& Moira Bianchi: Persuasão de Jane Austen - parte 2

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Persuasão de Jane Austen - parte 2

 Persuasão

Jane Austen

Créditos:

Por ocasião da Leitura Coletiva do Clubinho do Canal/Podcast Sincericídio Literário, resolvi postar na íntegra a tradução encontrada no Free-Ebooks.net e Biblioteca Digital

Agradeço a gentileza de postar. 

Direitos autorais são interamente ligados a estas fontes, eu não fiz alterações e/ou correções. Clique nos nomes para ter acesso a essas versões que, infelizmente, não incluem os famosos 'CAPÍTULOS DELETADOS' que foram traduzidos por mim em julho de 2025.

O uso de imagens capas de diversas edições é meramente decorativo.


PARTE 2

leia a parte 1 aqui

Capítulo Seis

Anne não precisara desta visita a Uppercross para saber que uma mudança de um grupo de pessoas para outro, embora a uma distância de apenas três milhas, inclui muitas vezes uma mudança total nas conversas, opiniões e idéias.

Ela nunca estivera lá hospedada sem que isso lhe viesse à mente, nem sem desejar que outros Elliot tivessem a mesma oportunidade de ver como eram ali desconhecidos e irrelevantes os assuntos que no Solar de Kellynch eram considerados de tão grande interesse; no entanto, com toda esta experiência, ela achava que lhe era necessário aprender mais outra lição sobre a arte de conhecer a nossa própria insignificância fora do nosso círculo - pois, certamente vindo como ela viera, extremamente preocupada com o assunto que tinha ocupado completamente as duas casas de Kellynch durante tantas semanas, ela esperara mais curiosidade e simpatia do que a que encontrou nos comentários do Sr. e da Sra. Musgrove, feitos em ocasiões diferentes, mas de conteúdo muito semelhante:

Então, menina Anne, Sir Walter e a sua irmã foram-se embora; em que parte de Bath pensa que eles se irão instalar? - E isto dito sem que esperasse resposta, ou nas palavras adicionais das jovens.- Eu espero que nós passemos o Inverno em Bath; mas lembre-se, papá, se formos, queremos ficar num local bem situado... nada de Queen Squares! Ou ainda no ansioso remate de Mary.

Não há dúvida de que ficarei muito bem aqui, quando todos vós estiverdes felizes em Bath! A única coisa que ela podia fazer era, de futuro, evitar tais desilusões e pensar, com maior gratidão, na extraordinária bênção de ter uma amiga verdadeira e compreensiva como Lady Russell. Os Musgrove tinham a sua própria caça para proteger e destruir; os seus próprios cavalos, cães e jornais para se entreterem, e as mulheres ocupavam-se todo o dia com todos os outros assuntos comuns do governo da casa, vizinhos, roupas, danças e música.

Ela achava muito apropriado que todas as comunidades sociais ditassem os seus temas de conversa; e esperava, dentro em breve, ser um membro válido daquela para que fora transplantada. Com a perspectiva de passar pelo menos dois meses em Uppercross, era necessário que a sua imaginação, a sua memória e todas as suas idéias se revestissem o mais possível deste ambiente. Ela não receava esses dois meses.

Mary era mais simpática e fraternal do que Elizabeth, e mais permeável à sua influência; e não havia nada no chalé que lhe provocasse desconforto. Ela dava-se bem com o cunhado e encontrava nas crianças, que gostavam quase tanto dela como da mãe e a respeitavam muito mais, um objeto de interesse, divertimento e saudável exercício físico.

Charles Musgrove era educado e amável; em bom senso e temperamento, ele era indubitavelmente superior à mulher; mas não possuía quaisquer atrativos, poder de conversação ou graça que tornassem perigosa a recordação do passado em que tinham estado envolvidos; ao mesmo tempo, porém, Anne pensava, tal como Lady Russell, que um casamento menos desigual talvez lhe tivesse sido muito benéfico; e que uma mulher verdadeiramente compreensiva talvez tivesse conferido mais energia à sua personalidade e mais utilidade, racionalidade e elegância aos seus hábitos e ocupações.

Assim, ele não fazia nada com muito zelo, a não ser praticar desporto; desperdiçava o tempo, sem o benefício da leitura ou de qualquer outra coisa. Era uma pessoa muito bem-disposta, que não parecia afetada pelas depressões ocasionais da mulher; aturava-a com uma paciência que surpreendia Anne; e, de um modo geral, embora houvesse por vezes uma discordância (em que

tomava mais parte do que desejaria, pois ambos apelavam para ela), eles poderiam ser considerados um casal feliz. Estavam sempre em total concordância no desejo de terem mais dinheiro e na esperança de o receber como oferta do pai dele; mas aqui, como na maior parte das questões, ele tinha a superioridade, pois, enquanto Mary achava que era lamentável que o pai não lhes desse o dinheiro, ele respondia sempre que o pai tinha muitas outras coisas em que gastar o dinheiro, e o direito de o gastar como quisesse.

Quanto à educação dos filhos, a teoria dele era muito melhor do que a da mulher, e a prática não era tão má.

Eu podia educá-los muito bem, se não fosse a interferência de Mary. - Era o que Anne o ouvia muitas vezes dizer, e achava que, em grande parte, ele tinha razão.

Mas quando, por sua vez, ouvia a crítica de Mary: - Charles estraga as crianças e eu não consigo metê-los na ordem. Ela não se sentia tentada a dizer:

-É verdade. Uma das menos agradáveis circunstâncias da sua estada ali era ser alvo da confiança de todas as partes e conhecer demasiado os segredos dos queixosos em ambas as casas. Sabendo que ela tinha influência sobre a irmã, era-lhe continuamente pedido que a exercesse, ou, pelo menos, eram-lhe feitas alusões nesse sentido, para além do que era realista.

Gostava que convencesses Mary a não se imaginar sempre doente - era o pedido de Charles. E, num tom de infelicidade, Mary dizia:

Acho que Charles, mesmo que me visse a morrer, pensaria que eu não tenho nada. Tenho a certeza, Anne, de que, se quisesses, podias convencê-lo de que estou realmente doente... muito pior do que eu própria estou disposta a admitir.

Mary dizia:

Detesto mandar as crianças para a Casa Grande, embora a avó esteja sempre ansiosa por vê- los; ela mima-os tanto e faz-lhes todas as vontades, dá-lhes tanta porcaria e guloseimas que eles, quando voltam, ficam doentes e insuportáveis o resto do dia. - E a Sr.a Musgrove aproveitou a primeira oportunidade de se encontrar a sós com Anne para dizer:

Oh! Menina Anne, quem me dera que a Sra. Charles tratasse um pouco as crianças como a menina faz. Consigo, eles ficam muito diferentes! Mas a verdade é que, de um modo geral, são tão mimados! É uma pena que não consiga fazer que a sua irmã os eduque melhor. São crianças bonitas e saudáveis, pobrezinhas, sem qualquer favor; mas a Sra. Charles não sabe educá-los! Meu Deus, como eles são irrequietos às vezes! Posso garantir-lhe, Menina Anne, isso faz que eu não queira que eles venham a nossa casa com tanta frequência como, de outro modo, gostaria. Creio que a Sra. Charles não está muito satisfeita comigo por não os convidar mais vezes; mas a Menina sabe como é desagradável estar com crianças que somos obrigados a repreender constantemente... não faças isto, não faças aquilo... e que só dando-lhes mais bolos do que eles devem comer é que conseguimos que se comportem toleravelmente.

Além disso, Mary disse-lhe ainda:

A Sra. Musgrove pensa que todos os seus criados são tão bons que seria alta traição pôr isso em causa; mas eu tenho a certeza, sem qualquer exagero, de que a criada de cima e a lavadeira, em vez de fazerem o seu trabalho, passam o dia a passear pela aldeia. Eu encontro-as em todo o lado; e é raro ir ao quarto das crianças sem dar com alguma delas. Se Jemina não fosse a pessoa mais fiel e disciplinada do mundo, elas estragá-la-iam, pois ela disse-me que estão sempre a convidá-la para ir passear com elas.

E, por parte da Sra. Musgrove, a conversa foi:

Eu tenho como norma nunca interferir na vida da minha nora, pois sei que isso não é correto; mas digo-lhe a si, Menina Anne, porque talvez possa endireitar as coisas, que não tenho muita boa opinião da ama das crianças da Sar. Charles; ouço histórias estranhas sobre ela; anda sempre a passear; e, pelo que eu própria vi, ela é uma senhora tão bem vestida que consegue estragar qualquer criada que esteja perto dela. A Sra. Charles gosta muito dela, eu sei, mas estou a dizer-lhe isto para que se mantenha atenta; assim, se vir alguma coisa que não esteja bem, não deve coibir-se de o dizer.

Noutra altura, foi a queixa de Mary de que a Sra. Musgrove se recusava a dar-lhe a precedência que lhe era devida quando jantavam na Casa Grande com outras famílias; e ela não via qualquer motivo para ser tão desconsiderada, ao ponto de perder o seu lugar. E um dia, quando Anne passeava só com as Meninas Musgrove, uma delas, depois de falar de posição social, pessoas de posição social e inveja de posição social, disse:

Não tenho qualquer escrúpulo em comentar consigo o fato de algumas pessoas serem tolas a respeito do lugar que devem ocupar, porque toda a gente sabe como Anne dá pouca importância a essas coisas; mas eu gostava que alguém dissesse a Mary que seria muito melhor que ela não fosse tão obstinada, especialmente que não quisesse ir sempre à frente da mamãe. Ninguém põe em dúvida que ela tenha o direito de precedência em relação à mamãe, mas seria mais simpático da sua parte não estar sempre a insistir nesse fato. Não que a mamãe se preocupe com isso, mas eu sei que muitas pessoas estão a reparar.

Como é que Anne iria resolver todos estes assuntos? Ela pouco podia fazer, para além de escutar pacientemente, amenizar as queixas e desculpar uns frente aos outros; dar-lhes conselhos sobre a paciência necessária para conviverem com vizinhos tão próximos, realçando os conselhos que eram para bem da sua irmã.

Em todos os outros aspectos, a visita começou e prosseguiu muito bem. A sua própria disposição melhorou com a mudança de local e de assunto, só por se ter afastado três milhas de Kellynch.

Os achaques de Mary diminuíram devido ao fato de ter uma companheira constante; e os contatos diários com a outra família constituía até uma vantagem, desde que não houvesse neles superioridade afetada nem confidências, nem interrompessem o trabalho no chalé. Eram levados a cabo até ao limite, pois elas encontravam-se todas as manhãs e raramente passavam um serão longe umas das outras; mas ela achava que as coisas não correriam tão bem sem as respeitáveis figuras do Sr. e da Sra. Musgrove nos locais habituais, nem sem a conversa, o riso e as canções das duas filhas. Ela tocava bastante melhor do que qualquer das Meninas Musgrove; mas, não tendo voz, não sabendo tocar harpa e não possuindo uns pais babados que a escutassem, deliciados, raramente lhe pediam que tocasse e, quando o faziam, ela sabia que era só por delicadeza ou para permitir que as outras descansassem. Ela sabia que, quando tocava, dava prazer apenas a si própria; mas esta não era uma sensação nova: com exceção de um breve período da sua vida, desde os 14 anos, desde que perdera a sua querida mãe, ela não conhecia a felicidade de ser escutada ou encorajada por uma apreciação justa ou um verdadeiro bom gosto. Na música, habituara-se a sentir-se só no mundo; e a afetuosa parcialidade do Sr. e da Sra. Musgrove em relação à execução das filhas e a sua total indiferença pela de qualquer outra pessoa causavam-lhe muito mais satisfação por causa delas do que tristeza por si própria.

