele estava no mar. O comandante Wentworth achava que era impossível um homem gostar mais de uma mulher do que o pobre Benwick gostara de Fanny Harville, ou sofrer mais com a terrível situação. Ele considerava que a sua maneira de ser era das que mais sofrem, aliando sentimentos muito fortes a modos calmos, sérios e retraídos, um gosto pela leitura e ocupações sedentárias. Para completar o interesse da história, a amizade entre ele e os Harville parecia, se é que isso era possível, ter aumentado com o acontecimento que pôs termo a todas as perspectivas de parentesco, e o comandante Benwick vivia agora com eles.

O comandante Harville alugara a casa por meio ano. Os seus gostos, saúde e rendimentos levaram-no a escolher uma casa barata junto do mar; e a magnificência da região e o sossego de Lyme no Inverno pareciam adaptar-se exatamente ao estado de espírito do comandante Benwick. A simpatia e a estima que sentiam pelo comandante Benwick era enorme. -E, no entanto-, disse Anne para si própria enquanto avançavam para cumprimentar o grupo, talvez o seu coração não esteja mais pesaroso que o meu. Não acredito que tenha perdido a esperança para sempre. Ele é mais novo que eu; mais novo em sentimentos se não, de fato, mais novo na idade. Há de ganhar ânimo e ser feliz com outra.- Eles encontraram-se todos e foram apresentados. O comandante Harville era um homem alto e moreno, com um aspecto sensato e bondoso; coxeava um pouco. E, devido às feições vincadas e à falta de saúde, parecia muito mais velho que o comandante Wentworh.

O comandante Benwick parecia ser, e era, o mais novo dos três, e era também, em comparação com qualquer dos outros, um homem pequeno. Tinha um rosto agradável e um ar melancólico, como se esperava que tivesse, e não participou na conversa.

O comandante Harville, embora não tivesse os modos elegantes do comandante, era um perfeito cavalheiro, sem afetação, sincero e obsequioso. A Sra. Harville, um pouco menos polida que o marido, parecia, porém, ter os mesmos bons sentimentos, e nada podia ser mais agradável que o desejo de ambos de considerarem todo o grupo como seus amigos, por serem amigos do comandante Wentworth, nem mais hospitaleiro do que a sua insistência para que prometessem jantar com eles. O jantar já encomendado na hospedaria foi, porém, finalmente, embora a contra- gosto, aceite como desculpa; mas eles pareceram quase magoados por o comandante Wentworth ter trazido o grupo a Lyme sem pensar que o mais natural era que jantassem em casa deles.

Havia, em tudo isto, uma tão grande amizade pelo comandante Wentworth e um encanto tão fascinante nesta hospitalidade tão invulgar, tão diferente do estilo habitual de troca de convites e dos jantares de formalidades e exibicionismo, que Anne sentiu que o seu estado de espírito não iria beneficiar se conhecesse mais dos seus amigos oficiais. -Estes podiam ter sido todos meus amigos-, foi o seu pensamento; e teve de lutar contra uma enorme tendência para se sentir deprimida.

Depois de deixarem o Cobb, foram todos a casa dos seus novos amigos e encontraram uns aposentos tão pequenos que só os que convidam do fundo do coração consideram capazes de acomodar tanta gente. Por um momento, Anne ficou admirada; mas foi só um momento, e esse espanto em breve se dissipou no meio de sensações mais agradáveis quando reparou nos esforços engenhosos do comandante Harville e no belo trabalho que ele fizera para tirar o maior partido possível do pouco espaço existente, para suprir as deficiências do mobiliário da casa alugada e para proteger as portas e as janelas contra as prováveis tempestades de Inverno. Anne sorriu perante a diversidade da decoração dos aposentos, em que as peças de mobiliário essenciais colocadas com indiferença pelo proprietário contrastavam com algumas peças de madeiras raras, magnificamente trabalhadas, e com interessantes e valiosos objetos de todos os países distantes que o comandante Harville visitara; estava tudo relacionado com a sua profissão, com os frutos do seu trabalho e com a influência deste nos seus hábitos, e a imagem de tranqüilidade e felicidade familiar que refletia provocou em Anne uma sensação semelhante à de prazer.

O comandante Harville não lia muito; mas ele arranjara um excelente local e fizera umas prateleiras muito bonitas para uma razoável coleção de livros bem encadernados pertencentes ao comandante Benwick. O fato de coxear impedia-o de fazer muito exercício físico, mas um espírito engenhoso e prático parecia mantê-lo constantemente ocupado dentro de casa. Ele desenhava, envernizava, fazia trabalhos de carpintaria, colava; fazia brinquedos para as crianças, inventava lançadeiras e cavilhas aperfeiçoadas; e, quando tudo o mais estava feito, sentava-se a um canto a fazer uma enorme rede de pesca.

Quando saíram da casa, Anne pensou que deixara uma grande felicidade atrás de si; e Louisa, que caminhava a seu lado, desatou a tecer elogios exaltados à Marinha - à sua amabilidade, à sua fraternidade, à sua franqueza, à sua retidão -, afirmando que estava convencida de que os homens da Marinha tinham mais valor e entusiasmo do que quaisquer homens de Inglaterra; só eles sabiam viver, e só eles mereciam ser respeitados e amados.

Regressaram à hospedaria para se vestirem e jantarem; e os preparativos tinham sido tão bem feitos que não faltava nada; apesar de estarem completamente fora da estação- e de não haver qualquer movimento em Lyme- e de não esperarem companhia; coisas pelas quais os donos da hospedaria pediram muitas e profusas desculpas. Por esta altura, Anne já se sentia mais à vontade na companhia do comandante Wentworth do que a princípio imaginara ser possível, e estar sentada à mesma mesa que ele, trocando as amabilidades habituais (nunca passavam disso) já não a perturbava.

As noites estavam demasiado escuras para as senhoras se voltarem a encontrar antes do dia seguinte, mas o comandante Harville tinha prometido vir visitá-los ao serão; e ele veio e trouxe o amigo, com o que eles não contavam, pois tinham concordado que o comandante Benwick tinha todo o ar de se entir oprimido com a presença de tantos desconhecidos. No ntanto, ele aventurara- se a estar no meio deles, embora o seu stado de espírito não parecesse enquadrar-se na alegria geral do grupo. Enquanto os comandantes Wentworth e Harville conduziam a conversa num lado da sala e recordavam os tempos antigos, contando histórias suficientes para ocupar e divertir os outros, Anne ficou um pouco à parte com o comandante Benwick; um generoso impulso levou-a a entabular conversa com ele. Ele era tímido e dado ao isolamento; mas a atraente suavidade do rosto de Anne e os seus modos meigos em breve começaram a fazer efeito; e Anne foi bem recompensada pelo seu esforço. Ele era obviamente um jovem com gosto pela leitura, principalmente poesia; além de ficar convencida de lhe ter proporcionado, pelo menos durante um serão, o prazer de discutir assuntos pelos quais os seus companheiros habituais não tinham o mínimo interesse, ela tinha esperança de lhe ser verdadeiramente útil, dando-lhe sugestões, surgidas naturalmente no decorrer da conversa, sobre a obrigação e o benefício de lutarmos contra o sofrimento. Pois, embora fosse tímido, ele não parecia ser reservado; parecia, pelo contrário, sentir-se satisfeito por poder libertar os seus sentimentos do retraimento habitual; eles conversaram sobre poesia, sobre a riqueza da época contemporânea, comparavam sucintamente opiniões sobre os melhores poetas, tentando decidir qual era preferível, se Marmion (1), se The Lady of the Lake (2), a que gênero literário pertenciam Giaour (3) e The Bride of Abydos (4) e, além disso, como se pronunciava Giaour; ele mostrou conhecer intimamente as mais belas canções de um poeta e todas as apaixonantes descrições de agonia desesperada do outro; repetiu, com enorme sentimento, os versos que descreviam um coração despedaçado e uma mente destruída pelo sofrimento, e ele parecia tanto desejar ser compreendido que ela se atreveu a recomendar-lhe que não lesse só poesia, e a dizer que pensava que a poesia tinha o infortúnio de raramente ser apreciada com segurança por aqueles que mais gostavam dela; e que os seres dotados de sentimentos fortes, que eram os únicos que a apreciavam verdadeiramente, eram precisamente os que deviam saboreá-la com cuidado.

Uma vez que esta alusão ao seu caso não pareceu fazê-lo sofrer e ele deu a idéia de, pelo contrário, ter ficado satisfeito, ela atreveu-se a prosseguir com a conversa; e, sentindo que o seu espírito mais amadurecido no sucedido lhe concedia esse direito, atreveu-se a recomendar a inclusão de mais prosa nas suas leituras quotidianas; quando lhe foi pedido que exemplificasse, ela referiu as obras dos nossos *1 Poema em 6 cantos de Walter Scott. (N. da T.) 2 Poema de Walter Scott. (N. da T.) 3 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) 4 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) melhores moralistas, as coleções das mais belas cartas, as memórias de personalidades experimentadas e de valor que lhe ocorreram no momento como sendo obras destinadas a elevar e fortalecer a mente de acordo com os mais elevados princípios e os melhores exemplos de resistência moral e religiosa.

O comandante Benwick escutou atentamente e pareceu grato pelo interesse que estava implícito; e, embora tivesse abanado a cabeça e suspirado, manifestando a sua dúvida quanto à eficácia de qualquer livro no alívio de uma dor como a sua, anotou os nomes dos livros recomendados por ela e prometeu procurá-los e lê-los. Quando o serão terminou, Anne não pôde deixar de achar divertida a idéia de ter vindo a Lyme para pregar paciência e resignação a um jovem que nunca tinha visto antes: mas, refletindo mais seriamente, também não conseguiu deixar de temer que, tal como muitos outros grandes moralistas e pregadores, ela tivesse sido eloqüente a um ponto em que a sua conduta dificilmente suportaria um exame minucioso.


Capítulo Doze

Anne e Henrietta foram as primeiras do grupo a levantar-se na manhã seguinte e resolveram ir passear até ao mar antes do pequeno-almoço. Foram até à areia e ficaram a ver a maré a encher, trazida por uma brisa de sudeste, com toda a imponência que uma praia tão plana permitia. Elas elogiaram a manhã; louvaram o mar; compartilharam o mesmo deleite com a brisa fresca e ficaram em silêncio, até que Henrietta começou subitamente a conversar:

- Oh! sim... estou absolutamente convencida de que, com muito poucas exceções, o ar do mar é sempre saudável. Não há dúvida nenhuma de que fez muito bem ao Dr. Shirley depois da sua doença, fez na Primavera passada um ano. Ele próprio diz que a estada de um mês em Lyme lhe fez melhor do que todos os medicamentos que tomou; e que estar perto do mar o faz sentir jovem outra vez. Assim, não posso deixar de pensar que é uma pena que ele não viva sempre à beira- mar. Eu acho que ele devia deixar Uppercross de vez e fixar-se em Lyme. Tu não achas, Anne? Não concordas comigo que é o melhor que ele poderia fazer, tanto para ele como para a Sra. Shirley? Ela tem primos aqui, sabes?, e muitas pessoas conhecidas, o que seria uma distração para ela, e tenho a certeza de que ela gostaria de viver num local em que pudesse obter rapidamente assistência médica, no caso de ele sofrer outro ataque. Na verdade, eu penso que é muito triste que excelentes pessoas como o Dr. e a Sra. Shirley, que praticaram o bem durante toda a sua vida,

desperdicem os seus últimos dias num lugar como Uppercross, em que, com exceção da nossa família, parecem estar isolados de todo o mundo. Eu gostaria muito que os seus amigos lhe sugerissem isso. Acho que eles deviam fazê-lo.

