olá,
hoje eu li uma matéria no The Guardian sobre o manuscrito inacabado que Hilary Mantel, premiada autora de Wolf Hall (entre outros títulos), deixou. A manchete já diz logo que era uma fanfic de Orgulho e Preconceito, então eu me interessei na hora.
Depois vi que era sobre Mary Bennet, a irmã do meio. Perdi 50% do interesse porque Austen nunca quis dar crédito a Mary. Como sei disso? Ora, ela fez uma Bennet sob medida para Mr. Collins, mas casou o primo chato com Charlotte Lucas. Se Mary tivesse papel maior do que ser alívio cômico ao piano ou no zelotismo, ela teria ao menos dado uma doença da moda para a pobre irmã do meio - fez isso com Kitty, não foi?
Aparentemente, Mantel escolheu Mary porque considerava a personagem uma outsider como Cromwell na era Elizabetana. Olha, uma coisa que aprendi em Austenation é que todos somos donos e proprietários de Jane e cada um entende a obra dela como quer. Então, se Mantel queria ver em Mary algo que Austen não colocou, a escolha era dela.
Isso me traz ao assunto deste post: subjetividade.
Para isso, vou te mostrar o trecho divulgado deste manuscrito inacabado de Mantel. Reproduzo o que o Guardian postou na versão original (propriedade de Tertius Enterprises) e em tradução livre feita por mim.
POVOCATION
An extract from Mantel’s unfinished Austen satire
Elizabeth took her new sister’s silence as a token of profundity. But I myself saw that, compared to Georgiana, my sister was Socrates. And this led me to question, in due course, whether Darcy himself were in command of any significant intellectual power. How often, I believe, we women must suppress the question? A solemn countenance, a grave manner, a pre-occupied frown; these suggest to us a mastering of life’s perplexities born of a habit of deep reflection, and vigorous examination of every fact and circumstance. Yet, but what if the frown means nothing but ill humour? If the grave and pre-occupied air means nothing but insufficiency in the face of whatever circumstances present? What if the long silences, so intimidating to my sex, are merely the consequence of having nothing to say? What if that prevailing solemnity results from a simple failure to see the joke? Reader, to think it is to know it: Darcy was a more harmless soul than we had imagined, and replete with good intentions; his silence in company proceeded, not from a conviction of natural superiority, but from a solid, sterling stupidity, such as an English gentleman alone dares display. When was Darcy ever contradicted? His every assertion was treated as scripture. When were his wishes not performed, as if they were law? Such infallible consideration must divide a man from himself: he is dull but never knows it, for he receives witty answers to witless questions. I saw that it would be Elizabeth’s lifetime work to collaborate with his innocent self-conceit. It is what she will give, in return for being mistress of Pemberley.
“Darcy believes it is going to rain!”– and the whole county must seek cover. “Darcy believes there will be a vote in the house!” and all interested parties are agog. Never mind that the sky is clear. Never mind that Parliament is prorogued. We simple souls will all agree that Darcy has power to perceive what is hidden from us, because he is a man, and a gentleman and has a park that is ten miles round. - fim do trecho.