Por vezes, vinham juntar-se outras pessoas ao grupo reunido na Casa Grande. A vizinhança não era numerosa, mas os Musgrove eram visitados por toda a gente e davam mais jantares e tinham mais visitas, convidadas ou ocasionais, do que qualquer outra família. Eles eram muito mais conhecidos e estimados. As meninas adoravam dançar, e os serões terminavam, ocasionalmente, com um pequeno baile improvisado. Havia uma família de primos a pouca distância de Uppercross, em circunstâncias menos abastadas, que estavam dependentes dos Musgrove para todas as suas diversões; eles podiam aparecer em qualquer altura, ajudar a tocar qualquer coisa ou dançar em qualquer lado; e Anne, que preferia o trabalho de músico a uma ocupação mais ativa, tocava músicas populares durante horas seguidas; uma amabilidade que, mais do que qualquer outra coisa, chamou a atenção do Sr. e da Sra. Musgrove para o seu talento musical e provocava frequentemente um elogio:

Muito bem, Anne! Muito bem! Meu Deus! Como esses seus dedinhos voam!

Assim se passaram as primeiras três semanas. Chegou o dia de São Miguel, e o coração de Anne estava de novo em Kellynch.

Uma casa amada entregue a outrem; todos os preciosos aposentos e móveis, bosques e paisagens começavam a conhecer outros olhos, outros pés e outras mãos!

No dia 29 de Setembro, ela não conseguiu pensar praticamente em mais nada; à noite, Mary, quando estava a anotar o dia do mês, exclamou:

Deus do Céu! Não é hoje que os Croft devem ter chegado a Kellynch? Ainda bem que não pensei nisso antes. Como este pensamento me deprime!

Os Croft instalaram-se com a eficiência típica da Marinha, e era necessário visitá-los. Mary lamentou essa obrigação. Ninguém fazia idéia de como ela iria sofrer. Adiaria a visita o mais possível; mas não descansou até ter convencido Charles a levá-la lá pouco depois; e, quando voltou, estava muito bem-disposta e animada. Anne tinha ficado sinceramente satisfeita por não ter podido ir. Ela desejava, porém, conhecer os Croft, e ficou contente por estar em casa quando a visita foi retribuída.

Eles vieram; o dono da casa não estava, mas sim as duas irmãs; e, como a Sra. Croft ficou ao lado de Anne, enquanto o almirante se sentava junto de Mary e lhe conquistava a simpatia conversando bem-humoradamente sobre os seus filhos, ela tentou encontrar uma parecença com o irmão, se não no rosto, pelo menos na voz, na maneira de ser ou na expressão. A Sra. Croft, embora não fosse alta nem gorda, tinha uma figura proporcionada e vigorosa que a tornava majestosa. Tinha uns olhos escuros brilhantes, bons dentes e um rosto simpático, embora a sua pele avermelhada e estragada pelos elementos, a consequência de ter estado no mar quase tanto como o marido, a fizessem parecer alguns anos mais velha do que os seus 38 anos. Os seus modos eram francos, simples e decididos, como uma pessoa que tem confiança em si própria e sabe o que há de fazer, sem qualquer vislumbre de grosseria ou de falta de bom humor.

Anne reconheceu nela, de fato, sentimentos de grande consideração para consigo em tudo o que se relacionava com Kellynch; agradou-lhe particularmente, como verificara logo no primeiro meio minuto, no preciso momento em que lhe fora apresentada, o fato de não existir o mínimo indício de a Sra. Croft saber ou desconfiar de algo que a influenciasse de qualquer modo.

Quanto a isso, ela sentia-se bastante à vontade e, consequentemente, cheia de força e coragem, quando, de repente, as palavras da Sra. Croft a eletrizaram.

Creio que foi a menina, e não a sua irmã, que o meu irmão teve o prazer de conhecer quando esteve nesta região.

Anne esperava ter ultrapassado a idade de corar; mas, certamente, não tinha ultrapassado a idade da emoção.

Talvez não saiba que ele se casou - acrescentou a Sr. Croft.

Ela estava prestes a responder como devia e, quando as palavras seguintes da Sra. Croft explicaram quem era o Sr. Wentworth a quem ela se referia, sentiu-se satisfeita por não ter dito nada que não se pudesse aplicar a qualquer dos irmãos. Reconheceu imediatamente que era lógico que a Sra. Croft estivesse a pensar e a falar de Edward e não de Frederick; e, envergonhada de seu esquecimento, concentrou-se em inquirir, com o devido interesse, sobre a situação atual do seu antigo vizinho.

O resto da visita decorreu com toda a tranquilidade; até que, quando estavam prestes a ir-se embora, ela ouviu o almirante dizer a Mary: Estamos à espera, para breve, da visita de um irmão da Sra. Croft; suponho que o conhece de nome.

Foi interrompido pelas investidas entusiásticas dos rapazinhos, que se agarraram a ele como a um velho amigo, pedindo-lhe que não se fosse embora; e, estando demasiado ocupado a sugerir que os iria levar no bolso do casaco, etc., para ter um momento para terminar a frase ou para se lembrar do que tinha começado a dizer, Anne tentou persuadir-se, o melhor que pôde, de que se devia tratar do mesmo irmão. Ela não conseguiu, porém, ter tanta certeza que lhe permitisse não ficar ansiosa por saber se alguma coisa tinha sido dita sobre o assunto na outra casa que os Croft tinham visitado anteriormente.

Os habitantes da Casa Grande deveriam passar o serão desse dia no chalé; e, uma vez que o ano já ia demasiado adiantado para essas visitas serem feitas a pé, já estavam à espera de ouvir a carruagem quando a Menina Musgrove mais nova entrou. A primeira coisa que lhes veio à mente foi que ela vinha pedir desculpas, vinha dizer que teriam de passar o serão sozinho; e Mary estava pronta para se sentir ofendida quando Louisa esclareceu as coisas dizendo que só tinha vindo a pé para deixar mais espaço para a harpa, que vinha na carruagem.

Eu já vos conto a razão - acrescentou ela. – Vim avisar-vos de que o papá e a mamãe estão muito abatidos esta noite, especialmente a mamãe; ela não deixa de pensar no pobre Richard! E concordamos que seria melhor ter a harpa, pois parece distraí-la mais do que o piano. Vou dizer- vos por que é que ela está abatida. Quando os Croft nos visitaram esta manhã... eles vieram cá mais tarde, não vieram?... eles comentaram que o irmão dela, o comandante Wentworth, acabou de regressar a Inglaterra, ou veio de licença, ou qualquer coisa, e vem visitá-los muito em breve; infelizmente, quando se foram embora, a mamãe lembrou-se de que Wentworth, ou qualquer coisa semelhante, era o nome do comandante do pobre Richard, a certa altura, não sei quando nem onde, mas muito antes de ele morrer, pobre rapaz! E, depois de olhar para as cartas e para as coisas dele, ela viu que realmente assim era; e ela tem a certeza absoluta de que é o mesmo homem e não consegue tirar isso da cabeça, não consegue deixar de pensar no pobre Richard. Assim, temos de parecer o mais alegres possível, para ela não pensar nessas coisas tristes.

As circunstâncias deste infeliz pedaço de história familiar eram que os Musgrove tinham tido a pouca sorte de ter um filho muito irresponsável, e a sorte de o perder antes de ele fazer 20 anos; ele fora enviado para o mar porque era estúpido e indisciplinado em terra; a família não gostava muito dele, embora gostasse tanto quanto ele merecia; raramente tinham notícias dele e raramente tinham saudades; a notícia da sua morte chegara a Uppercross dois anos antes. Embora as irmãs estivessem a fazer tudo o que podiam por ele chamando-lhe pobre Richard, ele tinha sido, de fato, o Dick Musgrove teimoso, insensível e inútil que nunca tinha feito nada para, vivo ou morto, merecer mais do que o diminutivo do seu nome.

Passara vários anos no mar e tinha, durante as transferências a que todos os aspirantes da Marinha estão sujeitos, principalmente os aspirantes de que os comandantes se desejam ver livres, passado seis meses a bordo da fragata do comandante Frederick Wentworth, o Lacônia; e fora do Lacônia que ele, sob influência do seu comandante, tinha escrito as únicas duas cartas que os pais tinham recebido durante toda a sua ausência; isto é, as únicas duas cartas desinteressadas; todas as outras continham pedidos de dinheiro. Ele elogiara o comandante em ambas as cartas; mas eles estavam tão pouco habituados a prestar atenção a esses assuntos, eram tão pouco observadores e interessavam-se tão pouco pelos nomes de homens ou de barcos que, na altura, isso não os impressionara; e o fato de a Sra. Musgrove, nesse dia, se ter lembrado subitamente do nome Wentworth como estando relacionado com o filho parecia uma daquelas extraordinárias explosões da mente que por vezes ocorrem. Ela relera as cartas e vira que era o que supunha; e a leitura destas cartas, após um intervalo tão longo, com o filho desaparecido para sempre e a gravidade dos seus defeitos esquecida, afetara-a bastante e fizera que sentisse uma dor maior do que a que sentira quando recebera a notícia da sua morte.

O Sr. Musgrove ficara igualmente afetado, embora em menor grau; quando chegaram ao chalé, era evidente que precisavam, primeiro, de falar novamente sobre o assunto, e, depois, de toda a consolação que companheiros alegres pudessem proporcionar. Ouvi-los falar tanto no comandante Wentworth, repetindo tão frequentemente o seu nome, recordando os anos passados e, por fim, chegando à conclusão de que talvez fosse, provavelmente era, o mesmo comandante Wentworth que se lembravam de terem encontrado uma ou duas vezes, depois de regressarem de Clifton- um jovem muito bem-parecido, mas não podiam dizer se fora há sete ou há oito anos - constituía uma nova provação para os nervos de Anne. Ela sabia, porém, que tinha de se imunizar contra ela.

Uma vez que ele era esperado a região, ela tinha de aprender a ser insensível nessas questões. E não só parecia que ele era esperado muito em breve como os Musgrove, gratos pela gentileza que ele manifestara para com o pobre Dick e com um enorme respeito pelo seu caráter, demonstrado pelo fato de o pobre Dick ter estado sob a sua tutela durante seis meses e se referir a ele com os maiores, se bem que mal escritos, elogios, como um sujeito estupendo, mas demasiado exigente, quanto à instrução, estavam ansiosos por o conhecerem assim que ele chegasse. Esta decisão contribuiu para se sentirem mais reconfortados nessa noite.