Quanto à obtenção de uma dispensa eclesiástica, com a sua idade e caráter, isso não seria difícil. A minha única dúvida é se alguma coisa o convenceria a deixar a sua paróquia. Ele é tão severo e escrupuloso no cumprimento das suas obrigações! Não achas, Anne, que ele está a ser excessivamente escrupuloso? Não achas que é um erro um clérigo sacrificar a sua saúde por causa das suas obrigações, quando estas podem perfeitamente ser desempenhadas por outra pessoa? E Lyme fica apenas a dezassete milhas de distância... ele estaria suficientemente perto para poder ouvir quaisquer queixas, se as houvesse.

Durante este discurso, Anne sorriu várias vezes para si própria e falou sobre o assunto, tão disposta a interessar-se pelos sentimentos de uma jovem como estivera em relação aos de um jovem, embora, neste caso, o mérito fosse menor, mas que podia ela fazer além de concordar, de um modo geral?

Ela disse tudo o que era razoável e apropriado sobre o assunto; concordou, como devia, que o Dr. Shirley tinha direito a descansar; compreendia como era boa idéia ele ter um jovem ativo e respeitável como coadjutor residente, e teve ainda a delicadeza de aludir às vantagens de um tal coadjutor residente ser casado.

- Gostava muito - disse Henrietta, muito satisfeita com a sua companheira-, gostava muito que Lady Russell vivesse em Uppercross e fosse amiga do Dr. Shirley. Sempre ouvi dizer que Lady Russell é uma mulher que exerce grande influência sobre toda a gente! Eu sempre a considerei capaz de convencer uma pessoa a fazer qualquer coisa! Eu tenho medo dela, como já te disse antes, tenho mesmo medo dela porque ela é tão inteligente; mas eu respeito-a muito e gostaria de a ter como vizinha em Uppercross.

Anne achou graça à maneira de Henrietta se mostrar grata, bem como ao desenrolar dos acontecimentos e ao fato de os novos interesses dos objetivos de Henrietta terem colocado a sua amiga nas boas graças de um membro da família Musgrove; ela só teve tempo, porém, para uma resposta vaga e para exprimir o desejo de que houvesse uma mulher assim a viver em Uppercross, quando todos os temas de conversa pararam subitamente ao verem Louisa e o comandante Wentworth aproximarem-se deles. Eles tinham ido dar um passeio antes de o pequeno-almoço estar pronto; mas Louisa recordou-se logo a seguir de que tinha de ir procurar algo numa loja e convidou-os a irem com ela à cidade. Todos eles se colocaram à sua disposição.

Quando chegaram aos degraus que subiam da praia, um cavalheiro que nesse mesmo momento se preparava para descer deu delicadamente um passo atrás e parou para os deixar passar. Eles subiram e passaram por ele; ao passarem, o rosto de Anne atraiu-lhe a atenção e ele fitou-a com um olhar de interesse e admiração a que ela não pôde ficar insensível. Ela estava com um ótimo aspecto; o vento fresco, batendo-lhe no rosto, tinha restituído a frescura da juventude às suas feições regulares e muito atraentes e despertara a vivacidade do seu olhar. Era evidente que o cavalheiro (um verdadeiro cavalheiro nos seus modos) a admirou imenso. O comandante Wentworth olhou imediatamente para ela de um modo que demonstrava que reparara. Ele lançou-lhe um olhar momentâneo um olhar perspicaz que parecia dizer: -Este homem ficou impressionado contigo e, até mesmo eu, neste momento, vejo algo de novo em Anne Elliot.- Depois de terem acompanhado Louisa nas suas compras e de terem passeado mais um pouco, regressaram à hospedaria; e Anne, quando mais tarde se dirigia apressadamente do quarto para a sala de jantar, quase chocou com o mesmo cavalheiro, quando este saía de um apartamento ao lado. Ela já calculara que ele fosse um forasteiro como eles, e decidira que um empregado bem- parecido que, no regresso, tinham visto a passear perto das duas hospedarias, devia ser o seu criado. O fato de tanto este homem como o seu amo estarem de luto reforçara essa idéia. Estava agora confirmado que ele estava hospedado na mesma hospedaria que eles, e este segundo encontro, embora muito breve, demonstrou de novo, pelo olhar do cavalheiro, que ele a considerava muito bela e, pela prontidão e correção das suas desculpas, que era um homem de muito boas-maneiras. Parecia ter cerca de 30 anos e, embora não fosse belo, tinha uma figura simpática. Anne pensou que gostaria de saber quem ele era.

Tinham quase terminado o pequeno-almoço quando o som de uma carruagem (praticamente a primeira que ouviam desde que tinham chegado a Lyme) fez metade do grupo ir à janela. Era uma carruagem de cavalheiro - um cabriolé -, mas que só veio dos estábulos até à porta da frente. Deve ser alguém a partir.- Era conduzida por um criado de luto. A palavra cabriolé fez Charles pôr-se de pé num salto para o comparar com o seu; o criado de luto despertou a curiosidade de Anne, e os seis estavam já todos reunidos à janela quando o dono do cabriolé saiu da hospedaria no meio das vénias e cortesias do pessoal, tomou o seu lugar e partiu.

-Ah - exclamou imediatamente o comandante Wentworth olhando de soslaio para Anne -, é o homem por que passámos. As Meninas Musgrove concordaram; e, depois de terem ficado todos, com simpatia, a vê-lo subir a colina até o perderem de vista, voltaram para a mesa do pequeno- almoço.

O empregado de mesa entrou na sala pouco depois.

Por favor - disse imediatamente o comandante Wentworth -, sabe dizer-nos quem é o cavalheiro que acabou de partir?

Sei, sim, é o Sr. Elliot; um cavalheiro de grande fortuna; chegou ontem à noite, vindo de Sidmouth... suponho que devem ter ouvido a carruagem, sir, quando estavam a jantar... e seguiu agora na direção de Crewkherne, com destino a Bath e Londres.

Elliot! - Antes de a frase acabar, apesar da rapidez com que o empregado a disse, muitos tinham-se entreolhado e muitos tinham repetido o nome.

Deus do Céu! - exclamou Mary. - Deve ser o nosso primo... deve ser mesmo o nosso Sr. Elliot, deve ser ele! Charles, Anne, não acham? Está de luto, tal como o nosso Sr. Elliot deve estar. Que extraordinário! Na mesma hospedaria que nós! Anne, não achas que deve ser o nosso Sr. Elliot, o herdeiro do nosso pai? Por favor - voltando-se para o empregado -, não ouviu, não ouviu o criado dele dizer que ele pertencia à família de Kellynch?

Não, minha senhora, ele não se referiu a nenhuma família em particular, mas disse que o amo era um cavalheiro muito rico e que um dia seria baronete.

Estão a ver! - exclamou Mary, em êxtase. - é exatamente o que eu disse! Herdeiro de Sir Walter Elliot. Eu tinha a certeza de que, se fosse realmente ele, viria a saber-se.

Podem estar certos de que esta é uma circunstância que os seus criados fazem questão de proclamar onde quer que ele vá. Mas, Anne, imagina só como é extraordinário! Quem me dera ter olhado melhor para ele. Quem me dera que tivéssemos sabido a tempo quem ele era, para nos poder ser apresentado. Que pena não termos sido apresentados! Achas que ele tinha o ar dos Elliot? Eu mal olhei para ele. Estava a olhar para os cavalos; mas penso que tinha um pouco o ar dos Elliot. Por que não reparei no brasão? Oh!, o capote do criado caía por cima do painel e tapava o brasão; foi isso; caso contrário, tenho a certeza de que teria reparado nele, assim como na libré; se o criado não estivesse de luto, eu tê-lo-ia conhecido pela libré.

Considerando todas essas extraordinárias circunstâncias disse o comandante Wentworth -, devemos considerar que foi intenção do destino não ser apresentada ao seu primo. Quando conseguiu atrair a atenção de Mary, Anne tentou calmamente convencê-la de que as relações entre o pai e o Sr. Elliot não eram, há anos, tão boas que fosse desejável tentarem ser-lhe apresentadas. Ao mesmo tempo, porém, ela sentiu uma satisfação íntima por ter visto o primo e por saber que o futuro dono de Kellynch era indubitavelmente um cavalheiro com ar sensato. Ela não tinha qualquer intenção de mencionar que se tinha encontrado com ele uma segunda vez; felizmente, Mary não prestara muita atenção quando passara por ele durante o seu passeio matinal, mas ela teria ficado muito aborrecida ao saber que Anne se tinha esbarrado contra ele no corredor e recebido as suas delicadas desculpas, enquanto ela nunca estivera perto dele; não, aquele breve encontro entre primos permaneceria um segredo absoluto.

Claro - disse Mary - que vais dizer que vimos o Sr. Elliot na próxima vez que escreveres para Bath. Penso que o pai devia sabê-lo; por favor, conta tudo a seu respeito.

Anne evitou uma resposta direta, mas esta era exatamente uma circunstância que ela achava que não só era desnecessário comunicar como nem devia ser referida. A ofensa que há muitos anos fora feita ao pai, ela sabia; do quinhão que coubera a Elizabeth, só desconfiava, e não havia dúvida de que ambos se irritavam com a mera referência ao Sr. Elliot.

Mary nunca escrevia para Bath; o penoso trabalho de manter uma correspondência irregular e pouco satisfatória com Elizabeth recaía sobre Anne. Tinham terminado o pequeno-almoço há pouco tempo quando o comandante e a Sra. Harville apareceram, acompanhados pelo comandante Benwick, com quem tinham combinado dar um último passeio em Lyme. Eles tencionavam partir para Uppercross antes da uma hora e, entretanto, estariam juntos e ao ar livre o máximo de tempo possível. Anne viu que o comandante Benwick se aproximou dela assim que se encontraram todos na rua. A conversa da noite anterior não o dissuadira de voltar a procurar a sua companhia; e eles caminharam juntos durante algum tempo, a conversar, como antes, de Walter Scott e de Lorde Byron, continuando incapazes, tão incapazes como quaisquer outros dois leitores, de ter a mesma opinião sobre os méritos de qualquer deles, até que algo provocou uma alteração quase geral no grupo e, em vez do comandante Benwick, ela teve o comandante Harville a seu lado.

-A Menina Elliot- disse ele, falando em voz baixa – cometeu uma bela ação fazendo aquele pobre homem falar tanto. Quem me dera que ele tivesse a sua companhia mais vezes. É muito mau para ele, eu sei, ser fechado como é; mas que havemos de fazer? Não nos podemos separar.

Não - disse Anne -, acredito que seja impossível, mas, com o decorrer do tempo, talvez; nós sabemos como o tempo atua em todos os casos de sofrimento, e deve ter em mente, comandante Harville, que o desgosto do seu amigo pode ser considerado relativamente recente. Foi só no Verão passado, segundo creio.

Sim, é verdade - disse ele com um profundo suspiro -, foi só em Junho. - E ele talvez não tenha tido logo conhecimento.