- tradução livre -
PROVOCAÇÃO
Um trecho da sátira inacabada de Austen por H. Mantel
"Elizabeth interpretou o silêncio de sua nova irmã como um sinal de profundidade. Mas eu mesma vi que, comparada a Georgiana, minha irmã era Sócrates. E isso me levou a questionar, em sequência, se o próprio Darcy tinha comando de algum poder intelectual significativo. Quantas vezes, creio eu, nós, mulheres, devemos suprimir a pergunta? Um semblante solene, uma forma grave, uma carranca preocupada; estas expressões nos sugerem um domínio das perplexidades da vida nascido do hábito de reflexão profunda e exame vigoroso de cada fato e circunstância. No entanto, mas e se a carranca não significar nada além de mau humor? Se o ar grave e preocupado não significa nada além de frustração diante de quaisquer circunstâncias presentes? E se os longos silêncios, tão intimidantes para o meu sexo, forem apenas consequência de não ter nada a dizer? E se essa solenidade predominante resultar de uma simples falha em entender a piada? Leitor, pensar é saber: Darcy era uma alma mais inofensiva do que imaginávamos, e repleta de boas intenções; seu silêncio em companhia provinha, não de uma convicção de superioridade natural, mas de uma estupidez sólida e genuína, como só um cavalheiro inglês ousa exibir. Quando Darcy foi contrariado? Cada afirmação sua foi tratada como sagrada. Quando seus desejos não foram atendidos, como se fossem lei? Tal consideração infalível deve separar um homem de si mesmo: ele é obtuso, mas nunca sabe disso, pois recebe respostas espirituosas para perguntas sem sentido. Percebi que seria o trabalho de toda a vida de Elizabeth colaborar com sua presunção inocente. É o que ela dará em troca de ser a dona de Pemberley.
― Darcy acredita que vai chover! ― e todo o condado deve procurar abrigo. ― Darcy acredita que haverá uma votação no parlamento! ― e todas as partes interessadas estão ansiosas. Não importa que o céu esteja claro. Não importa que a sessão no Parlamento seja adiada. Nós, almas simples, concordaremos que Darcy tem o poder de perceber o que está escondido de nós, porque ele é um homem, um cavalheiro e tem uma propriedade de dezesseis quilômetros de extensão." fim do trecho
E chegamos onde eu quero: vamos falar de Lizzy.
A divulgação desse trecho (o único polido o bastante para ser divulgado, segundo o viúvo da autora) pode ter várias razões:
- chamar atenção atacando Mr. Darcy
- mostrar o humor mordaz da autora
- vender um feminismo anacrônico que ridiculariza Austen
- provocar demanda para publicar a obra
Eu não sei se gosto do que li porque Lizzy é vista como uma interesseira que faz tudo para manter sua posição. Eu mesma já comparei Lizzy com Charlotte, elas são lados do mesmo espelho, na minha opinião. Mas o que me incomoda aqui é pintar a impulsividade vibrante de uma como a sagacidade calculada da outra.
aesthetics |
Austen não nos apresentou Charlotte com 19 anos, não sabemos se ela gostava de flertar e mostrar sua inteligência, se gabava por ser esperta e julgava todo mundo por esporte. Quando a conhecemos, ela é uma jovem mulher sensata que entende a realidade feminina e precisa lidar com urgência da garantia de sua sobrevivência.
Já Lizzy nos é mostrada na flor da juventude. Vibrante, linguaruda, inconsequente, a estrela brilhante de uma família de garotas cujo patrimônio está atrelado a um herdeiro homem - que não existe. A beleza de Lizzy é justamente enfrentar a vida como se não tivesse o peso da realidade lhe puxando para baixo como uma âncora.
Ao rejeitar Mr. Collins (herdeiro do patrimônio que a sustenta) e depois Mr. Darcy (milionário), ela mostra que é regida pela emoção - reage com o fígado! Se ela pensasse mais objetivamente, teria aceitado qualquer uma das duas, por mais insuportável que fosse a convivência com um homem boçal ou com um arrogante.
Claro, a personagem amadurece (muito) ao longo da trama. Eu considero que ela tem um arco dentro do arco. Te explico. Lizzy começa arrogante e inconsequente, enfrenta desafios, quebra a cara, passa um aperto, faz as pazes consigo mesma e aceita o amor. Esse quebra a cara 'crescimento pessoal' é o arco secundário.
- ele é rico e por isso pode arcar com o custo de escrever tanto em papel caro;
- ele entrega em mãos evitando expô-la já que solteiros honrados não deveria trocar correspondência;
- ele conta segredos de família dizendo que confia na discrição dela;
- ele justifica tim-tim por tim-tim a avaliação que fez do comportamento público da família dela;
- ele avisa que não vai repetir que a ama.
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