Capítulo Sete

Alguns dias depois, souberam que o comandante Wentworth se encontrava em Kellynch, e o Sr. Musgrove foi visitá-lo, tendo regressado cheio de calorosos elogios; ele convidara os Croft para jantarem em Uppercross no final da semana seguinte.

O Sr. Musgrove ficara muito decepcionado por não poder marcar uma data anterior. Estava ansioso por manifestar a sua gratidão e por ter o comandante Wentworth debaixo do seu próprio teto, recebendo-o com o que de melhor e mais forte tinha na adega. Mas era preciso esperar uma semana, só uma semana, na opinião de Anne, e depois, pensava ela, tinham de se encontrar; em breve ela começou a desejar sentir-se segura, mesmo que fosse só por uma semana.

O comandante Wentworth retribuiu logo a amabilidade do Sr. Musgrove, e ela esteve para lá ir a essa mesma hora! Ela e Mary estavam, de fato, de saída para a Casa Grande, onde, ela soube mais tarde, ter-se-ia inevitavelmente encontrado com ele, quando foram retidas pela chegada, em braços, do garoto mais velho, que estava a ser transportado para casa em consequência de uma queda. O estado da criança colocou a visita completamente fora de causa, mas, quando soube do que escapara, não conseguiu sentir-se indiferente, mesmo no meio da grande ansiedade que sentiu por causa do garoto. Ele tinha deslocado a clavícula e magoara as costas, o que provocara suposições alarmantes. Foi uma tarde cheia de problemas, e Anne teve de fazer tudo ao mesmo tempo: mandar chamar o farmacêutico, procurar e informar o pai, apoiar a mãe, fazer o possível para que esta não ficasse histérica, controlar os criados, afastar o garoto mais novo, tratar do doente e acalmá-lo, além de enviar notícias, assim que se lembrou de o fazer, à outra casa, o que provocou uma grande afluência de visitantes curiosos e assustados, mais do que ajudantes verdadeiramente úteis.

O regresso do cunhado foi a primeira consolação - ele podia tomar melhor conta da mulher-, e a segunda foi a chegada do farmacêutico. Até ele chegar e examinar o garoto, as preocupações eram vagas e, por isso, mais difíceis de suportar; eles desconfiavam de uma lesão grave, mas não

sabiam onde; mas, pouco depois, a clavícula foi colocada no local e, embora o Dr. Robinson apalpasse e voltasse a apalpar, esfregasse, assumisse um ar sério e falasse em voz baixa com o pai e com a tia, eles sentiram-se otimistas e capazes de se afastarem para ir jantar num estado de calma relativa; e foi então, imediatamente antes de se irem embora, que as duas jovens tias conseguiram esquecer o estado do sobrinho para dar informações sobre a visita do comandante Wentworth – ficaram mais cinco minutos depois de o pai e a mãe terem partido, para tentarem transmitir como estavam absolutamente encantadas com ele, como achavam que era mais belo e infinitamente mais simpático do que qualquer indivíduo das suas relações.

Como tinham ficado satisfeitas ao ouvir o papá convidá-lo a ficar para jantar, como ele lamentou não poder aceitar, e como elas ficaram de novo radiantes quando ele prometeu aceitar o convite insistente do papá e da mamã para vir jantar no dia seguinte - logo no dia seguinte! E ele prometera de um modo tão simpático, como se apreciasse devidamente o motivo do convite!

Em resumo, o seu aspecto e os seus modos eram tão distintos que elas tinham ficado com a cabeça à roda por causa dele. E afastaram-se a correr, cheias de alegria e amor, e aparentemente a pensar mais no comandante Wentworth do que no pequeno Charles.

A mesma história e o mesmo arrebatamento repetiram-se quando as duas meninas voltaram com o pai, no lusco-fusco do entardecer, para saber notícias; e o Sr. Musgrove, já menos preocupado com a saúde do seu herdeiro, acrescentou a sua confirmação e os seus elogios; ele esperava que não fosse necessário adiar o jantar oferecido ao comandante Wentworth e manifestou o seu pesar pelo fato de a família do chalé não querer, provavelmente, sair de junto do filho para poder estar presente. Oh, não! Deixar o pequeno, não!.

Tanto o pai como a mãe estavam demasiado abalados para pensar nisso; e Anne, feliz por se conseguir esquivar, não pôde deixar de acrescentar os seus calorosos protestos. Na verdade, Charles Musgrove manifestou posteriormente mais interesse: O filho estava a recuperar tão bem, e ele queria tanto ser apresentado ao comandante Wentworth que talvez pudesse ir ter com eles ao serão; ele não iria jantar fora de casa, mas talvez fosse até lá a pé por meia hora. Mas a mulher opôs-se vigorosamente a esta idéia, dizendo:

Oh, não! Charles, eu não consigo suportar que te ausentes. Imagina que acontece alguma coisa?

O garoto passou bem a noite e continuou a melhorar no dia seguinte. Só o tempo diria se a coluna não tinha ficado afetada, mas o Dr. Robinson não encontrou nada que justificasse uma maior preocupação e, em consequência, Charles Musgrove começou a achar que não havia necessidade de ficar em casa. O pequeno devia ficar deitado e entretido o mais calmamente possível; que é que um pai estava ali a fazer?

Aquilo era um caso para mulheres; seria absurdo que ele, que não tinha nada que fazer em casa, ficasse ali fechado. O pai queria muito que ele conhecesse o comandante Wentworth e, não havendo motivo suficiente para não o fazer, ele devia ir; por fim, quando voltou da caça, declarou abertamente a sua intenção de se vestir imediatamente e de ir jantar à outra casa.

O garoto está ótimo - disse ele -, por isso eu disse ao meu pai que ia, e ele achou que eu fazia muito bem. Com a tua irmã aqui contigo, não sinto quaisquer escrúpulos. Sei que tu não havias de querer deixá-lo, mas deves compreender que eu não estou a fazer nada. Se acontecer alguma coisa, Anne manda-me chamar.

Os maridos e as mulheres sabem geralmente quando é inútil qualquer tentativa de oposição. Mary compreendeu, pelo modo como Charles falou, que ele estava decidido a ir e que não valeria a pena insistir. Assim, ela não disse nada até ele sair da sala, mas, logo que ele o fez, comentou:

Já viste isto? Ele deixa-nos entregues aos nossos próprios meios, com esta pobre criança doente... e sem que ninguém venha até cá durante todo o serão! Eu sabia que isto iria acontecer. A minha sorte é assim! Quando acontece uma coisa desagradável, os homens desaparecem sempre, e Charles é tal e qual os outros. Que falta de sensibilidade! Devo dizer que acho que é muita falta de sensibilidade da parte dele ir para longe do filho! Como é que ele sabe que o miúdo continuará bem e não vai ter uma recaída daqui a meia hora? Eu acho que Charles não devia ser tão insensível. Com que então ele vai divertir-se, e eu, só porque sou a mãe, não posso sair daqui; no entanto, eu sou a pessoa menos indicada para tomar conta da criança. O fato de eu ser a mãe é razão suficiente para que os meus sentimentos não sejam postos à prova. Não consigo aguentar. Tu viste como fiquei histérica ontem.

Mas isso foi apenas o efeito do susto, do choque. Não vais voltar a ficar histérica. Eu acho que não temos nada com que nos afligir. Compreendi perfeitamente as instruções do Sr. Robinson, e não tenho qualquer receio; e, na verdade, Mary, o comportamento do teu marido não me surpreende. Os homens não sabem tomar conta de doentes, isso não é trabalho para eles. Quem cuida duma criança doente é sempre a mãe; são os seus próprios sentimentos que o exigem.

Eu acho que gosto tanto do meu filho como qualquer outra mãe, mas não sei se tenho mais utilidade no quarto do doente do que Charles, pois não posso estar continuamente a ralhar com a pobre criança quando ela está doente; e tu viste, esta manhã, quando eu lhe dizia que ficasse quieto, ele começava logo aos pontapés. Os meus nervos não suportam esse tipo de coisas.

Mas tu não te importarias de passar a noite longe do pobre rapaz?

Não. Tu vês que o pai dele não se importa, por que é que havia de me importar? Jemina é tão cuidadosa! E, de hora a hora, ela poderia mandar-nos notícias sobre o estado dele. Eu acho realmente que Charles devia ter dito ao pai que iríamos todos. Não estou mais apreensiva a respeito do pequeno do que ele. Ontem fiquei muito alarmada, mas hoje o caso mudou de figura.

Bem, se achas que não é demasiado tarde para avisares, suponho que deves ir, assim como o teu marido. Eu fico a tomar conta do pequeno Charles. O Sr. e a Sra. Musgrove certamente não se sentirão ofendidos por eu ficar com ele.

Estás a falar a sério? - exclamou Mary, com os olhos a brilharem de alegria. - Meu Deus! Isso é uma boa idéia, muito boa mesmo. Já agora, vou, pois não estou a fazer nada em casa, não é verdade? Só me sinto perturbada. Tu, que não tens sentimentos de mãe, és sem dúvida a pessoa mais adequada para ficar com ele. Tu consegues obrigar o pequeno Charles a fazer qualquer coisa; ele obedece-te sempre. Será bastante melhor do que deixá-lo só com Jemina. Oh! Vou, com certeza; estou certa de que tenho tanta obrigação de o fazer como Charles, pois eles querem muito que eu conheça o comandante Wentworth, e sei que não te importas de ficar sozinha. Uma idéia excelente a tua, Anne! Vou dizer a Charles e preparar-me imediatamente. Podes mandar-nos chamar, sabes?, a todo o momento, se for preciso; mas acho que não vai acontecer nada que te provoque qualquer alarme. Podes ter a certeza de que eu não iria se não estivesse tão descansada a respeito do meu querido filho.

Um momento depois, ela batia à porta do quarto de vestir do marido. Anne subiu as escadas atrás dela e ainda ouviu toda a conversa, que começou com Mary a dizer, num tom de grande contentamento:

Eu vou contigo, Charles, pois, tal como tu, não estou a fazer nada em casa. Se me trancasse aqui para sempre com o garoto, não conseguiria convencê-lo a fazer nada de que ele não gostasse. Anne vai ficar. Ela propôs-se ficar em casa a tomar conta dele. Foi a própria Anne que o sugeriu, por isso vou contigo, o que será muito melhor, pois desde terça-feira que não janto na outra casa.

Isso é muito amável da parte de Anne - foi a resposta do marido -, e fico muito contente por vires comigo, mas parece-me um pouco cruel deixá-la sozinha em casa, a tomar conta do nosso filho doente.

Anne apareceu então para defender a sua própria causa e, uma vez que a sinceridade dos seus modos foi suficiente para o convencer, pelo menos naquilo em que lhe era agradável ser convencido, ele perdeu a relutância em deixá-la jantar sozinha, embora ainda pretendesse que ela fosse ter com eles mais tarde, quando o garoto estivesse a dormir, e insistiu com ela para que o deixasse mandar buscá-la; mas ela não se deixou persuadir; e, assim, Anne teve o prazer de os ver sair juntos muito bem-dispostos. Ela esperava que eles se divertissem, por mais estranho que fosse esse divertimento; quanto a si própria, ficou com a maior sensação de conforto que lhe era possível sentir. Sabia que era muito necessária à criança; e que importância tinha se Frederick Wentworth estava apenas a meia milha de distância, sendo simpático para com os outros?