Só o soube na primeira semana de Agosto, quando chegou a casa vindo do Cabo. Acabava de tomar conta do Grappler. Eu estava em Plymouth, ansioso por ter notícias dele, mas o GrappLer tinha ordens para ir para Portsmouth. As notícias deviam segui-lo até lá, mas quem iria dar-lhas? Eu não, não tinha coragem. Ninguém conseguia fazê-lo a não ser aquele bom companheiro - (e apontou para o comandante Wentworth). – O Lavônia tinha chegado a Plymouth na semana anterior, não havia perigo de ser enviado de novo para o mar. Quanto ao resto, ele resolvera arriscar-se... pediu uma licença e, sem aguardar pela resposta, viajou noite e dia até chegar a Portsmouth e, assim que lá chegou, dirigiu-se para o Grappler a remo e não saiu de junto do pobre rapaz durante uma semana; foi o que fez; ninguém mais conseguiria salvar o pobre James. Pode imaginar, Menina Elliot, como ele nos é querido!

Anne conseguia, na realidade, imaginá-lo perfeitamente, e disse-o, em tantas palavras quantas as suas emoções lhe permitiram ou as dele eram capazes de escutar, pois ele pareceu demasiado comovido para continuar a conversar sobre o assunto; quando falou de novo, foi sobre uma coisa totalmente diferente.

O fato de a Sra. Harville ter manifestado a opinião de que, quando chegassem a casa, o marido já teria andado bastante, determinou a direção do grupo no que iria ser o seu último passeio; acompanhá-los-iam até à porta, depois voltariam para trás e partiriam; segundo os seus cálculos, tinham exatamente tempo para isso; mas, quando se aproximaram do Cobb, sentiram todos desejo de passear mais uma vez ao longo deste, estavam todos tão interessados e Louisa tornou-se tão obstinada que chegaram à conclusão de que um atraso de um quarto de hora não faria qualquer diferença. Assim, depois de todas as amáveis despedidas e de toda a amável troca de convites e promessas que se podem imaginar, separaram-se do comandante e da Sra. Harville à porta destes e, ainda acompanhados pelo comandante Benwick, que parecia querer ficar junto deles até ao fim, foram despedir-se devidamente do Cobb.

Anne viu que o comandante Benwick se aproximou novamente dela. A paisagem não pôde deixar de lhe recordar os mares azul-escuros de Lorde Byron, e ela prestou-lhe, de boa vontade, toda a sua atenção enquanto foi possível prestar-lha. Em breve, porém, esta iria ser atraída noutra direção. Estava demasiado vento para que a parte do novo Cobb fosse agradável para as senhoras, e eles concordaram em descer os degraus para a parte inferior; prepararam-se todos para descer os degraus íngremes, lenta e cuidadosamente, à exceção de Louisa, que queria saltar, ajudada pelo comandante Wentworth. Em todos os seus passeios, ele tinha de a ajudar a saltar dos taludes; achava a sensação deliciosa. Desta vez, dada a dureza do solo, ele mostrou-se mais relutante, mas acabou por fazê-lo; ela desceu sã e salva e, imediatamente, para mostrar como gostara, subiu os degraus a correr para voltar a saltar.

Ele aconselhou-a a não o fazer, pois o embate era demasiado grande; mas foi em vão que ele falou e argumentou; ela sorriu e disse: Estou decidida, vou saltar¯; ele ergueu as mãos; ela precipitou-se um segundo antes do tempo, caiu no chão do Cobb inferior, de onde a levantaram inanimada. Não havia qualquer ferimento, sangue ou lesão visível; mas tinha os olhos fechados, não respirava, e o rosto tinha a palidez da morte.

Foi um momento de horror para todos os que a rodeavam! O comandante Wentworth, que a tinha levantado, estava de joelhos com ela nos braços, olhando-a com um rosto tão pálido como o dela, num silêncio de agonia.

Ela está morta!, está morta! - gritou Mary, agarrando-se ao marido e contribuindo, juntamente com o seu próprio horror, para que ele se mantivesse imóvel; e, um minuto depois, Henrietta, vencida pela mesma convicção, perdeu também os sentidos, e teria caído se o comandante Benwick e Anne não a tivessem segurado.

Não há ninguém que me ajude? - foram as primeiras palavras soltadas pelo comandante Wentworth, num tom de desespero, como se a sua força se tivesse esgotado.

VÁ ter com ele - exclamou Anne -, por amor de Deus, vá ter com ele. Eu consigo segurá-la sozinha. Deixe-me, vá ter com ele. Esfregue as mãos dela, friccione-lhe as têmporas; aqui estão os meus sais... tome-os, tome-os. O comandante Benwick obedeceu, enquanto Charles, ao mesmo tempo, se desenvencilhava da mulher. Aproximaram-se ambos dele; Louisa foi levantada e apoiada com mais firmeza; fizeram tudo o que Anne dissera, mas em vão; o comandante Wentworth encostou-se, cambaleante, à parede, para se apoiar, exclamando em tom de agonia:

Oh, meu Deus! O pai e a mãe dela!

Um médico! - disse Anne.

Esta palavra pareceu despertá-lo de imediato, e disse:

É verdade, é verdade, um médico imediatamente. - E estava a afastar-se rapidamente quando Anne sugeriu ansiosamente:

O comandante Benwick, não seria melhor ir o comandante Benwick? Ele sabe onde encontrar um médico. Todos os que estavam em condições de pensar acharam que era melhor idéia e, um minuto depois (foi tudo feito em movimentos rápidos), o comandante Benwick tinha confiado a pobre figura, que parecia um cadáver, aos cuidados do irmão, partindo rapidamente para a cidade. Quanto ao infeliz grupo que ficara, não era possível dizer qual dos três que se encontravam na posse de todas as suas faculdades sofria mais: o comandante Wentworth, Anne ou Charles, que, na realidade, era um irmão muito afetuoso e estava inclinado por cima de Louisa soluçando amargamente, só conseguindo tirar os olhos de uma irmã para ver outra sem sentidos, ou presenciar a agitação histérica da mulher, pedindo-lhe uma ajuda que ele não podia dar. Anne, tratando Henrietta com toda a firmeza, zelo e preocupação que o instinto lhe aconselhava, tentava ainda, regularmente, confortar os outros, acalmar Mary, animar Charles e acalmar os sentimentos do comandante Wentworth.

Ambos pareciam aguardar as suas instruções. - Anne, Anne - exclamou Charles -, que vamos fazer a seguir? Por amor de Deus, que vamos fazer? Os olhos do comandante Wentworth também se voltaram para ela.

Não seria melhor levá-la para a hospedaria? Sim, tenho a certeza, levem-na com cuidado para a hospedaria.

Sim, sim, para a hospedaria - repetiu o comandante Wentworth, relativamente controlado e ansioso por fazer qualquer coisa. - Eu levo-a. Musgrove, tome conta dos outros.

Nesta altura, jáo relato do acidente se tinha espalhado entre os trabalhadores e barqueiros à volta do Cobb, e tinham-se juntado muitos à sua volta, para serem úteis, se necessário; de qualquer modo, para gozarem o espectáculo de uma jovem morta; não, duas jovens mortas, pois a realidade era duas vezes melhor do que o primeiro relato. Henrietta foi confiada a algumas das pessoas com melhor aspecto, pois, embora tivesse recuperado parcialmente os sentidos, ela não se conseguia mover; e, assim, com Anne a seu lado e Charles a tomar conta da mulher, puseram-se a caminho, pisando de novo o chão por que pouco tempo antes, muito pouco tempo antes, tinham passado tão cheios de alegria.

Ainda não tinham saído do Cobb quando os Harville vieram ao seu encontro. Tinham visto o comandante Benwick passar a correr pela sua casa, com uma expressão que mostrava que algo errado se passava; e eles tinham saído imediatamente, informando-se e orientando-se à medida que se dirigiam ao local.

Embora impressionado, o comandante Harville trazia consigo sensatez e calma que puderam ser imediatamente úteis; e um olhar entre ele e a mulher decidiu o que iria ser feito. Ela devia ser levada para casa deles - deviam ir todos para casa deles - e esperar pela chegada do médico ali. Ele não prestou atenção a quaisquer escrúpulos: foi obedecido; ficavam todos debaixo do seu teto; Louisa, de acordo com instruções da Sra. Harville, foi levada para cima e colocada na sua própria cama; e a todos que deles precisavam, o marido prestou apoio, serviu refrescos e deu sedativos. Louisa tinha aberto os olhos uma vez, mas voltou a fechá-los pouco depois, sem ter recuperado a consciência. Isto já fora, contudo, uma prova de vida útil para a irmã; e a agitação da esperança e do medo evitou que Henrietta voltasse a perder os sentidos, embora se sentisse totalmente incapaz de estar no mesmo quarto que Louisa. Também Mary estava a ficar mais calma.

O médico chegou mais cedo do que parecia possível. Enquanto ele a examinava, sentiram-se dominados pelo terror; mas ele não se mostrou desanimado; a cabeça tinha sofrido uma pancada grande, mas ele já vira recuperações de pancadas mais graves; não estava absolutamente nada desanimado; ele falava num tom satisfeito. O fato de ele não considerar o caso desesperado de ele não ter dito que tudo terminaria dentro de poucas horas - excedeu, a princípio, a esperança da maior parte deles; pode, pois, imaginar-se a felicidade que sentiram, a sua alegria, silenciosa e profunda, depois de dirigirem a Deus algumas fervorosas exclamações de gratidão.

Anne teve a certeza de que nunca se esqueceria do tom, da expressão com que o comandante Wentworth disse -Graças a Deus-, nem como, mais tarde, ele ficou sentado, debruçado sobre a mesa, com os braços cruzados e a cabeça escondida, como se sentisse dominado pelas várias sensações da alma e tentando acalmá-las através da oração e pela meditação.

Os membros de Louisa estavam intatos. Só a cabeça ficara magoada. Era agora necessário que o grupo decidisse o que devia fazer quanto à situação. Já conseguiam falar uns com os outros e trocar opiniões. Não havia dúvida de que Louisa tinha de permanecer onde estava, por mais que custasse aos seus amigos envolver os Harville no problema. Era impossível transportá-la para outro local.

Os Harville silenciaram todos os escrúpulos e, tanto quanto lhes foi possível, toda a gratidão. Eles tinham previsto tudo e feito todos os preparativos antes de os outros terem começado a pensar. O comandante Benwick teria de ceder o quarto e dormir noutro local - e ficou tudo decidido. Eles só estavam preocupados com o fato de a casa não poder alojar mais pessoas; e, no entanto, se pusessem as crianças no quarto da criada ou armassem um burro em qualquer lado¯, conseguiriam arranjar lugar para mais dois ou três, supondo que eles quisessem ficar; embora, com respeito a tratar da Menina Musgrove, podiam deixá-la, sem a mínima preocupação, entregue aos cuidados da Sra. Harville.

A Sra. Harville era uma enfermeira com muita experiência; e a sua ama, que há muito vivia com ela e viajara com ela para todo o lado, também o era. As duas eram suficientes para tomar conta dela, de dia e de noite. Tudo isto foi dito com uma franqueza e sinceridade irresistíveis. Charles, Henrietta e o comandante Wentworth trocavam opiniões e, durante algum tempo, foi apenas uma troca de palavras de perplexidade e terror:

Uppercross – a necessidade de alguém ir a Uppercross - a notícia que tinha de ser transmitida - como deveria ser dada ao Sr. e à Sra. Musgrove - a manhã já ia avançada -há uma hora que eles deveriam ter partido - a impossibilidade de chegarem a uma hora razoável.

