Série PRINCESAS POSSÍVEIS
VOLUME 1
romance inspirado em 'A bela e a fera'
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Petrônio checou o celular, olhou em volta, andou até o
fim da rua e quando estava pronto para ligar para seu secretário e conferir o
endereço, viu a fachada charmosa da livraria recuada na calçada. O letreiro era
pequeno como uma bandeirola lateral, ele esteve procurando letras grandes e
vitrines iluminadas.
Quando empurrou a porta recebeu o golpe forte do
cheiro gelado de livro da loja climatizada. Por fora parecia modesta, mas era
enorme. Longa como um sobrado do século passado, estantes de madeira lustrada,
iluminação difusa, poltronas estofadas espalhadas entre as mesas cobertas de
volumes.
Um sorriso lhe esticou os lábios, o cheiro de madeira
mexia com sua memória afetiva, de repente estava na oficina do seu pai e avô em
meio a serragem, chegou a ouvir o zumbido dos tornos.
Deveria ser bom presságio, as coisas iam dar certo,
pensou consigo mesmo e sacudindo a cabeça reparou em movimento na estante do
fundo.
‘Boa tarde?’
‘Boa!’
Naquela manhã, tinha acordado tenso ainda resolvendo
pontas soltas de Brasília, estava preocupado em acertar a última pendência, o
local onde encontraria o tal intelectual tinha cheiro de infância, a voz
engraçada do camarada magrinho de boné no alto da escada fez Petrônio rir
baixinho. ‘Estou procurando Machado.’
‘Pois não?’ Cibele se virou na escada sorrindo e
franziu a testa. ‘Conheço você... Da academia?’
Petrônio também franziu a testa chegando mais perto.
‘Cibele, certo? Me deu uma surra no outro dia.’
‘Isso!’ Ela tirou os três pregos da boca. ‘O pessoal
disse que você está fazendo aulas de manhã. Gostando?’
Ele se retorceu. ‘Ainda me acostumando.’
Cibele esperou a cantada com certa ironia. Geralmente
os caras tentavam conquistá-la logo que a conheciam, esse tinha levado mais de
uma semana. Talvez tivesse ganhado coragem quando ela perguntou por ele na
academia, alguém deve ter comentado. Como ele parecia estar ocupadíssimo em
analisar todos os detalhes das estantes e das milhares de lombadas de livros,
ela resolveu tomar a dianteira. ‘Estava tentando arrumar aquela barra lá em
cima.’ Apontou para o gato de cabelo grisalho e olhos fundos ver onde precisava
de conserto. ‘Está soltando.’
Petrônio não precisava fazer nenhum favor à bela
lutadora, mas era um cavalheiro e não estava com pressa. ‘Chama-se testada.’
Ele sorriu pegando o martelo. ‘Com unhas de gato muito caprichadas.’ De perto,
o trabalho de marcenaria era ainda mais detalhado. ‘Estantes muito bonitas, bem
cuidadas.’
Ela estendeu os pregos. ‘Obrigada.’
Ele pegou, olhou com cuidado e devolveu. ‘Melhor se
for sem cabeça.’
‘Prego sem cabeça!’
‘Sim. De dezesseis.’
‘Huh?’
‘Pequenos assim.’ Ele mostrou apertando o polegar
contra o dedo indicador. ‘Sua marcenaria merece ser cuidada.’
‘Entende mesmo de madeira...’
‘Pai e avô marceneiros.’ Ele sorriu. ‘Tem os pregos?’
‘Huh-huh.’ Ela sacudiu a cabeça. ‘Só esses.’
‘Não.’ Ele desceu da escada. ‘Compra os sem-cabeça e
coloca bem no canto, cuidado para não machucar a unha de gato.’ A mulher bonita
franziu a testa sob o boné, ele sorriu e acariciou as três ranhuras na lateral
da estante. ‘Essas canaletas que terminam em elevação curva são chamadas de
‘unha de gato’, coisa de marceneiro bom, competente.’
Cibele balançou a cabeça recebendo o martelo de volta.
‘Xavier Machado?’ Petrônio insistiu sorrindo seu bom
humor. ‘Seu marido? Patrão?’
‘Pai.’ Cibele fechou a escada e ele pegou para
ajudá-la a guardar no armário no fundo da loja. ‘Precisa de alguma coisa em
especial? Livro de arte ou-’
‘É só com ele mesmo.’