Ela gostaria de saber o que ele sentia a respeito de voltar a encontrá-la. Talvez indiferente, se era possível existir indiferença em tais circunstâncias. Ele devia sentir-se indiferente ou, então, não queria encontrar-se com ela. Se ele tivesse querido voltar a vê-la, não teria precisado de esperar até àquele momento; teria feito o que ela acreditava que há muito teria feito no seu lugar, quando os acontecimentos cedo lhe concederam a independência que era a única coisa que lhes faltara.

O cunhado e a irmã regressaram encantados com o seu novo conhecimento e a visita em geral. Tinha havido música, canções, conversa, riso, tudo extremamente agradável; o comandante Wentworth tinha modos encantadores, sem qualquer timidez nem reservas; pareciam ser todos velhos conhecidos, e ele viria caçar com Charles na manhã seguinte. Viria tomar o pequeno- almoço, mas não no chalé, embora, a princípio, isso tivesse sido sugerido; mas, depois, tinham insistido com ele para que fosse antes à Casa Grande, e ele tivera receio de incomodar a Sra. Charles Musgrove, por causa do garoto; e, assim, sem eles saberem bem porquê, acabou por ser Charles a ir ter com ele para tomar o pequeno-almoço em casa do pai. Anne compreendeu. Ele queria evitar encontrar-se com ela.

Ela soube que ele tinha perguntado por ela, de um modo vago, como se fosse um conhecimento casual, parecendo ter dito o mesmo que ela dissera, agindo, talvez, com o mesmo intuito de escapar à apresentação quando se encontrassem.

A azáfama matinal do chalé começava mais tarde do que na outra casa; e, nessa manhã, a diferença foi tão grande que Mary e Anne ainda estavam a começar a tomar o pequeno-almoço quando Charles entrou e disse que iam partir, que viera buscar os cães, que as suas irmãs vinham aí com o comandante Wentworth.

As irmãs vinham visitar Mary e o garoto, e o comandante pretendia também visitá-la durante alguns minutos, se não fosse inconveniente; e, embora Charles tivesse respondido que a criança não estava tão doente que a visita causasse algum inconveniente, o comandante Wentworth insistiu para que ele fosse à frente anunciar a visita.

Mary, muito satisfeita com a gentileza, ficou encantada por o receber, enquanto Anne se sentiu inundada por mil emoções, das quais a mais reconfortante foi que a visita estaria terminada dentro em pouco. E assim foi. Dois minutos depois do aviso de Charles, os outros apareceram; elas estavam na sala de visitas.

Os seus olhos encontraram-se com os do comandante Wentworth; uma vénia, uma cortesia. Ela ouviu-lhe a voz - ele falava com Mary; disse as palavras corretas; disse algo às Meninas Musgrove, o suficiente para indicar que estavam de boas relações; a sala parecia cheia - cheia de pessoas e vozes mas tudo terminou passados poucos minutos.

Charles apareceu à janela, estava tudo pronto, o visitante tinha feito uma vénia e saído; as Meninas Musgrove também se foram embora, tendo decidido subitamente ir com os caçadores até ao extremo da aldeia, a sala ficou vazia, e Anne tentou terminar o pequeno-almoço o melhor que pôde.

JÁ passou! JÁ passou! - repetiu para si própria, numa gratidão nervosa. - O pior já passou. Mary estava a falar, mas ela não conseguia prestar atenção. Ela vira-o. Tinham-se encontrado. Tinham voltado a estar na mesma sala!

Em breve, porém, começou a raciocinar para si própria e a tentar sentir menos oito anos, tinham-se passado quase oito anos desde que tinham desistido de tudo. Como era absurdo voltar a sentir a agitação que aquele espaço de tempo tinha banido para a distância e para o esquecimento! O que não teria acontecido em oito anos! Acontecimentos de todo o gênero, alterações, separações, mudanças - tudo, deve ter acontecido de tudo; e o esquecimento do passado - como isso era natural, como era certo também! Era quase um terço da sua vida.

Infelizmente, apesar de todo o seu raciocínio, ela descobriu que, para sentimentos fortes, oito anos podem não ser praticamente nada. Agora, como é que ela poderia interpretar os sentimentos dele? Estaria a querer evitá-la? No momento seguinte, ela detestava-se a si própria pela loucura que a levara a fazer a pergunta. Quanto a outra pergunta, a qual talvez a sua sabedoria não conseguisse ter evitado, foi-lhe, pouco depois, poupada toda a incerteza.

Depois de as Meninas Musgrove terem voltado e terminado a visita ao chalé, recebeu espontaneamente a seguinte informação:

O comandante Wentworth não foi muito lisonjeiro a teu respeito, Anne, embora tenha sido muito gentil para comigo. Quando se afastaram, Henrietta perguntou-lhe o que pensava de ti, e ele respondeu que estavas tão diferente que não te teria reconhecido. Normalmente, Mary não possuía uma sensibilidade que a fizesse respeitar os sentimentos das irmãs; mas, desta vez, não fazia a mínima idéia de que estivesse a magoá-la. – Tão diferente que não a reconheceria! - Anne ouviu, em silêncio, profundamente magoada. Não havia dúvida de que era verdade; e ela não se podia vingar porque ele não tinha mudado, e não para pior.

Ela já o reconhecera para si própria e não podia mudar de opinião, ele que pensasse dela o que quisesse. Não; os anos que lhe tinham destruído a juventude e frescura, tinham-lhe dado a ele um ar mais alegre, viril e franco, sem diminuir as qualidades físicas. Ela tinha visto o mesmo Frederick Wentworth.

Frederick utilizara aquelas palavras, ou umas semelhantes, sem fazer idéia de que elas lhe seriam transmitidas. Ele achara-a muito mudada e, quando lhe perguntaram, dissera o que sentia. Não perdoara a Anne Elliot; ela fora injusta para com ele, abandonara-o e desiludira-o; e, o que era pior, ao fazê-lo, tinha manifestado uma fraqueza de caráter que o seu temperamento decidido e confiante não conseguia tolerar.

Ela renunciara a ele para fazer a vontade aos outros. Tinha-se deixado influenciar demasiado. Fora fraca e tímida. Ele gostara muito dela e nunca, desde então, encontrara uma mulher que se lhe pudesse comparar; mas, com exceção de uma natural sensação de curiosidade, não desejava voltar a encontrá-la. O poder que ela exercera sobre ele tinha desaparecido para sempre. O seu objetivo agora era casar. Era rico e, tendo regressado à terra, tencionava assentar assim que se sentisse devidamente tentado a fazê-lo; estava, na realidade, à procura, pronto para se apaixonar com toda a celeridade que a sua cabeça lúcida e o seu bom gosto permitissem. O seu coração estava à disposição de qualquer das Meninas Musgrove, se elas soubessem conquistá-lo. Um coração à disposição de qualquer jovem agradável que lhe aparecesse, exceto Anne Elliot. Esta era a sua única exceção secreta quando disse à irmã, em resposta às suas conjecturas:

Sim, aqui estou eu, Sophia, pronto para fazer um casamento idiota. Qualquer mulher entre os quinze e os trinta anos que me queira pode ficar comigo. Um pouco de beleza, meia dúzia de sorrisos e alguns elogios à Marinha, e sou um homem perdido. Não será isto suficiente para um marinheiro que não tem tido qualquer convivência com mulheres e não sabe, por isso, se simpático?

Ele disse-o, ela sabia, para que ela o contradissesse. Os seus olhos alegres e altivos refletiam a feliz convicção de que era, de fato, simpático, e Anne Elliot não estava longe dos seus pensamentos quando descreveu, mais seriamente, a mulher que gostaria de encontrar. Um espírito forte e modos ternos, foi a lacônica descrição.

Esta é a mulher que eu quero - disse ele. - Claro que toleraria algo um pouco inferior, mas não muito. Se for tolo, serei verdadeiramente tolo, pois tenho pensado no assunto mais do que a maior parte dos homens.


Capítulo Oito

A partir desta altura, o comandante Wentworth e Anne Elliot começaram a fazer parte do mesmo círculo. Pouco depois, jantavam os dois em casa do Sr. Musgrove, pois a tia já não podia utilizar o estado do garoto como desculpa para não estar presente, e isto foi apenas o princípio de outros jantares e de outros encontros. Estes encontros iriam pôr à prova a possibilidade de recuperação de sentimentos antigos, tempos antigos viriam necessariamente à lembrança de ambos; era impossível não haver referência a eles, ele não conseguia evitar mencionar o ano do noivado nos pequenos relatos ou descrições decorrentes das conversas. A sua profissão predispunha-o, o seu temperamento induzia-o a falar; e isso foi em 1806"; Isso aconteceu antes de eu ir para o mar em 1806, ocorreu no decurso do primeiro serão que passaram juntos; e, embora a sua voz não tivesse vacilado e ela não tivesse qualquer motivo para supor que ele, ao falar, tivesse olhado para ela, Anne sentiu que era completamente impossível, pelo que conhecia dele, que ele não se recordasse tão bem como ela. Tinha de haver uma associação de idéias imediata, embora ela estivesse longe de imaginar que fosse igualmente dolorosa. Eles não conversavam um com o outro, não tinham qualquer contato exceto o que era ditado pelas normas da boa educação.

Outrora, tinham significado tanto um para o outro! Agora, nada! Houvera uma altura em que, de todo o enorme grupo que enchia a sala de visitas de Uppercross, eles teriam sido os que mais dificuldades teriama em parar de conversar um com o outro. Com exceção, talvez, do almirante e da Sra. Croft, que pareciam particularmente afeiçoados e felizes.

Anne não via qualquer outra exceção, nem mesmo entre os pares casados. Não podia ter havido dois corações tão sinceros, nem gostos tão semelhantes , nem sentimentos tão em uníssono, nenhuns rostos tão amados. Agora era como se fossem estranhos, não, pior do que estranhos, porque nunca se conheceriam. Eram estranhos para sempre. Quando ele falava, ela ouvia a sua voz e reconhecia a mesma maneira de pensar.

No grupo, havia uma ignorância geral sobre todos os assuntos relacionados com a Marinha; e fizeram-lhe muitas perguntas, especialmente as duas Meninas Musgrove, que pareciam não ter olhos se não para ele: sobre a vida a bordo, os regulamentos diários, a comida, os horários, etc. E a surpresa delas perante os seus relatos, ao conhecerem a quantidade de acomodações e de comodidades que era possível existir, provocava nele uma troça amigável, que fez recordar a Anne o tempo em que ela também não sabia nada e em que também fora acusada de supor que os marinheiros a bordo não tinham alimentos ou, se tivessem, não tinham um cozinheiro para os preparar, nem criados para os servir, nem talheres com que comer.

Foi despertada dos seus pensamentos por um murmúrio da Sra. Musgrove, que, abalada por tristes recordações, não conseguiu conter-se:

Ah! Menina Anne, se aprouvesse aos Céus ter poupado o meu filho, nesta altura ele seria igual a si mesmo.