A princípio, a única coisa que conseguiam fazer era soltar exclamações deste gênero; mas, após algum tempo, o comandante Wentworth, fazendo um esforço, disse: - Temos de decidir, e sem perder um minuto. Todos os minutos são preciosos. Alguém deve partir para Uppercross imediatamente. Musgrove, ou tu ou eu, um de nós tem de ir. Charles concordou; mas declarou a sua resolução em não sair dali. Ele tentaria incomodar o comandante e a Sra. Harville o menos possível, mas, quanto a deixar a irmã naquele estado, isso ele não devia, nem queria, fazer. Isso ficou decidido; e Henrietta, a princípio, afirmou o mesmo. Em breve, porém, ela foi persuadida a mudar de idéias. De que servia ela ficar? Ela, que não conseguia entrar no quarto de Louisa, nem olhar para ela sem sofrer tanto que ela própria precisava de que a socorressem! Ela foi forçada a admitir que não ficaria a fazer nada; no entanto, continuou a mostrar-se relutante em partir, até que, ao lembrar-se, comovida, do pai e da mãe, desistiu, concordou, ficou ansiosa por chegar a casa.

O plano tinha chegado a este ponto quando Anne, saindo do quarto de Louisa, não pôde deixar de ouvir o que se seguiu, pois a porta da sala estava aberta.

Então está decidido, Musgrove - exclamou o comandante Wentworth -, você fica, e eu acompanho a sua irmã a casa. Mas quanto ao resto... quanto aos outros. Se ficar alguém para ajudar a Sra. Harville, penso que só pode ser uma pessoa. A Sra. Charles Musgrove vai querer, sem dúvida, voltar para junto dos filhos; mas, se Anne quiser ficar, não há pessoa mais indicada nem mais capaz que Anne.

Ela parou por um momento para se recuperar da emoção de ouvir falar assim a seu respeito.

Os outros dois concordaram calorosamente com o que ele dissera, e depois ela entrou na sala.

Anne fica, tenho a certeza de que não se importa de ficar a tomar conta dela - exclamou ele voltando-se para ela e falando com um ardor e, ao mesmo tempo, uma ternura que quase pareceu fazer reviver o passado. Ela corou intensamente; e ele caiu em si e afastou-se. Ela disse que estava disposta a ficar, fá-lo-ia com todo o prazer. Era nisso que estivera a pensar, desejando que lhe permitissem fazê-lo. Uma cama no chão do quarto de Louisa seria suficiente para ela, se a Sra. Harville estivesse de acordo.

Mais uma coisa, e tudo parecia resolvido. Embora fosse desejável que o Sr. e a Sra. Musgrove se sentissem, de antemão, um tanto alarmados com a demora, o tempo que os cavalos de Uppercross levariam a fazer a viagem de regresso seria um terrível prolongamento da expectativa; e o comandante Wentworth propôs, e Charles Musgrove concordou, que seria muito melhor que ele alugasse uma caleche na hospedaria e deixasse a carruagem e os cavalos do Sr. Musgrove, os quais seguiriam para casa bem cedo na manhã seguinte, o que teria a vantagem de levar noticias sobre como Louisa passara a noite.

O comandante Wentworth apressou-se a fazer todos os preparativos que lhe diziam respeito, devendo ser seguido, pouco depois, pelas duas senhoras. Quando Mary teve conhecimento do plano, porém, foi o fim de toda a tranquilidade que este trouxera. Ela mostrou-se tão infeliz e foi tão veemente, queixou-se tanto da injustiça de ter de partir, enquanto Anne ficava - Anne, que não era nada a Louisa, enquanto ela era sua cunhada e tinha mais direito de ficar no lugar de Henrietta! Por que não haveria ela de ser tão útil como Anne? E ir para casa sem Charles, sem o marido! Não, era demasiada crueldade!

Em resumo, ela disse mais do que o marido conseguiu suportar e, quando ele cedeu, nenhum dos outros se pôde opor. Não havia nada a fazer: a troca de Mary por Anne era inevitável. Anne nunca se sentira tão relutante em ceder às exigências ciumentas e injustas de Mary; mas teve de ser, e eles partiram para a cidade, Charles tomando conta da irmã, e o comandante Benwick acompanhando-a a ela. Enquanto caminhavam apressadamente, ela recordou, por um momento, as pequenas circunstâncias que os mesmos locais tinham presenciado nessa manhã. Ali tinha ela escutado os planos de Henrietta para a partida do Dr. Shirley de Uppercross; mais à frente, vira o Sr. Elliot pela primeira vez; parecia-lhe que a única coisa a que conseguia dedicar mais de um momento era a Louisa e aos que estavam envolvidos no seu bem- estar. O comandante Benwick mostrava-se bastante atencioso para com ela; e, unidos como todos pareciam estar, pela angústia do dia, ela sentiu uma simpatia crescente em relação a ele, bem como prazer em pensar que a mesma talvez resultasse na continuação das suas relações.

O comandante Wentworth aguardava-as, com uma caleche tirada por duas parelhas que, para maior conveniência, estava parada na parte mais baixa da rua; mas a surpresa e o aborrecimento que ele evidenciou com a substituição de uma irmã pela outra a mudança operada no seu rosto - o espanto - as expressões que surgiam e eram dominadas enquanto escutava o relato de Charles provocaram em Anne uma reação dolorosa; ou, pelo menos, convenceram-na de que ela era apreciada apenas na medida em que podia ser útil a Louisa. Tentou mostrar-se calma e ser justa. Sem querer imitar os sentimentos de Emma para com o seu Henry (1), ela teria, por causa dele, tratado de Louisa com um zelo acima do exigido pela simples amizade, e esperava que ele não seria, por muito tempo, tão injusto que supusesse que ela se recusaria, desnecessariamente, a ajudar uma amiga.

Entretanto, ela sentou-se na carruagem. Ele tinha ajudado as duas a subir e colocara-se no meio delas; e, deste modo, nestas circunstâncias cheias de espanto e emoções para Anne, ela deixou Lyme. Como decorreria a longa viagem; como esta iria afetar os modos de ambos; como iria ser a conversa entre eles, eram coisas que ela não podia prever. Foi tudo muito natural, porém. Ele ocupou-se de Henrietta, voltando-se sempre para ela; e quando falou, fê-lo sempre com o objetivo de acalentar as suas esperanças e de a animar. De um modo geral, a sua voz e os seus modos eram estudadamente calmos. O seu objetivo principal parecia ser poupar qualquer agitação a Henrietta. Apenas uma vez, quando ela se queixava do infeliz e malfadado último passeio ao Cobb, lamentando que se tivessem lembrado de o dar, ele desabafou, como se sentisse completamente dominado pela emoção:

Não fale nisso, não fale nisso - exclamou ele. - Oh, meu Deus! Se eu não tivesse cedido no momento fatal! Se eu tivesse agido como devia! Mas ela é tão impaciente e obstinada! Querida, doce Louisa! Anne perguntou a si própria se nalgum momento lhe viera à idéia pôr em causa a legitimidade da sua opinião anterior a respeito da felicidade e da vantagem da firmeza de caráter; e se não lhe ocorrera que, tal como todas as outras qualidades morais, esta devia ter as suas proporções e limites. Ela pensou que ele não poderia deixar de pensar que, por vezes, um temperamento maleável concorria tanto para a felicidade como uma personalidade obstinada.

Avançaram rapidamente. Anne ficou surpreendida ao reconhecer tão cedo as colinas e os objetos que lhe eram familiares. A velocidade a que seguiam, aumentada pelo receio do que iria acontecer à chegada, fazia a estrada parecer metade do caminho do dia anterior. Estava já anoitecer, porém, quando chegaram aos arredores de Uppercross; há algum tempo que se fizera um silêncio total entre eles; Henrietta recostara-se a um canto, com o rosto coberto por um xale, dando aos outros a esperança de ter chorado até adormecer. Quando subiam a última colina, o comandante Wentworth dirigiu-se subitamente a Anne. Numa voz baixa e cautelosa, disse:

Tenho estado a pensar na melhor maneira de agirmos. Ela não deve aparecer primeiro. Não o suportaria. Tenho estado a pensar se não seria melhor Anne ficar com ela na carruagem enquanto eu vou dar a notícia ao Sr. e à Sra. Musgrove. Acha que é um bom plano?

Ela concordou; ele ficou satisfeito e não disse mais nada. Mas a recordação daquele apelo causou-lhe prazer - era uma prova de amizade, de deferência perante a opinião dela, um grande prazer; e, ainda que tenha sido uma espécie de prova de despedida, isso não diminuiu o seu valor. Depois de a infeliz notícia ter sido comunicada em Uppercross e de se ter certificado de que o pai e a mãe estavam tão refeitos do choque como era possível esperar, e de que a filha se sentia melhor por estar junto deles, ele anunciou a sua intenção de regressar a Lyme na mesma carruagem; e, depois de os cavalos terem comido a sua ração, ele partiu.


VOLUME II 


Capítulo Um (Treze)

O resto da estada de Anne em Uppercross, que consistiu apenas em dois dias, foi passado inteiramente na Casa Grande, e ela teve a satisfação de se saber extremamente útil ali, tanto como companhia como no apoio a todos os preparativos para o futuro, os quais, no perturbado estado de espírito do Sr. e da Sra. Musgrove, teriam constituído para estes grandes dificuldades.

Tiveram notícias de Lyme na manhã seguinte. Louisa estava mais ou menos na mesma. Não tinham surgido quaisquer sintomas mais graves. Charles chegou algumas horas depois com notícias mais recentes e mais pormenorizadas. Estava razoavelmente animado. Não se podia esperar uma cura rápida, mas estava tudo a correr tão bem como a natureza do caso permitia.

Falando dos Harville, ele não conseguia encontrar palavras para traduzir a sua bondade, principalmente os cuidados da Sra. Harville como enfermeira. Ela não deixava Mary fazer nada.

Na noite anterior, ela tinha-os convencido, a ele e a Mary, a irem cedo para a hospedaria. Mary ficara outra vez histérica nessa manhã. Quando ele se viera embora, ela ia dar um passeio com o comandante Benwick, e ele esperava que o passeio lhe fizesse bem. Ele quase desejava que tivessem conseguido convencê-la a voltar para casa na noite anterior; mas a verdade era que a Sra. Harville não deixava nada para mais ninguém fazer. Charles deveria voltar a Lyme nessa mesma tarde, e o pai, a princípio, pretendia ir com ele, mas as senhoras não consentiram. Só iria multiplicar os problemas dos outros e aumentar a sua própria angústia; foi feito um plano muito melhor e agiram de acordo com ele. Mandaram vir uma carruagem de Crewkherne, e Charles levou consigo uma pessoa muito mais útil, a velha ama da família, que, depois de ter criado todas as crianças e visto a mais nova, o mimado Harry, ser enviado para o colégio a seguir aos irmãos, vivia agora no quarto vazio das crianças a remendar peúgas e a fazer curativos a todas as feridas e lesões que chegavam perto dela; ela ficou, por conseguinte, extremamente satisfeita por poder ir ajudar a tratar da querida Menina Louisa. A Sra. Musgrove já tinha tido a vaga idéia de mandar Sarah para lá; mas, sem Anne, o assunto não teria sido decidido nem considerado praticável tão cedo.