‘Ok.’ Levantou os ombros, agradeceu o cavalheirismo de
manobrar a escada pesada, soltou o cabelo do boné e no balcão, ela ligou para o
pai pedindo para ele descer. ‘Pode esperar no escritório do fundo.’ Cibele
disse mal disfarçando o risinho de deboche. Seu pai ia olhar para o cara,
balançar a cabeça e mandar resolver com ela.
Petrônio enfiou as mãos nos bolsos e levantou o rosto
para o sol filtrado pela pérgola do grande jardim de inverno ligando a livraria
ao escritório por um pátio muito charmoso. O lugar realmente só poderia
pertencer a um amante da literatura.
De longe ele viu a mulher bonita tirar livros de uma
caixa e arrumar na mesa da frente, sua silhueta tão bonita escondida no macacão
jeans que só deixava metade da camiseta justa e os ombros à mostra. Quem diria
que a fera loura trabalhava em uma livraria?
O homem barrigudo de cabeça branca entrou por uma
porta lateral, beijou a testa da filha adulta e esticou a mão indicando o
escritório.
Confortavelmente sentado na cadeira estofada atrás da
sua mesa cheia de livros empilhados, Xavier desviou os olhos para o cartão de
visitas. ‘Quem me indicou, Petrônio Rocha
Leão?’ Perguntou limpando as lentes dos óculos em um lenço que sacou do
bolso da calça depois de ouvir a proposta de serviço.
‘Um amigo em comum.’ Petrônio se recostou na cadeira
em frente à mesa coberta de papel e livros. ‘Foi muito bem recomendado.’
‘Faço ghost writing,
mas não gosto muito.’ Xavier recolocou os óculos no rosto e o lenço no bolso. ‘É
trabalhoso e paga mal.’
‘Faça seu orçamento, será honrado.’
‘Seu amigo vai pedir desconto.’
‘Eu vou pagar diretamente.’
Xavier esperou.
‘Sr. Machado, preciso de um serviço primoroso de
qualidade inquestionável e isso tem seu preço. Quem pegar esse livro poderá
reclamar das revelações, mas não da linguagem e principalmente não de erros
gramaticais.’ Petrônio se inclinou apoiando os cotovelos nos joelhos. ‘Sigilo
absoluto, faremos um contrato meticuloso.’
‘O quão sigiloso?’
‘Somente você e ele estarão envolvidos.’
‘Sou funcionário público, preciso cumprir horário,
minha filha me ajuda.’
‘Consigo licença remunerada para que se dedique a esse
projeto especial.’
Xavier levantou as sobrancelhas. ‘Ainda assim Cibele
trabalha comigo.’
‘Então, serão vocês três envolvidos.’
‘Você vai pagar, mas não vai ver?’
‘Não.’
O velho meneou a cabeça piscando devagar. ‘Tem
habilidade para controlar a curiosidade e a ansiedade a este ponto?’
‘Conheço boa parte do que será revelado, sei que será
chumbo grosso. Esse meu...’ Petrônio pausou para escolher o termo correto.
Acabou por escolher o mais indicado no momento. ‘Amigo, está me ajudando a me desligar da colocação que exerci por
anos e preciso retribuir a gentileza.’
‘E sobre o que seria este livro?’
‘Uma biografia.’
‘De quem?’
‘Um ex-congressista, atualmente age como assessor
parlamentar.’
‘Brasília.’
‘Sim.
‘Desculpe-me o ceticismo.’
Ficou claro para Petrônio que a boa vontade do homem requeria
alguma explicação (mesmo que frugal). ‘Me dediquei à função similar por uma
década, mas este parece ser o momento exato para me desligar. Esse amigo foi
meu maior concorrente por muito tempo, agora assume meus clientes e causas.’
‘Imagino que ser assessor parlamentar seja trabalho de
prestígio com boa remuneração.’ Xavier investigou. ‘E vai sair.’
‘Sim.’
‘Respeito a discrição, mas me parece duvidoso.’
‘O trabalho de lobista tem essa conotação, é normal
pensar assim. No meu caso específico, saio do Planalto no auge da carreira por
não gostar do rumo que as coisas estão tomando; quem assume o poder das Casas
faz um esquema perigoso. Tenho visto um movimento da Federal que nunca vi
antes, Brasília não é mais a mesma. Decidi me dedicar à iniciativa privada.’
Petrônio se recostou novamente. ‘Mas o assunto não sou eu. Podemos acertar
todos os detalhes antes que conheça meu amigo e depois vocês decidem se
trabalharão juntos.’
‘Tem outras opções em vista? Procure outro, ghost writing não é meu passatempo preferido.’
Xavier prendeu os lábios.
‘Tenho três outros nomes, mas o seu é o primeiro da
lista.’