Anne dominou um sorriso e escutou atentamente, enquanto a Sra. Musgrove desabafava um pouco, pelo que, durante alguns minutos, não conseguiu acompanhar a conversa. Quando a sua atenção seguiu o curso normal, ela viu que as Meninas Musgrove tinham ido buscar a lista da Marinha (a sua própria lista da Marinha, a primeira que houvera em Uppercross), e estavam sentadas e debruçadas sobre ela, com o objetivo de encontrarem os navios que o comandante Wentworth tinha comandado.

O seu primeiro navio foi o Asp, recordo-me; vamos procurar o Asp.

Não o vai encontrar aí. Estava muito velho e a desfazer-se.

Eu fui o último homem a comandá-lo. Não se encontrava exatamente em condições de prestar serviço. Foi declarado apto por um ou dois anos... e assim fui enviado para as Índias Ocidentais.

As meninas ficaram a olhar, espantadas.

O almirantado - prosseguiu ele - entretém-se de vez em quando a enviar algumas centenas de homens para o mar num navio que não tem condições de navegabilidade. Mas eles têm muita gente para sustentar; e, entre os milhares que tanto lhes faz que vão ao fundo como não, é-lhes impossível distinguir os que menos falta fazem.

Oh! Oh! - exclamou o almirante -, que disparates estes jovens dizem! No seu tempo, não havia corveta melhor que o Asp. Para uma corveta de fabricação antiga, não havia outra igual. Teve muita sorte em consegui-la! Ele sabe que devia haver uns vinte homens mais bem qualificados do que ele a candidatarem-se a ela ao mesmo tempo. Com os poucos direitos que tinha, teve sorte em conseguir qualquer coisa tão depressa.

Garanto-lhe que eu soube que tinha sorte, almirante respondeu o comandante Wentworth num tom sério. - Eu não podia estar mais satisfeito com a minha nomeação. Para mim, nessa altura, ir para o mar era um objetivo muito importante... muitíssimo importante. Eu queria estar ocupado com alguma coisa.

Claro que querias. Que é que um jovem como tu esteve a fazer em terra durante meio ano seguido? Quando um homem não é casado, o que mais deseja é fazer-se ao mar quanto antes.

Mas, comandante Wentworth - exclamou Louisa-, deve ter ficado muito aborrecido quando chegou ao Asp e viu o traste velho que lhe tinham dado.

Eu já sabia muito bem antes o que ele era - disse ele com um sorriso. - Não tinha para descobrir mais do que a menina teria a respeito do aspecto e da resistência de uma velha peliça, a qual, desde que se lembrava, tinha visto a ser emprestada a metade das pessoas suas conhecidas e que, finalmente, num dia de muita chuva, lhe é emprestada a si. Ah!, para mim, foi um barco estupendo. Fez tudo o que eu queria. Eu sabia que ele o faria... sabia que ou iríamos juntos ao fundo ou ele me traria sorte; e nunca tive dois dias de tempestade durante todo o tempo em que naveguei nele; depois de ter capturado corsários suficientes para nos divertirmos, tive a sorte, na minha passagem por terra no Outono seguinte, de obter a fragata francesa que eu queria.

Trouxe-a para Plymouth; e aqui voltei a ter sorte. Ainda não estávamos há seis horas no Sound quando se levantou uma tempestade que durou quatro dias e quatro noites, e que teria desfeito o pobre Asp em metade desse tempo; claro que o contato com a Grande Nação não melhorou muito o nosso estado.

Em vinte e quatro horas, eu teria sido apenas o corajoso comandante Wentworth, num pequeno parágrafo a um canto dos jornais; e, tendo morrido numa insignificante corveta, ninguém voltaria a pensar em mim.

Anne estremeceu interiormente, mas as Meninas Musgrove puderam dar largas às suas exclamações sinceras de pena e de horror.

E então, suponho - disse a Sra. Musgrove num tom de voz mais baixo, como se estivesse a pensar em voz alta -, então foi para o Lavônia e aí conheceu o nosso pobre rapaz. Charles, meu querido - (fazendo-lhe sinal para que se aproximasse) - pergunta ao comandante onde é que ele conheceu o teu pobre irmão. Eu esqueço-me sempre.

Foi em Gibraltar, mãe. Dick ficou em terra em Gibraltar, doente, com uma recomendação do seu comandante anterior para o comandante Wentworth.

Oh!, mas, Charles, diz ao comandante Wentworth que não deve ter receio de mencionar o pobre Dick à minha frente, pois seria um prazer ouvir alguém tão seu amigo falar dele.

Charles, um tanto céptico quanto às probabilidades de ser esse o caso, limitou-se a responder com um aceno de cabeça e afastou-se. As meninas estavam agora à procura do Lavônia; e o comandante Wentworth não resistiu ao prazer de pegar no precioso livro, poupando-lhes esse trabalho, e de ler, em voz alta, a pequena referência ao nome e às características do navio, a sua situação atual na reserva, comentando que também ele fora um dos seus melhores amigos.

Ah! Os dias em que comandei o Lavônia foram bem agradáveis! Como fiz dinheiro rapidamente com ele. Eu e um amigo fizemos uma viagem maravilhosa ao largo das Índias Ocidentais. Pobre Harville, irmã! Tu sabes como ele queria ganhar dinheiro... mais ainda do que eu. Ele era casado. Um sujeito excelente! Nunca me esquecerei de como se sentia feliz. E sentia-se feliz, em grande parte, por causa dela. Desejei tê-lo comigo no Verão seguinte, quando tive a mesma sorte no Mediterrâneo.

E eu tenho a certeza, será- disse a Sra. Musgrove -, de que foi uma sorte para nós ter sido feito comandante do navio. Nós nunca nos esqueceremos do que fez. A comoção fê-la falar em voz baixa, e o comandante Wentworth, tendo ouvido apenas uma parte da frase e não estando provavelmente a pensar em Dick Musgrove, ficou na expectativa, à espera de mais.

O meu irmão - murmurou uma das meninas -, a mamã está a pensar no pobre Richard.

Pobre rapaz - prosseguiu a Sra. Musgrove. - Tinha-se tornado tão bem comportado e um correspondente tão bom desde que estava sob sua tutela! Ah!, teria sido ótimo se ele nunca o tivesse deixado. Garanto-lhe, comandante Wentworth, tivemos imensa pena de que ele o tivesse deixado.

Ao ouvir este discurso, houve, momentaneamente, uma expressão no rosto do comandante Wentworth, um certo lampejo nos seus olhos brilhantes e um franzir da sua boca atraente que convenceu Anne de que, em vez de partilhar os amáveis desejos da Sra. Musgrove no que dizia respeito ao filho, ele tinha, provavelmente, ansiado por se ver livre dele; mas foi uma expressão de ironia tão fugaz que dificilmente seria detectada por quem não o conhecesse tão bem como ela; no momento seguinte, ele tinha-se controlado perfeitamente, e a sua expressão era séria e, quase de imediato, ele dirigiu-se ao sofá em que ela e a Sra. Musgrove estavam sentadas, sentou-se ao lado desta e começou a conversar com ela, em voz baixa, sobre o filho, e a comiseração e naturalidade com que o fez, demonstraram a maior consideração por tudo o que era real e natural nos sentimentos maternais.

Eles estavam sentados no mesmo sofá, pois a Sra. Musgrove tinha-se chegado um pouco para o lado para ele se poder sentar - estavam separados apenas pela Sra. Musgrove. Não era uma barreira nada insignificante. A Sra. Musgrove tinha uma corpulência substancial, infinitamente mais própria, por natureza, para expressar boa disposição e bom humor do que ternura e sensibilidade, e, embora a agitação do corpo esguio e do rosto pensativo de Anne pudessem ser considerados como estando completamente encobertos, o comandante Wentworth é digno de admiração pelo autodomínio com que escutou os enormes e profundos suspiros por causa de um filho com quem ninguém se preocupara enquanto fora vivo. O tamanho da sua pessoa e o sofrimento não têm necessariamente uma proporção direta. Uma figura corpulenta tem tanto direito a sofrer profundamente como a figura mais graciosa do mundo. Mas, quer seja justo ou não, há efeitos pouco lisonjeiros que a razão tenta, em vão, admitir, que o bom gosto não consegue tolerar e de que o ridículo se apodera.

O almirante, depois de ter dado duas ou três voltas à sala com as mãos atrás das costas, para desentorpecer as pernas, e de ter sido chamado à ordem pela mulher, dirigiu-se ao comandante Wentworth e, sem reparar que estava a interromper, embrenhado apenas nos seus próprios pensamentos, disse:

Se tivesses passado por Lisboa uma semana depois na primavera passada, Frederick, ter-te- ia sido pedido que trouxesses Lady Mary Grierson e as filhas.

A sério? Ainda bem que não estava lá uma semana depois. O almirante censurou-o pela sua falta de cavalheirismo. Ele defendeu-se, embora declarando que nunca admitiria, de bom grado, senhoras a bordo de um navio seu, exceto para um baile ou uma visita de algumas horas. - Mas, tanto quanto me conheço- disse ele -, isto não é por falta de cavalheirismo para com elas. Resulta, sim, de saber que é impossível, apesar de todos os esforços e de todos os sacrifícios, proporcionar o conforto que as mulheres merecem.

Não é falta de cavalheirismo, almirante, achar que as mulheres merecem um nível de conforto elevado... É o que acontece comigo. Detesto ouvir falar de mulheres a bordo, ou de vê-las a bordo; e navio algum, sob o meu comando, transportará alguma vez um grupo de senhoras, se eu o puder evitar.

Estas palavras levaram a irmã a intervir:

Oh! Frederick. Não consigo acreditar nisso vindo de ti. Que exagero de cortesia! As mulheres podem sentir-se tão confortáveis a bordo como na melhor casa inglesa. Acho que tenho vivido mais tempo a bordo do que a maior parte das mulheres, e não conheço nada mais confortável do que as acomodações de um navio de guerra. Posso dizer-te que não tenho nenhum conforto nem prazer em terra, nem mesmo no Solar de Kellynchá- (com uma amável vénia a Anne) -, que não tenha tido sempre no maior dos navios em que tenho vivido, e já foram cinco.

Isso não quer dizer nada-respondeu o irmão. -Tu vivias com o teu marido e eras a única mulher a bordo.

Mas tu próprio trouxeste a Sr.a Harville, a irmã, a prima e os três filhos de Portsmouth para Plymouth. Onde estava esse teu requintado e extraordinário cavalheirismo?

Misturado com a amizade, Sophia. Eu queria ajudar a mulher do meu camarada tanto quanto possível, e, se Harville quisesse, trar-lhe-ia qualquer coisa até do fim do mundo. Mas não penses que achei que fosse uma boa idéia.

Podes ter a certeza de que elas se sentiram perfeitamente confortáveis.

Isso não quer dizer que goste mais delas por isso. Tantas mulheres e crianças a bordo não têm o direito de se sentir confortáveis.