No dia seguinte, ficaram a dever a Charles Hayter notícias pormenorizadas de Louisa, que era essencial terem todos os dias. Ele resolvera ir a Lyme, e o seu relato era animador. Os períodos de lucidez e consciência pareciam cada vez mais freqüentes. Todos os relatos concordavam em que o comandante Wentworth parecia ter-se instalado em Lyme. Anne devia deixá-los na manhã seguinte, um acontecimento que todos temiam. Que iriam eles fazer sem ela? Nem sequer conseguiam confortar-se uns aos outros! E disseram tantas coisas deste gênero que Anne achou que o melhor que tinha a fazer era comunicar-lhes a sua opinião pessoal e convencê-los a todos a irem imediatamente para Lyme. Teve pouca dificuldade em fazê-lo; em breve ficou decidido que iriam, iriam no dia seguinte, instalar-se-iam na hospedaria ou alugariam uma casa, conforme fosse mais conveniente, e ficariam lá até Louisa poder viajar. Eles iriam aliviar os incômodos causados às boas pessoas com quem ela estava; pelo menos, ajudariam a Sra. Harville a tomar conta dos filhos; e, em suma, mostraram-se tão satisfeitos com a decisão que Anne ficou radiante com o que fizera e achou que a melhor maneira de passar a última manhã em Uppercross era ajudá-los a fazer os preparativos e vê-los partir de manhã cedo, embora, em consequência disso, ficasse sozinha na casa deserta.

Ela foi a última e, com exceção dos rapazinhos do chalé, foi mesmo a última, a única que ficou de tudo o que enchera e animara ambas as casas, de tudo o que fizera de Uppercross uma casa alegre. Que diferença alguns dias tinham realmente feito! Se Louisa se restabelecesse, tudo voltaria a correr bem. Recuperar-se-ia mais do que a felicidade anterior. Não podia haver qualquer dúvida, na sua mente não havia nenhuma, daquilo que se seguiria ao restabelecimento. Daí a alguns meses, a sala agora deserta, ocupada por ela, silenciosa e pensativa, poderia estar de novo cheia de tudo o que era feliz e alegre, tudo o que era vivo e luminoso no amor correspondido, tudo o que era diferente de Anne Elliot!

Uma hora de completa inatividade para pensamentos como estes, num dia sombrio de Novembro, com uma chuva miudinha espessa que mal deixava distinguir os poucos objetos que se viam da janela foi o suficiente para que lhe fosse extremamente grato ouvir o som da carruagem de Lady Russell; no entanto, apesar de desejar partir, ela não conseguia deixar a Casa Grande, nem despedir-se, com um olhar, do chalé, com a sua varanda negra, a escorrer, desconfortável, nem olhar, através dos vidros embaciados, para as últimas casas humildes da aldeia, sem sentir

uma enorme tristeza. Tinham ocorrido em Uppercross cenas que tornavam esta terra preciosa. Ela representava muitas sensações de dor, outrora intensa, agora suavizada; e alguns momentos de sentimentos ternos, alguns vislumbres de amizade e reconciliação que ela nunca voltaria a encontrar e que nunca deixariam de lhe ser caros. Ela deixou tudo para trás; tudo exceto a recordação de que tais coisas tinham acontecido.

Anne não ia a Kellynch desde que deixara a casa de Lady Russell em Setembro. Não fora necessário, e, nas poucas ocasiões em que lhe teria sido possível ir ao Solar, ela arranjara meios de se esquivar. O primeiro regresso foi para voltar a ocupar o seu lugar no moderno e elegante apartamento do Lodge e para alegrar os olhos da sua dona. A alegria de Lady Russell ao voltar a encontrá-la continha alguma ansiedade. Ela sabia quem frequentara Uppercross. Mas, felizmente, Anne, ou estava mais bonita e um pouco mais cheia, ou Lady Russell imaginava que estava; e Anne, ao receber os seus elogios, divertiu-se a relacioná-los com a admiração silenciosa do primo e a fazer votos para que lhe tivesse sido concedida uma segunda primavera de juventude e beleza.

Pouco depois de terem começado a conversar, ela apercebeu-se de uma alteração nos seus pensamentos. Os assuntos que mais lhe tinham ocupado o coração quando saíra de Kellynch e que achara que tinham sido menosprezados e que fora obrigada a abafar quando estava com os Musgrove tinham agora um interesse secundário. Ultimamente, ela até se esquecera do pai, da irmã e de Bath. Estas preocupações tinham desaparecido, suplantadas pelas de Uppercross, e, quando Lady Russell referiu os seus antigos desejos e temores, falou da satisfação com a casa em Camden Place que tinham alugado e de como lamentava que a Sra. Clay ainda estivesse com eles, Anne ter-se-ia sentido envergonhada se tivesse de admitir que estava a pensar mais em Lyme, em Louisa Musgrove e em todos os seus conhecimentos que lá se encontravam; e como estava muito mais interessada na casa e na amizade dos Harville e do comandante Benwick do que na casa do seu próprio pai em Camden Place, ou na amizade da irmã com a Sra. Clay. Ela teve mesmo de fazer um esforço para responder a Lady Russell com algo semelhante a interesse por estes assuntos, os quais, por natureza, deveriam estar em primeiro lugar.

Surgiu um ligeiro embaraço, de início, quando conversaram sobre outro assunto. Elas não podiam deixar de falar do acidente em Lyme. Ainda não tinham decorrido cinco minutos após a chegada de Lady Russell no dia anterior e já lhe fora feito um relato completo do sucedido, mas era impossível não voltar a falar nele; ela teve de fazer perguntas, lastimar a imprudência, lamentar o resultado, e o nome do comandante Wentworth foi referido por ambas. Anne teve consciência de não o fazer tão bem como Lady Russell. Só conseguiu dizer o nome e olhar Lady Russell nos olhos quando adotou o expediente de lhe contar resumidamente o que pensava da relação de afeto entre ele e Louisa. Depois de ter contado isto, deixou de se sentir perturbada com o nome dele. Lady Russell limitou-se a escutar calmamente e a desejar-lhes felicidades; mas, no seu íntimo, ela sentiu um prazer indignado, um desdém grato em relação ao homem que, aos 23 anos, parecera compreender o valor de Anne Elliot e, oito anos depois, se deixara encantar por alguém como Louisa Musgrove.

Os primeiros três ou quatro dias passaram-se muito tranquilamente, sem quaisquer circunstâncias dignas de referência a não ser a recepção de um ou dois bilhetes provenientes de Lyme que chegaram até Anne, sem ela saber como, e que traziam notícias das melhoras de Louisa. No fim desse período, a delicadeza de Lady Russell não lhe permitiu descansar mais, e as ameaças, embora mais esbatidas, de reviver o passado, surgiram num tom decidido:

Tenho de ir visitar a Sra. Croft, tenho mesmo de a visitar muito em breve. Anne, sentes-te com coragem para ir comigo fazer uma visita àquela casa? Anne não se esquivou, pelo contrário, ela estava a ser sincera quando respondeu:

Eu penso que, de nós duas, é provável que seja a senhora quem vai sofrer mais; os seus sentimentos estão menos reconciliados com a mudança do que os meus. Como fiquei perto, habituei-me à idéia. Ela podia ter falado mais sobre o assunto; na realidade, tinha uma ótima opinião sobre os Croft e pensava que o pai tivera muita sorte em os ter como inquilinos; além disso, eles não só constituíam um bom exemplo para a paróquia como prestariam mais atenção e auxílio aos pobres. Por tudo isso, por mais que lamentasse e tivesse vergonha de ter sido necessário mudarem-se, ela não conseguia, com toda a honestidade, deixar de pensar que os que tinham partido não mereciam ficar e que o Solar de Kellynch estava em melhores mãos do que quando estivera entregue aos dos seus proprietários. Estas convicções causavam-lhe, sem dúvida, um enorme sofrimento, mas impediam-na de sentir a mágoa que Lady Russell iria sofrer quando voltasse a entrar na casa e atravessasse os bem conhecidos aposentos. Nesses momentos, Anne não conseguia dizer para si própria: -Estas salas deviam pertencer-nos só a nós. Oh, como o seu destino é degradante! Como estão ocupados por quem não é digno deles! Uma família antiga ser assim afastada! Desconhecidos a ocuparem o seu lugar!¯ Isso não acontecia, exceto quando pensava na mãe e se lembrava de quando ela presidia a tudo; só então soltava um suspiro. A Sra. Croft tratava-a sempre com uma amabilidade que lhe dava o prazer de imaginar que ela lhe tinha amizade, e, nesta ocasião, ao recebê-la naquela casa, houve uma atenção especial. O triste acidente de Lyme logo se tornou o tópico dominante; e, ao comparar as últimas notícias sobre a doente, notaram que tinham sido escritas à mesma hora do dia anterior e que o comandante Wentworth estivera em Kellynch na véspera (a primeira vez desde o acidente), tinha trazido a Anne a carta cuja procedência ela não conseguira descobrir, ficara algumas horas e regressara de novo a Lyme - e sem a intenção de tornar a sair de lá. Ela ficou a saber que ele tinha perguntado particularmente por ela, tinha expressado a esperança de que a Menina Elliot estivesse a recuperar dos seus esforços, tinha-se referido aos seus esforços como enormes. Isto foi muito agradável e proporcionou-lhe mais prazer do que qualquer outra coisa poderia ter feito. Quanto à triste catástrofe em si, duas mulheres equilibradas e sensatas, cuja opinião se baseava em fatos conhecidos, só podiam encará-la de uma forma, e foi decidido que tinha sido a consequência de muita leviandade e muita imprudência, que os seus efeitos eram muito alarmantes e que era assustador pensar que, durante muito tempo, ainda haveria dúvidas sobre o restabelecimento da Menina Musgrove e que provavelmente ela iria sofrer, no futuro, os efeitos do traumatismo.

O almirante rematou o assunto, exclamando: - Sim, um caso muito triste. É uma moda nova, esta de um jovem cortejar uma menina, partir a cabeça da amada, não é verdade, Menina Elliot? Isto é realmente de fazer andar a cabeça à roda!

Os modos do almirante Croft não eram exatamente de molde a agradar a Lady Russell, mas encantavam Anne. A bondade do seu coração e a simplicidade do seu caráter eram irresistíveis.

Agora, isto pode ser muito desagradável para si – disse ele, despertando subitamente de um breve devaneio - ... encontrar-nos aqui. Devo dizer que não tinha pensado nisso antes, mas deve ser muito desagradável. Mas, agora, não faça cerimônia. Se quiser, percorra todos os aposentos da casa.

Noutra altura, sir, obrigada, agora não.

Bem, sempre que quiser. Pode entrar pelo bosque em qualquer altura. E é ali que guardamos os nossos guarda-chuvas, pendurados atrás da porta. Um bom lugar, não acha? Mas - (caindo em si) - talvez não ache que seja um bom lugar, pois os vossos eram sempre guardados dentro do armário.

Era sempre assim, acho eu. Os hábitos de uma pessoa podem ser tão bons como os de outra, mas todos nós gostamos mais dos nossos. Por isso, decida por si própria se é melhor dar uma volta pela casa ou não.

Anne, vendo que não parecia mal recusar, fê-lo com gratidão.