‘Entendo. Cibele?’ Levantou a voz.
‘Pai?’ Ela respondeu da loja.
‘Imprime uma cópia do meu contrato de ghost writer, por favor.’
‘Você não faz mais isso, lembra?’
‘Essa menina é autoritária demais.’ Reclamou sacudindo
a cabeça. ‘Pega?’ Insistiu.
Poucos minutos depois estavam no meio da xícara de café expresso quando Cibele entrou no
escritório e o pai indicou Petrônio que agradeceu com um sorriso apertado nos
lábios.
‘Já conhece minha filha?’
‘Sim.’ Petrônio trocou olhares com ela. ‘Me deu uma
surra na semana passada.’
‘Na academia ou na rua?’ O pai riu vendo a expressão
no rosto do homem. ‘A incentivei na prática de lutas logo cedo para proteção
contra admiradores mais ardentes. Ela sempre foi assim, linda, desde pequena e
só tem guarda-costas há pouco tempo.’
‘Olha o respeito, pai!...’ Cibele apontou o dedo e o
pai riu mais alto. ‘Não liga, Petrônio. Ele debocha, mas é tão solidário quanto
eu; inclusive foi ele quem primeiro deixou Átila usar o banheiro aqui do
jardim.’ Ela apontou a porta vermelha em meio a vasos de plantas bem cuidadas.
‘É um homem educado em situação de rua, retribui como pode.’
Sem comentar, Petrônio pensou que o que viu no dia do
jogo fazia um pouco mais de sentido. Abaixou os olhos para os papéis e quatro
segundos foram suficientes para examinar o contrato de três páginas. ‘É razoável,
vou fazer alguns adendos.’
‘Diga quais são e organizamos, eu ou Cibele. Não
advogamos, mas temos registro na Ordem.’
‘Melhor.’ Petrônio balançou a cabeça devagar,
pálpebras apertadas e olhar vago como se pensando em algo em especial. ‘Vamos
cavar uma ação para você ajuizar para ele, assim garantimos confidencialidade.’
‘Está esperando problemas?’
‘Se ele gostar de você, acho que temos potencial para
revelações explosivas; vou sondar editoras, quero que ele tenha todas as
opções. O que está fazendo por mim vale minha atenção.’
Cibele sentou na janela do jardim de inverno e cruzou
os braços. ‘Se são revelações sérias com um viés de opinião, acho que deveria
considerar auto publicação.’ Os dois homens focaram nela. ‘Um editor pode ficar
com medo de processos, exigir cortes. Ou mesmo ter que prestar contas a algum
grupo...’
O pai concordou com a cabeça. ‘Bem pensado, querida.
Mas nesse caso ia precisar de divulgação, um serviço de relações públicas
competente...’ Se virou para Petrônio. ‘A não ser que a compilação já seja
suficiente para catalogar memórias.’
‘Relações públicas e marketing são minha
especialidade, minha equipe pode facilmente cuidar disso sem chamar atenção.
Somos conhecidos de longa data, seria até esperado que ele me contratasse para
essa função.’
‘Resolvido, então.’
‘Vou para Brasília amanhã, depois preciso estar em São
Paulo e só devo voltar no final da semana. Antes disso meu assessor vai enviar
as cláusulas revisadas, temos um advogado especializado na minha equipe direta.’
Petrônio levantou esticando a mão para o velho. ‘Senhor Machado-’
‘Xavier.’
‘Xavier, espero seu preço. Vou cobrir.’
‘E aí, pai?’ Cibele
perguntou depois que o homem havia saído da livraria.
‘Parece uma
armadilha.’
‘Por que alguém ia
querer te pegar em uma armadilha?’ Sorriu ironicamente. ‘Nem impostos a gente
deve!’
‘Pode não ser para
mim, mas me usando como instrumento.’
‘Cobra caro, deve ser
suficiente para espantar o cara.’
‘É o que você faz com
admiradores, exige restaurantes caríssimos?’
Ela deu de ombros. ‘Dá
certo.’ E torceu o nariz. ‘Achei que ele estava aqui para me chamar para sair.’
‘Orgulho ferido?’
‘Não exatamente, só fiquei
surpresa... Parece um cara sério, né?’
‘Estou desconfiado
apesar da aparência de credibilidade.’
‘Declina a oferta logo
de cara, pai.’
‘E como fica minha
curiosidade?’ Ele sorriu. ‘Vou trabalhar.’ Beijou a testa da filha, pegou o
paletó do terno e saiu.
E começaram!...
Depois disso, tem muita estória, muitas rosas, muito amor...
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