Meu querido Frederick, tu estás a dizer disparates. Que seria de nós, pobres mulheres de marinheiros, que muitas vezes queremos ser levadas para um porto ou outro, atrás dos nossos maridos, se todos pensassem o mesmo que tu?

Os meus sentimentos, como vês, não impediram que eu levasse a Sra. Harville e toda a sua família para Plymouth.

Mas eu detesto ouvir-te falar assim, como um cavalheiro requintado, e como se as mulheres fossem todas damas delicadas, em vez de seres racionais. Nenhuma de nós espera ter mar calmo todos os dias.

Ah!, minha querida - disse o almirante -, quando ele se casar, a conversa será outra. Quando se casar, e se tivermos a sorte de viver outra guerra, vê-lo-emos fazer o que tu e eu e muitos outros têm feito. Vê-lo-emos ficar muito grato a quem quer que lhe traga a mulher. - Sim, certamente que veremos.

Agora tenho dito! - exclamou o comandante Wentworth. Quando as pessoas casadas começam a atacar-me com: Oh, quando casares vais mudar de idéias, a única coisa que eu posso dizer é: Não vou, não; e depois eles repetem: Vais, sim, e não há nada a fazer. Ele pôs-se de pé e afastou-se.

A senhora, certamente, tem viajado muito - disse a Sra. Musgrove à Sra. Croft.

Bastante, nos quinze anos que estou casada, embora muitas mulheres tenham viajado mais. Atravessei o Atlântico quatro vezes e fui e vim uma vez às Índias Orientais; e apenas uma vez, além de ter estado em vários portos próximos da Inglaterra... Cork, Lisboa e Gibraltar. Mas nunca fui para além dos estreitos... e nunca estive nas Índias Ocidentais. Nós não chamamos Bermudas nem Bahamas às Índias Ocidentais, sabe?

A Sra. Musgrove não tinha uma só palavra de discordância a dizer, não podia acusar-se a si própria de alguma vez lhes ter chamado o que quer que fosse.

E posso garantir-lhe, minha senhora, que não há acomodações melhores que as dum navio de guerra; estou a referir-me aos maiores, claro. Numa fragata, é óbvio que estamos mais confinados... embora qualquer mulher razoável possa sentir-se perfeitamente feliz numa; e devo dizer que as horas mais felizes da minha vida foram passadas a bordo de um navio. Quando estávamos juntos, sabe?, não temíamos nada. Felizmente, eu sempre gozei de excelente saúde e nunca me senti afetada pelos diferentes climas. Talvez me sentisse um pouco abalada durante as primeiras vinte e quatro horas no mar, mas, depois disso, nunca soube o que era enjoar. A única vez em que realmente sofri, de corpo e alma, a única vez em que me imaginei doente ou pensei no perigo foi durante o Inverno que passei sozinha em Deal, quando o almirante... o comandante Croft... estava no mar do Norte. Eu vivia continuamente cheia de medo e sofria de todos os males imaginários devido ao fato de não ter nada que fazer e de não saber quando voltaria a ter notícias dele; mas, desde que pudéssemos estar juntos, eu não sofria de nada, nem nunca sentia o mínimo desconforto.

Sim, com certeza. Sim, de fato, oh, sim, estou absolutamente de acordo consigo, Sra. Croft- foi a resposta entusiástica da Sra. Musgrove. - Não há nada tão mau como uma separação. Estou absolutamente de acordo. Eu sei o que isso é, pois o Sr. Musgrove assiste sempre às sessões do Tribunal, e eu fico tão satisfeita quando estas chegam ao fim e ele regressa são e salvo.

O serão terminou com um baile. Quando lhe foi proposto, Anne ofereceu os seus préstimos, como de costume, e, embora os seus olhos se enchessem por vezes de lágrimas enquanto estava ao piano, ficou muito satisfeita por estar ocupada e não desejou mais nada em troca a não ser passar despercebida.

Foi uma festa alegre, e ninguém pareceu estar mais bem-disposto que o comandante Wentworth. Ela achou que ele tinha todos os motivos para se sentir satisfeito, nomeadamente a atenção e a deferência gerais e, principalmente, a atenção de todas as jovens. Tinha sido, aparentemente, concedido às Meninas Hayter, as meninas da família de primos já referida, a honra de se apaixonarem por ele; e, quanto a Henrietta e Louisa, estas pareciam estar tão completamente absorvidas por ele que só a permanente aparência de uma perfeita amizade entre elas conseguia fazer crer que não eram rivais declaradas. Quem se admiraria de ele ficar envaidecido com uma tão universal e ansiosa atenção?

Estes eram alguns dos pensamentos que perpassavam pela mente de Anne, enquanto os seus dedos trabalhavam mecânica, inconscientemente, durante meia hora seguida, sem se enganar.

Uma vez ela sentiu que ele estava a olhar para ela observando o seu rosto transformado, tentando, talvez, ver nele os vestígios do rosto que outrora o encantara; e uma vez ela soube que ele devia ter falado nela - mal tivera consciência disso até ter ouvido a resposta, mas, nessa altura, teve a certeza de que ele perguntara ao seu par se a Menina Elliot nunca dançava. A resposta foi: Oh!, não, nunca, há muito que ela deixou de dançar. Ela prefere tocar. Nunca se cansa de tocar.

-Uma vez, ele falou-lhe. Ela tinha deixado o piano quando o baile terminou, e ele sentara-se a trautear uma ária de que desejava dar uma idéia à Sra. Musgrove. Sem pensar, ela voltou a essa parte da sala; ele viu-a e, levantando-se imediatamente, disse com uma delicadeza estudada:

Perdão, minha senhora, este é o seu lugar. E, embora ela se tivesse afastado logo com uma negativa firme, ele não voltou a sentar-se. Anne não queria que ele voltasse a olhá-la ou a falar-lhe assim. A sua delicadeza fria e a sua atitude cerimoniosa eram piores que a indiferença total.


Capítulo Nove

O comandante Wentworth viera instalar-se em Kellynch como se a casa fosse sua, para ficar o tempo que quisesse, pois o almirante dedicava-lhe tanta amizade fraternal como a mulher.

À chegada, ele tencionara seguir muito em breve para Shropshire, para visitar o irmão instalado naquela região, mas os atrativos de Uppercross levaram-no a adiar esta visita.

Havia tanta simpatia, lisonja e encanto no modo como era ali recebido; os velhos eram tão hospitaleiros e os jovens tão agradáveis que ele decidira ficar e esperar um pouco mais antes de ir conhecer todos os encantos e perfeições da mulher de Edward.

Ao fim de algum tempo, ele passou a ir a Uppercross quase todos os dias. Os Musgrove dificilmente estariam mais prontos a convidá-lo do que ele a aceitar, particularmente de manhã, quando não tinha companhia em casa, pois o almirante e a Sra. Croft iam geralmente passear juntos, visitando os seus novos domínios, os relvados e os carneiros, e fazendo-o com uma lentidão insuportável para uma terceira pessoa; outras vezes saíam num cabriolé recentemente adquirido.

Até então, tinha havido entre os Musgrove e os seus familiares uma única opinião sobre o comandante Wentworth. Esta era sempre a mesma, uma calorosa admiração em todos os aspectos. Mas, assim que esta intimidade se estabeleceu, surgiu entre eles um certo Charles Hayter que ficou muito perturbado com esta amizade e considerou o comandante Wentworth um intruso.

Charles Hayter era o primo mais velho e era um jovem simpático e agradável; antes do aparecimento do comandante Wentworth, tinha havido uma afeição bastante nítida entre ele e Henrietta. Ele tinha tomado ordens e, uma vez que o seu curato era próximo e não exigia que residisse nele, vivia em casa do pai, apenas a duas milhas de Uppercross. Uma breve ausência tinha deixado a sua amada sem o privilégio das suas atenções neste período crítico e, quando regressou, teve o desgosto de ver que a atitude dela se tinha alterado e de encontrar o comandante Wentworth.

A Sra. Musgrove e a Sra. Hayter eram irmãs. Tinham ambas dinheiro, mas os seus casamentos tinham ocasionado uma diferença significativa no lugar que passaram a ocupar na sociedade. O Sr. Hayter possuía alguns bens, mas estes eram insignificantes quando comparados com os do Sr. Musgrove e, enquanto os Musgrove estavam na primeira classe da sociedade, os jovens Hayter, devido ao estilo de vida inferior, reservado e pouco requintado dos pais e à sua própria instrução deficiente, não teriam pertencido a classe nenhuma se não fosse a sua ligação com Uppercross. O filho mais velho, que decidira tornar-se um estudioso e um cavalheiro,

constituía uma exceção, e era muito superior a todos os outros em cultura e educação. As duas famílias sempre se tinham dado muito bem, não existindo, por parte de uns, qualquer orgulho nem, por parte dos outros, qualquer inveja; e as Meninas Musgrove sentiam alguma superioridade apenas na medida em que esta lhes conferia o prazer de educar os primos.

As atenções de Charles para com Henrietta tinham sido observadas pelos pais desta sem qualquer reprovação. Não seria um ótimo casamento; mas se Henrietta gostasse dele, e Henrietta parecia, de fato, gostar dele. A própria Henrietta pensava que gostava, antes de o comandante Wentworth aparecer; mas, a partir dessa altura, o primo Charles fora esquecido.

Tanto quanto Anne podia observar, ainda estava em dúvida qual das duas irmãs o comandante Wentworth preferia. Henrietta era talvez a mais bonita, Louisa a mais alegre, e agora ela não sabia se ele se sentiria mais atraído pela personalidade mais meiga, se pela mais alegre.

O Sr. e a Sra. Musgrove, quer por serem pouco observadores, quer por terem uma confiança total no discernimento das duas filhas e no de todos os jovens que se aproximavam delas, pareciam deixar tudo entregue ao acaso. Na Casa Grande não havia o menor indício de ansiedade ou preocupação da sua parte; mas, no chalé, as coisas eram diferentes; o jovem casal estava mais inclinado a especular e a admirar-se com a situação; e ainda o comandante Wentworth não tinha visitado os Musgrove quatro ou cinco vezes e Charles Hayter tinha acabado de regressar, já Anne se via obrigada a escutar as opiniões do cunhado e da irmã sobre qual das meninas ele gostava mais. Charles era a favor de Louisa, e Mary de Henrietta, mas concordavam os dois que seria maravilhoso se ele casasse com uma delas. Charles nunca tinha conhecido um homem mais agradável em toda a sua vida e, pelo que ouvira o próprio comandante Wentworth dizer, tinha a certeza de que ganhara mais de vinte mil libras com a guerra. Isto já constituía uma boa fortuna; além disso, havia a possibilidade de ganhar mais numa guerra futura, e ele estava seguro de que o comandante Wentworth era um homem que provavelmente se distinguiria entre os oficiais da Marinha. Oh! Seria um magnífico casamento para qualquer das duas irmãs.

Não há dúvida de que seria - respondeu Mary. - Meu Deus! Se ele alcançasse grandes honras! Se fosse feito baronete! Lady Wentworth soa muito bem. Seria uma ótima coisa para Henrietta! Ela preceder-me-ia e Henrietta não desgostaria nada disso. Sir Frederick e Lady Wentworth! Mas seria um título novo, e eu nunca gostei muito de títulos novos.