Para além disso, fizemos muito poucas alterações! prosseguiu o almirante, depois de pensar um momento. – Muito poucas. Em Uppercross, falámos-lhe sobre a porta da lavandaria. Isso foi um grande melhoramento. O que muito me espanta é que possa haver uma família no mundo que consiga suportar, durante tanto tempo, o incômodo de ela abrir como fazia! Diga, por favor, ao seu pai o que fizemos, e que o Dr. Shepherd pensa que é o melhor melhoramento que esta casa alguma vez sofreu. Na realidade, é justo dizer que as poucas alterações que fizemos foram para muito melhor. E a minha mulher quem merece os louros, porém. Eu fiz pouco mais do que mandar tirar os espelhos grandes do meu quarto de vestir, que era do seu pai. Um homem muito bom e um verdadeiro cavalheiro, tenho a certeza, mas eu penso, Menina Elliot - (com um ar pensativo) -, que ele deve ser um homem um tanto vaidoso para a sua idade. Tantos espelhos! Oh, meu Deus! Não era possível fugir da minha própria imagem. Por isso, pedi a Sophy que me desse uma ajuda e mudamo-los para outro quarto; agora sinto-me bastante confortável, com o meu pequeno espelho de barbear a um canto e outra coisa enorme de que nunca me aproximo.

Anne achou graça, mesmo contra a sua vontade, e não conseguiu encontrar resposta; o almirante, receando não ter sido suficientemente delicado, retomou o assunto, dizendo:

Na próxima vez que escrever ao seu pai, Menina Elliot, dˆ-lhe, por favor, cumprimentos meus e da Sra. Croft, e diga-lhe que estamos muito confortavelmente instalados e que não encontramos defeito nenhum na casa. A verdade que a chaminé da saleta do pequeno-almoço deita um pouco de fumo, mas isso é só quando o vento sopra de norte, o que, quanto muito, só acontece três vezes em cada Inverno. E, de um modo geral,já entramos na maior parte das casas dos arredores e podemos afirmar que não existe nenhuma melhor do que esta. Por favor diga-lhe isto, com os meus cumprimentos. Ele vai gostar de o ouvir.

Lady Russell e a Sra. Croft gostaram muito uma da outra, mas as relações que esta visita iniciou estavam destinadas a não ter seguimento imediato, pois, quando a visita foi retribuída, os Croft participaram que iriam ausentar-se por algumas semanas, para irem visitar os seus familiares no norte da região, e provavelmente não regressariam antes de Lady Russell seguir para Bath. Assim terminou todo o perigo de Anne se encontrar com o comandante Wentworth no Solar de Kellynch, ou de o ver na companhia da sua amiga. Estava a correr tudo bem, e ela sorriu ao pensar na ansiedade que desperdiçara com o assunto.


Capítulo Dois (Quatroze)

Embora Charles e Mary tivessem ficado em Lyme, após a ida do Sr. e da Sra. Musgrove para lá; muito mais tempo do que Anne imaginava que a sua presença fosse desejada, eles foram os primeiros da família a voltar para casa, e, assim que lhes foi possível, dirigiram-se a casa de Lady Russell.

Quando vieram embora, Louisa já se sentava, mas a sua cabeça, embora lúcida, estava extremamente fraca, e os seus nervos demasiado sensíveis; e, embora se pudesse dizer que, de um modo geral, a recuperação decorria muito bem, ainda era impossível dizer quando estaria em condições de suportar a viagem de regresso a casa; e o pai e mãe, que tinham de voltar a tempo de receber os filhos mais novos para as férias de Natal, acalentavam poucas esperanças de a trazerem com eles.

Tinham alugado uma casa para todos. A Sra. Musgrove saía com os filhos da Sra. Harville o mais que podia, e eram enviadas de Uppercross todas as provisões possíveis para aliviar o incômodo causado aos Harville, ao mesmo tempo que os Harville queriam que fossem jantar com eles todos os dias; enfim, parecia haver um esforço de parte a parte para demonstrar quem era mais generoso e hospitaleiro. Mary tivera os seus achaques, mas o fato de ter ficado tanto tempo tornava evidente que ela encontrara mais motivos de diversão do que de sofrimento.

Charles Hayter tinha ido a Lyme com mais frequência do que lhe agradava, quando jantavam em casa dos Harville só havia uma criada a servir à mesa e, a princípio, a Sra. Harville dera sempre a precedência à Sra. Musgrove; mas, ao saber de quem ela era filha, a Sra. Harville apresentara umas desculpas tão amáveis, e tinha havido tanto para fazer todos os dias, tinha havido tantos passeios da sua casa até à dos Harville, ela fora buscar tantos livros à biblioteca e trocara-os tantas vezes, que o prato da balança certamente pendera muito a favor de Lyme.

Tinham-na também levado a Charmouth, tomara banho, fora à igreja, e havia muito mais gente para observar na igreja de Lyme do que na de Uppercross - e tudo isto, aliado à sensação de se saber muito útil, tinha contribuído para que aquela quinzena fosse realmente agradável.

Anne perguntou pelo comandante Benwick. Uma sombra perpassou de imediato pelo rosto de Mary. Charles riu-se.

Oh! O comandante Benwick está muito bem, creio eu, mas ele é um jovem muito estranho. Não sei o que se passou com ele. Convidámo-lo a vir passar um dia ou dois conosco; Charles comprometeu-se a levá-lo a caçar, e ele pareceu encantado; pela minha parte, pensei que estava tudo decidido; quando, de repente, na terça-feira à noite, ele deu umas desculpas meio esquisitas,

-que nunca caçava-, que não o tínhamos compreendido bem-, que tinha prometido isto, tinha prometido aquilo, e a conclusão, fiquei a saber, era que não tencionava vir. Suponho que ele teve medo de se aborrecer aqui; mas juro que eu achava que uma vinda ao chalé era suficientemente animada para um homem com o coração despedaçado como o comandante Benwick.

Charles voltou a rir-se e disse:

Então, Mary, tu sabes muito bem o que realmente se passou. Foi tudo culpa tua - (voltando- se para Anne). - Ele pensava que, se viesse conosco, te encontraria por perto; ele imaginava que vivíamos todos em Uppercross; e, quando descobriu que Lady Russell vivia a três milhas de distância, faltou-lhe o ânimo e não teve coragem para vir. Foram esses os fatos, dou a minha palavra de honra, Mary sabe que são.

Mas Mary não cedeu de bom grado, quer por considerar que o comandante Benwick tinha direito, por nascimento ou posição, a estar apaixonado por uma Elliot, quer por não querer acreditar que Anne fosse uma atração maior em Uppercross do que ela própria. A boa vontade de Anne, porém, não fora diminuída pelo que ouvira. Reconheceu que se sentia lisonjeada e continuou a fazer perguntas.

Oh!, ele fala de ti - exclamou Charles - em tais termos... Mary interrompeu-o:

Pois deixa-me que te diga, Charles, que não o ouvi falar em Anne mais de uma vez durante todo o tempo em que lá estive. Digo-te, Anne, que ele nunca fala em ti.

Não - admitiu Charles. - Não sei se ele alguma vez o fez, de um modo geral; mas, no entanto, é muito óbvio que ele te admira imenso. Ele tem a cabeça cheia de livros que está a ler e que foram recomendados por ti, e quer conversar contigo sobre eles; ele descobriu qualquer coisa num deles que ele pensa; oh!, não me consigo lembrar, mas era algo muito bonito, ouvi-o falar com Henrietta sobre isso; e depois teceu os maiores elogios à Menina Elliot¯! Agora, Mary, digo-te que fui eu próprio que o ouvi, tu estavas na outra sala:

-Elegância, doçura, beleza. Oh, os encantos da Menina Elliot não têm fim.

Pois eu tenho a certeza - exclamou Mary acaloradamente de que, se o fez, isso não abona muito a seu favor. A Menina Harville só morreu em Junho. Não merece muito a pena conquistar um coração assim, não é verdade, Lady Russell? Tenho a certeza de que concorda comigo.

Antes de decidir, preciso de conhecer o comandante Benwick - disse Lady Russell, sorrindo.

E é provável que isso aconteça muito em breve, posso garantir-lhe, minha senhora - disse Charles. - Embora ele não tenha tido coragem para vir conosco e partir logo de seguida para vos fazer uma visita formal, um dia destes ele virá sozinho a Kellynch, pode contar com isso. Eu disse- lhe a que distância ficava e qual era a estrada, e disse-lhe que merecia bem a pena visitar a igreja, pois ele gosta desse tipo de coisas. Eu pensei que isso seria uma boa desculpa, e ele escutou com toda a atenção; e, pela sua reação, estou certo de que ele virá visitá-la em breve. Por isso, desde já a aviso, Lady Russell.

Qualquer conhecido de Anne será sempre bem-vindo em minha casa - foi a resposta amável de Lady Russell.

Oh!, quanto a ser conhecido de Anne - disse Mary -, eu acho que ele é mais meu conhecido, uma vez que o vi todos os dias durante uma quinzena.

Bem, então, como conhecido de ambas, terei muito prazer em conhecer o comandante Benwick.

Não o vai achar nada simpático, garanto-lhe, minha senhora. Ele é um dos jovens mais sensaborões que jamais existiram. Passeou comigo algumas vezes de uma ponta a outra do areal, sem dizer uma palavra. Não é um jovem nada bem educado. Tenho a certeza de que não vai gostar dele.

Nisso, as nossas opiniões diferem, Mary - disse Anne. Penso que Lady Russell vai gostar dele. Eu acho que Lady Russell gostará tanto do seu espírito que muito em breve deixará de notar quaisquer deficiências nos seus modos.

Também acho, Anne - disse Charles. - Estou certo de que Lady Russell irá gostar dele. É exatamente o tipo de pessoa que agrada a Lady Russell. Dêem-lhe um livro, que ele passará o dia a ler.

Sim, isso é verdade - disse Mary com ar de troça. – Ele fica sentado a ler o livro e nem dá por uma pessoa falar com ele, nem quando se deixa cair uma tesoura, nem quando acontece qualquer outra coisa. Achas que Lady Russell gostaria disso?

Lady Russell não pôde conter o riso.

Palavra de honra - disse ela - que, considerando-me eu uma pessoa decidida e prática, nunca me passaria pela cabeça que a minha opinião sobre alguém pudesse ocasionar tamanha diferença de conjecturas. Sinto realmente curiosidade em ver a pessoa que provoca opiniões tão contrárias. Espero que o convençam a visitar-nos. E, Mary, quando o fizer, podes ter a certeza de que ouvirás a minha opinião; mas estou decidida a não o julgar de antemão.

Não vai gostar dele, posso assegurar-lhe.

Lady Russell começou a falar noutra coisa. Mary conversou animadamente sobre o seu encontro, ou melhor, sobre como, espantosamente, não se tinha encontrado com o Sr. Elliot.

Esse é um homem - disse Lady Russell - que não tenho qualquer desejo de conhecer. A sua recusa em ficar em termos cordiais como o chefe da sua família provocou-me uma opinião muito desfavorável a seu respeito.

Esta declaração refreou o entusiasmo de Mary e fê-la interromper a sua descrição do aspecto de Elliot. Quanto ao comandante Wentworth, embora Anne não tivesse feito quaisquer perguntas, foram dadas voluntariamente informações suficientes. A sua disposição tinha melhorado muito ultimamente; e ele era agora uma pessoa muito diferente do que fora na primeira semana. Ele não visitara Louisa; estava tão receoso de que um encontro tivesse consequências graves para ela que não insistira em vê-la; pelo contrário, parecia ter um plano para se ausentar entre uma semana e dez dias, até a cabeça dela ficar mais forte. Ele falara em ir a Plymouth por uma semana e queria convencer o comandante Benwick a ir com ele; mas, conforme Charles afirmara, o comandante Benwick parecia muito mais disposto a vir a Kellynch. Não se pode duvidar de que, a partir desta altura, tanto Lady Russell como Anne pensavam ocasionalmente no comandante Benwick.

Lady Russell não conseguia ouvir a campainha da porta sem pensar que seria ele; e Anne também não conseguia voltar de um passeio solitário na propriedade do pai, de qualquer visita de caridade na aldeia, sem perguntar a si própria se iria vê-lo ou ter notícias dele. Mas o comandante Benwick não veio. Talvez se sentisse menos inclinado a fazê-lo do que Charles imaginara, ou então era demasiado tímido; e, depois de lhe conceder uma semana de tolerância, Lady Russell decidiu que ele não era merecedor do interesse que estava a começar a suscitar.

Os Musgrove regressaram a tempo de receber os seus felizes rapazes e meninas, vindos do colégio, e trouxeram consigo os filhos pequenos da Sraa Harville, o que fez aumentar o barulho em Uppercross e diminuir o de Lyme. Henrietta continuou junto de Louisa; mas o resto da família encontrava-se já novamente na sua residência habitual.

Lady Russell e Anne foram cumprimentá-los uma vez, e Anne não conseguiu deixar de sentir que Uppercross estava de novo cheia de vida. Embora nem Henrietta, nem Louisa, nem Charles Hayter, nem o comandante Wentworth lá estivessem, a sala apresentava um forte contraste com o estado em que a vira pela última vez. A Sra. Musgrove encontrava-se rodeada pelos pequeninos Harville, a quem ela protegia cuidadosamente da tirania das duas crianças do chalé, que tinham vindo expressamente para brincar com eles. A um lado, havia uma mesa, ocupada por algumas meninas que tagarelavam e cortavam papel de seda e papel dourado; noutro, havia tripeças com tabuleiros cheios de empadas, perto das quais rapazes turbulentos se divertiam ruidosamente; o conjunto era completado por uma lareira crepitante que parecia decidida a fazer-se ouvir, apesar de todo o barulho dos outros.

Charles e Mary também chegaram, claro, durante a sua visita; e o Sr. Musgrove fez questão de cumprimentar Lady Russell e sentou-se junto dela durante dez minutos, falando em voz muito alta, mas, devido ao barulho das crianças ao seu colo, geralmente em vão. Era um belo quadro de família.

Anne, julgando pelo seu próprio temperamento, teria considerado aquele furacão doméstico um péssimo restaurador dos nervos, que deviam estar tão abalados com a doença de Louisa; mas a Sra. Musgrove, que chamou Anne para junto de si para lhe agradecer repetidamente, com extrema cordialidade, as suas atenções para com eles, concluiu uma breve recapitulação do que ela própria sofrera, comentando, ao mesmo tempo que lançava um olhar feliz em redor, que, depois de tudo por que passara, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila em casa.

Louisa restabelecia-se rapidamente. A mãe pensava até que ela talvez pudesse vir para casa antes de os irmãos regressarem do colégio. Os Harville tinham prometido vir com ela e passar algum tempo em Uppercross, quando ela voltasse. O comandante Wentworth ausentara-se, de momento, para visitar o seu irmão em Shropshire.

Espero lembrar-me, de futuro- disse Lady Russell assim que se sentaram na carruagem -, de não visitar Uppercross nas férias de Natal. Toda a gente tem os seus gostos no que diz respeito aos ruídos, assim como em relação a outras coisas; e os sons são inofensivos ou extremamente perturbadores devido mais à sua natureza do que à sua intensidade.

Quando Lady Russell, não muito tempo depois, chegou a Bath numa tarde de chuva e percorreu as ruas desde Old Bridge a Camden Place, no meio do barulho das outras carruagens, do rolar surdo das carroças e carretas, dos gritos dos pregões dos ardinas, dos padeiros e dos leiteiros, e do incessante martelar das galochas, não se queixou. Não, estes eram barulhos que pertenciam aos prazeres do Inverno; o seu estado de espírito melhorava sob tal influência; e, tal como a Sra. Musgrove, ela sentia, embora não o dissesse, que, depois de uma longa permanência no campo, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila.

Anne não partilhava destes sentimentos. Ela persistia na sua firme, embora muito silenciosa, aversão a Bath; avistou vagamente as fileiras de edifícios, esfumando-se na chuva, sem qualquer vontade de as ver melhor; achou o avanço ao longo das ruas não só desagradável como demasiado rápido; pois quem ficaria contente de a ver quando chegasse? E recordou, com saudade, o bulício de Uppercross e a solidão de Kellynch. A última carta de Elizabeth tinha-lhe dado uma notícia de algum interesse. O Sr. Elliot encontrava-se em Bath. Fizera uma visita a Camden Place; fizera uma segunda, uma terceira visita; fora particularmente atencioso; se Elizabeth e o pai não se enganavam, ele esforçava-se tanto por estabelecer uma ligação e por proclamar o valor do parentesco como anteriormente se empenhara em manifestar indiferença. Se isso fosse verdade, era maravilhoso; e Lady Russell sentia uma agradável curiosidade e perplexidade em relação ao Sr. Elliot, retratando-se da opinião que há tão pouco tempo expressara a Mary, de que ele era um homem que não tinha qualquer desejo de conhecer. Ela tinha um grande desejo de o conhecer. Se ele queria realmente reconciliar-se, como um ramo submisso, então deviam perdoar-lhe por se ter separado da árvore paterna. Anne não se sentia tão entusiasmada com essa circunstância; mas sentia que gostaria de voltar a ver o Sr. Elliot, o que não acontecia com muitas outras pessoas de Bath.

Lady Russell deixou-a em Camden Place e seguiu depois para a sua residência emrivers Street.


Capítulo Três (Quinze)

Sir Walter tinha alugado uma casa muito boa em Camden Place, um local elegante e digno, como convinha a um homem importante, e tanto ele como Elizabeth se sentiam muito satisfeitos ali. Anne entrou nela com grande desânimo, antecipando um cativeiro de muitos meses e dizendo ansiosamente para si própria: Oh, quando vou voltar a sair daqui?- Uma certa cordialidade inesperada no modo como foi recebida fê-la sentir-se melhor. O pai e a irmã ficaram satisfeitos por a verem, para lhe mostrarem a casa e as mobílias, e trataram-na com amabilidade. O fato de passarem a ser quatro à mesa de jantar foi considerado uma vantagem. A Sra. Clay foi simpática e mostrou-se muito sorridente; mas a simpatia e os sorrisos eram habituais nela. Anne sempre achara que, à sua chegada, ela fingiria o que era apropriado; mas a amabilidade dos outros foi inesperada. Eles estavam obviamente muito bem-dispostos, e, pouco depois, ela ficou a saber porquê. Eles não estavam interessados em ouvi-la. Depois de estarem à espera de ouvir que a sua falta era muito sentida na região em que tinham vivido, o que Anne não lhes pôde dizer, limitaram-se a fazer apenas algumas perguntas antes de dominarem a conversa. Uppercross não tinha interesse nenhum, e Kellynch muito pouco; Bath era tudo.

Tiveram o prazer de lhe garantir que Bath satisfazia as suas expectativas em todos os aspectos. A casa era indubitavelmente a melhor de Camden Place; as suas salas de visitas eram superiores a todas as outras que tinham visto ou de que tinham ouvido falar; e essa superioridade residia também no estilo da decoração e no bom gosto da mobília. Toda a gente queria ser-lhes apresentada. Todos queriam visitá-los. Eles tinham-se esquivado a muitas apresentações e, mesmo assim, estavam sempre a receber cartões de visita de pessoas de quem nunca tinham ouvido falar. Eram esses os motivos do regozijo!

Deveria Anne sentir-se admirada por o pai e a irmã se sentirem tão felizes? Ela podia não se admirar, mas devia suspirar por o pai não se aperceber de quanto descera com a mudança, por ele não lamentar ter-se afastado das obrigações e perdido a dignidade de um proprietário residente nas suas terras; por encontrar tantos motivos de vaidade na mesquinhez de uma cidade; não conseguiu deixar de suspirar, sorrir, e, enquanto Elizabeth abria as portas e passava, radiante, de um salão para o outro, gabando o seu tamanho, de se admirar com o fato de esta mulher, que tinha sido senhora do Solar de Kellynch, conseguir sentir orgulho daquele espaço entre quatro paredes que distavam uns dez metros umas das outras.

Mas não era só isto que os fazia felizes. Tinham também o Sr. Elliot. Anne teve de ouvir falar muito do Sr. Elliot. Não só fora perdoado como estavam encantados com ele. Ele encontrava-se em Bath há duas semanas (passara por Bath em) Novembro, no caminho para Londres; nessa altura, soubera que Sir Walter estava ali instalado, mas, como só lá passara vinte e quatro horas, não tivera tempo para os cumprimentar); mas agora estava há duas semanas em Bath, e o seu primeiro cuidado, ao chegar, fora deixar o seu cartão em Camden Place, tendo, logo a seguir, feito frequentes tentativas para se encontrarem; quando se encontraram, tivera uma conduta tão franca e apresentara tão prontamente desculpas pelo passado, tanto empenho em voltar a ser recebido como parente, que o bom entendimento anterior fora completamente restabelecido. Não tinham encontrado um único defeito nele. Ele tinha explicado o que parecera ser desinteresse da sua parte.

Fora provocado por um mal-entendido; ele nunca tencionara ignorá-los; receara, sim, estar a ser ignorado, mas desconhecia o motivo; e a delicadeza obrigara-o a manter-se silencioso. Mostrara-se vivamente indignado quando foi sugerido que ele se tinha referido à família ou aos seus pergaminhos de um modo pouco respeitoso ou indiferente. Ele, que sempre se gabara de ser um Elliot e cujos sentimentos em relação a este parentesco eram demasiado rígidos para agradar ao tom antifeudal de hoje em dia! Estava, na realidade, espantado!

Mas o seu carácter e o seu comportamento em geral desmentiam-no. Sir Walter podia falar com todos os que o conheciam; e certamente que os esforços que fizera, nessa primeira oportunidade de reconciliação para recuperar o estatuto de parente e presumível herdeiro, eram uma prova evidente da sua opinião sobre o assunto. As circunstâncias do seu casamento também eram de molde a admitir muitas atenuantes. Este era um assunto sobre o qual ele não quisera falar; mas um amigo íntimo seu, um tal Coronel Wallis, um homem eminentemente respeitável, um perfeito cavalheiro (e de boa aparência, acrescentou Sir Walter) que vivia com bastante luxo em Malborough Buildings e que, a seu próprio pedido, lhes tinha sido apresentado pelo Sr. Elliot, mencionara uma ou duas coisas sobre o casamento que provocara uma grande diferença em relação à má impressão que tinham sobre o mesmo. O coronel Wallis conhecia o Sr. Elliot há muito tempo, conhecera bem amulher dele e compreendera perfeitamente toda a história. Ela certamente não era uma mulher de boas famílias, mas era instruída, prendada, rica e completamente apaixonada pelo seu amigo. Tinha sido esse o encanto. Ela aproximara-se dele. Sem essa atração, todo o seu dinheiro não teria sido suficiente para tentar Elliot. Além disso, assegurou ele a Sir Elliot, ela era uma mulher muito bonita.