Mary gostava de pensar que Henrietta era a preferida, por causa de Charles Hayter, a cujas pretensões ela desejava que fosse posto Fim. Ela sentia-se superior em relação aos Hayter, e achava que seria uma infelicidade que a ligação existente entre as famílias fosse reatada; seria muito triste para ela e para os filhos.

Sabes? - disse ela -, não consigo pensar nele como um bom partido para Henrietta; e, considerando as alianças que os Musgrove têm feito, ela não tem o direito de desperdiçar a sua vida. Acho que nenhuma menina tem o direito de fazer uma escolha que possa ser desagradável e inconveniente para a parte principal da sua família, proporcionando relações indesejáveis aos que não estão habituados a elas. E, afinal, quem é Charles Hayter? Não passa de um cura de aldeia. Um partido muito pouco adequado para a Menina Musgrove de Uppercross.

O marido, porém, não concordava com ela neste ponto; pois, além de ter grande consideração pelo primo, Charles Hayter era o filho mais velho e via as coisas sob o ponto de vista de filho mais velho.

Agora estás a dizer disparates, Mary - foi a sua resposta. -Pode não ser um grande partido para Henrietta, mas Charles tem uma boa possibilidade, através dos Spicer, de obter alguma coisa do bispo daqui a um ano ou dois; e deves lembrar-te de que ele é o filho mais velho; quando o meu tio morrer, ele vai receber uma boa herança. A propriedade de Winthrop tem mais de duzentos e cinquenta acres, além da quinta perto de Taunton, que possui alguma da melhor terra da região. Devo dizer que, com exceção de Charles, qualquer deles seria um partido muito desigual para Henrietta e, de fato, não poderia haver casamento; ele é o único possível; é um sujeito bom, com um bom feitio e, quando Winthrop lhe for parar às mãos, ele fará dela um local diferente e viverá de um modo muito diferente; e, com aquela propriedade, ele nunca será um homem de desprezar; é uma boa propriedade livre. Não, não; Henrietta podia arranjar um marido pior que Charles Hayter; e, se ela ficar com ele, e Louisa se casar com o comandante Wentworth, ficarei muito satisfeito.

Charles pode dizer o que quiser- exclamou Mary para Anne, assim que ele saiu da sala -, mas seria chocante se Henrietta casasse com Charles Hayter; uma coisa muito má para ela, e ainda pior para mim; assim, seria muito desejá vel que o comandante Wentworth a fizesse esquecê-lo completamente, e tenho poucas dúvidas de que não o tenha feito. Ela mal reparou em Charles Hayter ontem. Gostaria que tivesses lá estado para ver o comportamento dela. E quanto à questão de o comandante Wentworth gostar tanto de Louisa como de Henrietta, é um disparate dizê-lo; porque ele gosta realmente mais de Henrietta. Mas Charles é tão teimoso! Gostaria que tivesses estado conosco ontem, pois poderias ter decidido quem tem razão, e tenho a certeza de que pensarias que sou eu, a não ser que estivesses resolvida a estar contra mim.

Um jantar em casa do Sr. Musgrove tinha sido a ocasião em que Anne deveria ter visto todas essas coisas; mas ela ficara em casa, com a dupla desculpa de uma dor de cabeça e de uma ligeira recaída do pequeno Charles. Ela só pensara em evitar o comandante Wentworth; mas o fato de ter escapado a ter servido de árbitro era uma vantagem adicional de uma noite sossegada. Quanto à opinião do comandante Wentworth, ela achava mais importante que ele tivesse a certeza dos seus sentimentos suficientemente cedo para não colocar em perigo a felicidade de qualquer das irmãs nem manchar a sua própria honra. Que decidisse se preferia Henrietta a Louisa ou Louisa a Henrietta. Qualquer delas seria, com toda a probabilidade, uma mulher afetuosa e de bom temperamento. A respeito de Charles Hayter, ela tinha a delicadeza de sentimentos que se sente magoada com a conduta leviana de uma jovem bem intencionada, e um coração que simpatizava com todo o sofrimento provocado por ela; mas se Henrietta tivesse chegado à conclusão de que se enganara quanto à natureza dos seus sentimentos, deveria comunicar essa alteração o mais depressa possível.

Charles Hayter tinha reparado em muita coisa no comportamento da prima que o perturbara e entristecera. Ela estimava-o demasiado para se mostrar tão distante que pudesse, em dois encontros, extinguir toda a esperança passada e fazê-lo sentir que só lhe restava manter-se afastado de Uppercross; mas houve uma alteração que se tornou alarmante quando ele concluiu que a causa provável era um homem como o comandante Wentworth. Ele estivera ausente apenas dois domingos e, quando se tinham separado, ele tinha-a deixado interessada, até mesmo tanto quanto ele, na perspectiva de deixar, em breve, o curato atual e obter, em vez desse, o de Uppercross. Parecera-lhe, na altura, que o que mais agradara a Henrietta era que o Dr. Shirley, o reitor que, durante mais de quarenta anos, tinha cumprido zelosamente todos os deveres do seu ministério, mas que já estava demasiado debilitado para muitos deles, estava decidido a nomear um coadjutor; ele iria tornar o curato o melhor possível, e prometera dá-lo a Charles Hayter. A vantagem de ter de vir apenas para Uppercross, em vez de ser obrigado a percorrer seis milhas para o lado oposto; de ter, em todos os aspectos, um curato melhor; de ficar ao serviço do prezado Dr. Shirley e de o prezado Dr. Shirley ser substituído nas tarefas que já não podia levar a cabo sem se fatigar imenso, era muito importante, até mesmo para Louisa, mas tinha sido quase tudo para Henrietta.

Quando ele voltou, o interesse pelo assunto tinha desaparecido. Louisa não pôde ouvir o seu relato de uma conversa que acabara de ter com o Dr. Shirley; ela estava à janela a ver se via o comandante Wentworth; e até mesmo Henrietta, quanto muito, só estava meio atenta e parecia ter esquecido todas as anteriores dúvidas e preocupações sobre o assunto.

Bem, estou muito satisfeita, mas também sempre achei que ias conseguir; sempre pensei que o lugar seria teu. Nunca pensei que... sabes?, o Dr. Shirley teria de ter um coadjutor, e ele tinha-te prometido. Ele vem aí, Louisa?

Uma manhã, pouco depois do jantar em casa dos Musgrove em que Anne não estivera presente, o comandante Wentworth entrou na sala de visitas do chalé, em que ela se encontrava sozinha com o pequeno Charles, deitado no sofá. A surpresa de se encontrar quase a sós com Anne Elliot retirou a compostura habitual aos seus modos. Estremeceu e apenas conseguiu dizer:

-Pensei que as Meninas Musgrove estivessem aqui... a Sra. Musgrove disse-me que as encontraria aqui, antes de se dirigir à janela para se controlar e decidir como devia proceder.

Elas estão lá em cima com a minha irmã; descerão dentro de momentos, creio - tinha sido a resposta de Anne, em toda a sua natural confusão, e, se o garoto não a tivesse chamado a pedir-lhe qualquer coisa, ela teria saído da sala no momento seguinte e libertado o comandante Wentworth e a si própria da embaraçosa situação.

Ele continuou à janela e, depois de dizer calma e educadamente -Espero que o pequeno esteja melhor-, ficou calado. Ela foi obrigada a ajoelhar-se ao pé do sofá e ficar ali para fazer a vontade ao doente; e assim continuaram durante alguns minutos até que, para sua grande satisfação, ouviu uma pessoa atravessar o pequeno vestíbulo.

Quando virou a cabeça, teve esperança de ver o dono da casa; mas era alguém que dificilmente tornaria a situação mais fácil - Charles Hayter, provavelmente não mais satisfeito de encontrar o comandante Wentworth do que o comandante ficara ao ver Anne.

Ela só tentou dizer:

Como está? Não se querem sentar? As outras estarão cá dentro em pouco.

O comandante Wentworth afastou-se da janela, aparentemente disposto a conversar; mas Charles Hayter pôs rapidamente termo às suas tentativas, sentando-se perto da mesa e pegando no jornal; o comandante Wentworth voltou para junto da janela. No minuto seguinte, chegou mais uma personagem. O rapaz mais novo, uma criança espantosamente forte e irrequieta, com 2 anos, tinha conseguido que alguém lhe abrisse a porta e surgiu entre eles, dirigindo-se ao sofá para ver o que se estava a passar e reclamar os seus direitos sobre qualquer guloseima que estivesse a ser distribuída. Como não havia nada para comer, só lhe restava brincar; e, como a tia não o deixava arreliar o irmão doente, ele começou a agarrar-se a ela enquanto esta estava ajoelhada, de tal modo que, ocupada como estava com o pequeno Charles, ela não podia sacudi-lo.

Falou-lhe, ordenou, pediu e insistiu, mas em vão.

Por alguns momentos, conseguiu que ele se afastasse um pouco, mas o pequeno ainda se divertiu mais a trepar outra vez para cima das suas costas.

Walter- disse ela -, desce imediatamente. Estás a ser impertinente. Estou muito zangada contigo.

Walter- exclamou Charles Hayter-, por que não fazes o que te mandam? Não ouviste a tua tia? Vem cá, Walter, vem ao primo Charles. Mas Walter não se mexeu nem um pouco. No momento seguinte, porém, ela sentiu-se livre dele; alguém estava a tirá-lo de cima dela, embora ele se tivesse inclinado tanto sobre a sua cabeça que as mãozinhas gorduchas lhe davam a volta ao pescoço, e ele foi resolutamente afastado, antes de ela chegar a saber que fora o comandante Wentworth quem o fizera.

A emoção que sentiu ao descobri-lo deixou-a completamente sem fala. Ela nem sequer conseguiu agradecer-lhe. Só conseguiu ficar junto do pequeno Charles, sentindo-se muito perturbada. A amabilidade dele ao vir socorrê-la, a sua atitude, o silêncio em que tudo se passou, os pequenos pormenores, juntamente com a convicção que logo lhe ocorreu, pelo barulho que ele estava a fazer propositadamente com a criança, de que ele tencionava evitar ouvir os seus agradecimentos e procurava mostrar que o que menos queria era conversar com ela, produziram um turbilhão de sensações confusas e dolorosas de que só conseguiu recompor-se quando Mary e as Meninas Musgrove entraram, e ela pôde entregar a criança aos seus cuidados e sair da sala. Ela não podia ficar. Talvez fosse uma oportunidade para observar os amores e os ciúmes dos quatro; eles estavam agora todos juntos, mas ela não podia mesmo ficar.

Era evidente que Charles Hayter não gostava nada do comandante Wentworth. Ela teve a impressão de o ter ouvido dizer, num tom de voz irritado, depois da interferência do comandante Wentworth -Tu devias ter-me obedecido, Walter; eu disse-te que não arreliasses a tua tia-, e compreendeu que ele lamentava que o comandante Wentworth tivesse feito o que ele próprio deveria ter feito. Mas ela não estava interessada nos sentimentos de Charles Hayter nem nos de mais ninguém até conseguir ordenar os seus.