Tudo isso amenizava a situação. Uma mulher muito bonita, com uma grande fortuna e apaixonada por ele! Sir Walter pareceu admitir que tudo isso constituía uma desculpa perfeita, e Elizabeth, embora não visse as circunstâncias sob uma luz tão favorável, concordou que era uma grande atenuante. O Sr. Elliot visitara-os repetidas vezes,jantara com eles uma vez, obviamente encantado com a honra de ter sido convidado, pois eles, de um modo geral, não ofereciam jantares; encantado, em suma, com todas as provas de atenção por parte dos primos e sentindo-se extremamente feliz por estar em relações íntimas com Camden Place.

Anne ouviu, mas sem conseguir compreender bem. Sabia que tinha de fazer concessões, enormes concessões, às opiniões dos que falavam. Sem dúvida que havia exagero naquilo que ouvia. Tudo o que soava a extravagante e irracional na reconciliação podia ter origem apenas na linguagem dos relatores. Mesmo assim, porém, ela tinha a sensação de existir algo mais do que era imediatamente aparente no desejo do Sr. Elliot de, ao fim de tantos anos, querer ser bem recebido por eles. Sob um ponto de vista mundano, ele não tinha nada a ganhar com o fato de estar de boas relações com Sir Walter, nem arriscava nada se continuasse em desacordo com ele. Com toda a probabilidade, ele era o mais rico dos dois, e a propriedade de Kellynch certamente seria sua no futuro, assim como o título. Um homem sensato! E ele parecera ser um homem muito sensato. Qual seria o seu objetivo? Ela só conseguia imaginar uma solução; era, talvez, por causa de Elizabeth. Talvez no passado ele tivesse gostado realmente dela, embora as conveniências e o acaso o tivessem arrastado para um caminho diferente, e, agora que ele podia dar-se ao luxo de fazer o que lhe agradava, talvez tencionasse fazer-lhe a corte. Elizabeth era certamente muito bonita, com modos elegantes e bem educados, e o Sr. Elliot talvez nunca se tivesse apercebido do seu caráter, uma vez que só a vira em público e ele próprio era, nessa altura, muito jovem. Como ele, agora mais velho e mais perspicaz, ver o temperamento e a inteligência dela era outra questão, bastante mais preocupante. Muito sinceramente, se o seu objetivo era, na verdade, Elizabeth, ela desejava que ele não fosse demasiado amável nem demasiado observador; e, pelos olhares que as duas trocavam quando se falava das visitas frequentes do Sr. Elliot, parecia óbvio que Elizabeth julgava que era e que a sua amiga, a Sra. Clay, encorajava a idéia.

Anne referiu tê-lo visto de relance em Lyme, mas não lhe prestaram muita atenção. Oh!, sim, talvez fosse o Sr. Elliot. Eles não sabiam. Talvez fosse ele.¯ Recusavam-se a ouvi-la descrevê-lo. Eles próprios, principalmente Sir Walter, o descreviam. Ele fez jus ao seu ar de cavalheiro, ao aspecto elegante e moderno, ao rosto bem delineado, aos seus olhos sensatos, mas, ao mesmo tempo, lamentava que tivesse o queixo tão saliente, um defeito que o tempo parecia ter acentuado; também não podia afirmar que, em dez anos, todos os seus traços não se tivessem alterado para pior. O Sr. Elliot parecia pensar que ele (Sir Walter) estava exatamente como quando se tinham separado pela última vez; mas Sir Walter não pudera retribuir-lhe cabalmente o elogio, o que o embaraçara.

Ele não tinha, porém, motivo de queixa. O Sr. Elliot era mais bem-parecido que a maior parte dos homens, e ele não tinha qualquer objeção a ser visto em qualquer lado na sua companhia.

Falaram sobre o Sr. Elliot e os seus amigos de Malborough Buildings durante toda a noite. O coronel Wallis mostrara-se tão impaciente em lhes ser apresentado! E o Sr. Elliot tão ansioso por que o fosse. E havia uma Sra. Wallis, de quem, de momento, apenas tinham ouvido falar, pois ela esperava o nascimento de um filho; mas o Sr. Elliot referia-se a ela como uma mulher encantadora, bem digna de Camden Place", e, assim que se restabelecesse, conhecê-la-iam.

Sir Walter tinha a Sra. Wallis em grande consideração, dizia-se que ela era uma mulher extremamente bonita. Ele ansiava por conhecê-la. Tinha esperança de que ela o compensasse das muitas caras feias com que se cruzava continuamente na rua. O pior de Bath era a quantidade de mulheres feias que lá havia. Ele não queria dizer que não houvesse mulheres bonitas, mas o número das menos atraentes era desproporcionadamente maior. Ele tinha reparado com frequência, quando passeava, que a um rosto bonito se seguiam trinta ou trinta e cinco rostos medonhos; e uma vez, quando entrara numa loja em Bond Street, contara oitenta e sete mulheres a passar, uma atrás de outra, sem que houvesse um rosto tolerável entre elas. Tinha sido uma manhã fria, com uma geada glacial, que dificilmente uma mulher em mil conseguiria enfrentar.

Mas, mesmo assim, havia certamente uma grande quantidade de mulheres feias em Bath; e, quanto aos homens, esses eram infinitamente piores. As ruas estavam cheias de espantalhos! Pelo efeito que um homem de aspecto decente produzia, era óbvio que as mulheres não estavam muito habituadas a ver homens de aspecto tolerável. Ele nunca fora a lado nenhum de braço dado com o coronel Wallis (que tinha uma bela figura militar, embora fosse ruivo), sem notar que os olhos de todas as mulheres convergiam para ele, que os olhos de todas elas se fixavam no coronel Wallis. Que modesto, Sir Walter!

Ele não conseguiu fugir, porém. A filha e a Sr.a Clay aliaram-se a sugerir que o companheiro do coronel Wallis talvez tivesse uma figura tão atraente como o coronel Wallis, e certamente não era ruivo.

Como está Mary? - perguntou Sir Walter, muito bem-disposto.

A última vez que a vi, ela tinha o nariz vermelho, mas espero que isso não aconteça todos os dias.

Oh! Não, isso deve ter sido acidental. De um modo geral, ela tem estado de boa saúde e com muito bom aspecto desde o dia de São Miguel.

Se eu achasse que isso não iria tentá-la a sair com ventos cortantes que lhe estragariam a pele, enviar-lhe-ia uma peliça e um chapéu novos.

Anne estava a pensar se se atreveria a sugerir que um vestido ou uma touca não teriam provavelmente a mesma má utilização, quando uma pancada na porta suspendeu tudo.

Bateram à porta, e tão tarde! Eram dez horas. Seria o Sr. Elliot? Eles sabiam que ele deveria jantar em Lansdown Crescent. Era possível que ele passasse por ali no caminho para casa, para saber como estavam.

Eles não conseguiam pensar em mais ninguém. A Sra. Clay pensou decididamente que era o toque do Sr. Elliot. A Sra. Clay teve razão.

Com todo o cerimonial que um único mordomo e um único lacaio permitiam, o Sr. Elliot foi introduzido na sala. Era o mesmo, exatamente o mesmo homem, diferente apenas no vestuário. Anne recuou um pouco, enquanto os outros recebiam os seus cumprimentos, e a irmã as suas desculpas por ter aparecido a uma hora tão invulgar, mas ele não conseguia estar tão perto sem desejar certificar-se de que nem ela nem a sua amiga se tinham constipado no dia anterior", etc., etc., o que foi feito muito educadamente e recebido o mais delicadamente possível; mas seguiu-se a vez dela. Sir Walter falou na filha mais nova; Sr. Elliot, permita-me que lhe apresente a minha filha mais nova¯ (não era ocasião para se recordar de Mary), e Anne, sorridente e corada, deixou o Sr. Elliot ver as suas bonitas feições, as quais ele de modo algum esquecera, e viu imediatamente, achando graça ao seu ligeiro sobressalto de surpresa, que, na altura, ele não soubera quem ela era. Ele parecia completamente espantado, mas mais satisfeito do que espantado; os seus olhos brilharam de alegria e, com grande regozijo, congratulou-se pelo parentesco, aludiu ao passado e pediu que o considerasse já como conhecido.

Ele era tão bem-parecido como lhe parecera em Lyme, o seu rosto melhorava quando falava, e os seus modos eram exatamente o que deveriam ser, tão educados, tão naturais e tão particularmente agradáveis, que ela só os podia comparar, em excelência, aos de uma outra pessoa. Não eram os mesmos, mas eram, talvez, igualmente primorosos. Ele sentou-se junto deles, e a conversa melhorou com a sua participação. Não havia qualquer dúvida de que era um homem sensato. Bastaram dez minutos para provar isso. O seu tom, as suas expressões, a sua escolha de assunto, o fato de ele saber quando parar - tudo era função de uma mente sensata e perspicaz. Assim que pôde, ele começou a conversar sobre Lyme, desejando comparar opiniões a respeito daquele local, mas querendo particularmente falar sobre a circunstância de terem estado alojados ao mesmo tempo na mesma hospedaria, relatar a sua própria viagem, conhecer algo sobre ela e lamentar ter perdido uma tal oportunidade de a cumprimentar.

Ela fez-lhe um breve relato do seu grupo e do que a levara a Lyme. À medida que escutava, ele sentia cada vez mais pena. Passara a noite sozinho na sala ao lado da deles; ouvira continuamente vozes e risos; pensara que devia ser um grupo de pessoas agradabilíssimo; desejou poder juntar-se a eles; mas, certamente, nunca desconfiara de que tinha o mínimo direito de se apresentar. Se ao menos tivesse perguntado quem eles eram, o nome Musgrove ter-lhe-ia dito o suficiente. Bem, isto ia servir-lhe de emenda e curá-lo do hábito absurdo de nunca fazer perguntas numa hospedaria, hábito que adotara ainda muito jovem, baseado no princípio de que era muito indelicado ser curioso.

As idéias de um jovem de vinte e um anos - disse ele sobre as maneiras que deve ter para se tornar um modelo de distinção são mais absurdas, creio eu, que as de qualquer outro grupo do mundo. A loucura dos meios que ele muitas vezes utiliza só é igualada pela loucura do seu objetivo. Mas ele sabia que não devia estar a falar só com Anne; e, passado pouco tempo, ele estava a conversar com os outros, só voltando a referir-se a Lyme de vez em quando. As suas perguntas, porém, acabaram por conduzir a uma descrição do acontecimento em que ela estivera envolvida pouco depois de ele ter partido.

Quando ela se referiu a um acidente, ele quis saber pormenores. Quando ele fez perguntas, Sir Walter e Elizabeth começaram também a fazer perguntas; mas era impossível não sentir a diferença na maneira como eles o fizeram. No desejo de compreender realmente o que se passara e no grau de interesse pelo que ela sofrera ao presenciá-lo, ela só podia comparar o Sr. Elliot a Lady Russell.

Ele ficou uma hora com eles. Só quando o elegante relógio em cima da lareira bateu às onze horas com o seu tinir de prata e se começou a ouvir ao longe o guarda noturno a dizer o mesmo é que o Sr. Elliot, ou qualquer deles, pareceu ter a noção de que ele estivera lá tanto tempo. Anne não imaginara possível que a sua primeira noite em Camden Place corresse tão bem!


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