Sentiu-se envergonhada, envergonhada por estar tão nervosa, de ter ficado tão perturbada com uma ninharia; mas esta era a realidade, e ela precisava de algum tempo de solidão e reflexão para se recompor.


Capítulo Dez

Não poderia deixar de haver outras oportunidades para fazer as suas observações. Pouco depois, Anne encontrou-se vezes suficientes na companhia dos quatro para conseguir formar uma opinião: teve, contudo, a sensatez de não a manifestar em casa, pois sabia que não iria agradar nem ao marido nem à mulher, uma vez que, embora achasse que Louisa era a preferida, tanto quanto ela podia julgar pela recordação e pela sua experiência, o comandante Wentworth não estava apaixonado por nenhuma delas. Elas estavam mais apaixonadas por ele; no entanto, isso não era amor. Era uma ligeira febre de admiração que, nalguns casos, talvez pudesse, talvez fosse mesmo, acabar em amor.

Charles Hayter parecia ter-se apercebido de ter sido relegado para segundo plano e, no entanto, Henrietta dava, por vezes, a impressão de se sentir dividida entre os dois. Anne desejava poder dizer-lhes o que se passava e de lhes fazer notar os perigos a que se expunham. Ela não atribuía qualquer malícia a nenhum deles. E constituía para ela motivo de satisfação acreditar que o comandante Wentworth não tinha a mínima noção do sofrimento que estava a provocar. Não havia nos seus modos qualquer ar de triunfo, nem de triunfo associado à pena. Ele, provavelmente, nunca tinha ouvido falar nas pretensões de Charles Hayter, nem nunca imaginara que elas existissem. Ele só procedera mal em aceitar as atenções (pois a palavra correta era aceitar) das duas jovens ao mesmo tempo.

Depois de uma breve luta, porém, Charles Hayter pareceu abandonar o campo. Passaram-se três dias sem que viesse a Uppercross, o que constituiu uma notável transformação. Ele tinha até recusado um convite para jantar; e, quando o Sr. Musgrove o encontrou com uma pilha enorme de livros à sua frente, o Sr. e a Sra. Musgrove acharam que algo errado se passava e comentaram, com rostos graves, que ele se matava a estudar. Mary tinha esperança e fé em que ele tivesse recebido uma recusa definitiva por parte de Henrietta, e o marido vivia na esperança permanente de o ver no dia seguinte. Anne limitava-se a pensar que Charles Hayter era sensato.

Uma manhã, por volta desta altura, Charles Musgrove e o comandante Wentworth tinham ido caçar juntos, e as duas irmãs estavam sentadas a trabalhar tranquilamente, quando as irmãs da Casa Grande surgiram à janela. Era um belo dia de Novembro, e as Meninas Musgrove atravessaram o jardim e pararam só para dizer que iam dar um Longo passeio e achavam, portanto, que Mary não gostaria de ir com elas; e, quando Mary respondeu imediatamente, com algum despeito por acharem que ela não gostava de dar passeios longos: -Oh, sim, gostaria muito de ir convosco, gosto muito de dar passeios longos-, Anne ficou convencida, pelos olhares das duas meninas, de que era isso precisamente o que não desejavam; ela sentiu-se de novo admirada com o tipo de necessidade que os hábitos familiares pareciam produzir, de tudo ser comunicado, de tudo ser feito em conjunto, por mais indesejado e inconveniente que isso fosse.

Ela tentou dissuadir Mary de ir, mas em vão; e, assim, achou melhor aceitar o convite muito mais cordial que as Meninas Musgrove lhe fizeram para que também fosse, pois poderia ser útil para voltar para trás com a irmã ou diminuir a sua influência em qualquer plano que elas tivessem em mente.

Não consigo imaginar por que é que elas haviam de pensar que eu não gostaria de dar um passeio longo! - disse Mary, ao subir as escadas. - Toda a gente acha que eu não gosto de andar muito! E, no entanto, elas não teriam ficado satisfeitas se eu me tivesse recusado a acompanhá-las. Quando nos vêm convidar assim, de propósito, como podemos recusar? No momento em que elas iam sair, os cavalheiros regressaram.

Tinham levado um cão novo que lhes estragara o desporto e os tinha feito voltar cedo. Por isso, tinham o tempo, a energia e a disposição exatas para um passeio, e juntaram-se a elas com prazer. Se tivesse previsto aquela companhia, Anne teria ficado em casa; mas, sentindo algum interesse e curiosidade, ela achou que era demasiado tarde para voltar atrás, e os seis seguiram na direção escolhida pelas Meninas Musgrove, que, evidentemente, consideravam que o passeio estava sob sua orientação. A intenção de Anne era não se atravessar no caminho de ninguém e, sempre que os trilhos estreitos através dos campos tornassem necessária a separação, manter-se junto do cunhado e da irmã. O prazer do passeio deveria provir do exercício e do dia, da visão dos últimos sorrisos do ano sobre as folhas acastanhadas e as sebes encarquilhadas e de repetir para si própria algumas das mil descrições poéticas do Outono, aquela estação que exercia uma tão singular e inexauável influência sobre os espíritos requintados e sensíveis, a estação que inspirava em todos os poetas que merecem ser lidos uma tentativa de descrição ou uns versos cheios de sentimento.

Ela ocupou a mente o mais possível com estas reflexões ou citações, mas, quando estava ao alcance da conversa do comandante Wentworth com qualquer das Meninas Musgrove, era impossível não a ouvir, no entanto, ouviu muito pouco que tivesse interesse. Era apenas uma conversa animada como a de quaisquer jovens amigos. Ele conversava mais com Louisa do que com Henrietta. Louisa certamente se esforçava mais por atrair a sua atenção do que a irmã. Esta diferença pareceu aumentar, e houve uma frase de Louisa que a impressionou.

Depois de um dos muitos louvores ao dia que eram constantemente proferidos, o comandante Wentworth exclamou:

Que tempo maravilhoso para o almirante e para a minha irmã! Eles tencionavam ir dar um longo passeio de carruagem esta manhã; talvez os consigamos avistar de algumas destas colinas. Falaram em vir para esta zona. Onde será que eles vão virar hoje? Oh, isso acontece com muita frequência, garanto-lhe, mas a minha irmã não se importa... tanto lhe faz ser cuspida como não.

Ah! Está a exagerar, eu sei - exclamou Louisa -, mas, se isso fosse realmente verdade, no seu lugar eu faria o mesmo. Se eu amasse um homem, como ela ama o almirante, estaria sempre junto dele, nada nos separaria, e eu preferia que a carruagem se voltasse com ele do que ser conduzida em segurança por qualquer outra pessoa. Estas palavras foram ditas com entusiasmo.

Preferia? - exclamou ele, no mesmo tom. - Presto-lhe as minhas homenagens! - E, durante algum tempo, fez-se silêncio entre eles.

Anne não conseguiu, de imediato, lembrar-se de uma nova citação. As doces cenas outonais teriam de ser postas de lado durante algum tempo - a não ser que lhe viesse à mente algum soneto cheio de analogias com o ano em declínio, com a felicidade em declínio e com imagens de juventude, esperança e Primavera, tudo junto. Quando enveredaram, em fila, por outro caminho, ela conseguiu dizer:

Este não é um dos caminhos para Winthrop? - Mas ninguém ouviu ou, pelo menos, pareceu ouvir. Winthrop, porém, ou os seus arredores - pois os primos andavam, por vezes, a passear perto de casa-, era realmente o seu destino, e, após outra meia milha de subida gradual por entre enormes cercados, em que as charruas em atividade e os sulcos recentemente abertos indicavam que o lavrador reagia contra o doce destino poético e tinha em vista o renascer da Primavera, chegaram ao topo da enorme colina que separava Uppercross de Winthrop e avistaram esta última, no sopé da colina em frente.

Winthrop, sem beleza e sem dignidade, estendia-se à sua frente; uma casa baixa, sem qualquer característica especial e rodeada por celeiros e construções agrícolas. Mary exclamou:

Deus do Céu! Aqui está Winthrop... não fazia a mínima idéia!... bem, acho que é melhor voltarmos para trás, estou extremamente cansada. Henrietta, tímida e envergonhada, e não vendo o primo Charles Hayter a passear por nenhum atalho ou encostado a um portão, estava disposta a fazer o que Mary queria; mas Não", disse Charles Musgrove. “Não, não!", exclamou Louisa num tom ainda mais ansioso; e, chamando a irmã de parte, pareceram discutir acaloradamente o assunto.

Charles, entretanto, estava a manifestar a sua intenção de visitar a tia, já que se encontrava tão perto; e, muito evidentemente, embora um tanto receoso, a tentar convencer a mulher a ir também. Mas este foi um dos pontos em que a dama mostrou a sua resistência e, quando ele lhe fez ver a vantagem de descansar cerca de um quarto de hora em Winthrop, uma vez que se sentia tão cansada, ela respondeu resolutamente: Oh, não, absolutamente não! Subir outra vez a colina far-lhe-ia mais mal do que o bem que lhe faria sentar-se¯, e, pelo seu ar e atitude, era óbvio que não iria. Após uma breve sucessão de debates e consultas deste gênero, ficou acordado entre Charles e as irmãs que ele e Henrietta desceriam rapidamente até lá para fazerem uma curta visita de alguns minutos à tia e aos primos, enquanto o resto do grupo os aguardaria no topo da colina.

Louisa pareceu ser a principal organizadora do plano; e, enquanto ela os acompanhava um pouco na descida da colina, ainda a conversar com Henrietta, Mary aproveitou a oportunidade para olhar desdenhosamente em volta e dizer ao comandante Wentworth:

É muito desagradável termos parentes destes! Mas garanto-lhe que, em toda a minha vida, não estive em casa deles mais de duas vezes.

A única resposta que recebeu foi um sorriso forçado de condescendência, seguido de um olhar desdenhoso que ele lhe lançou ao afastar-se e cujo significado Anne conhecia perfeitamente.

O cimo da colina em que ficaram era um local agradável; Louisa voltou, e Mary, tendo encontrado um lugar confortável para se sentar, no degrau de um valado, sentiu-se satisfeita enquanto teve toda a gente à sua volta; mas quando Louisa levou consigo o comandante Wentworth para ir procurar avelãs que tivessem Ficado esquecidas numa sebe próxima, e elas deixaram, a pouco e pouco, de os ver e ouvir, Mary deixou de estar contente; aborreceu-se com o local em que estava sentada - tinha a certeza de que Louisa encontrara um melhor algures e nada pôde impedi-la de ir também procurar outro. Ela passou o mesmo portão - mas não conseguia vê-los. Anne encontrou um local agradável para ela, num talude seco e soalheiro, debaixo da sebe, onde ela sabia que eles se encontrariam- algures.

Mary sentou-se durante algum tempo, mas não estava bem; tinha a certeza de que Louisa encontrara um lugar melhor em qualquer outro local, e continuaria a procurá-la até a encontrar.

Anne, realmente muito cansada, ficou contente por se poder sentar; e, pouco depois, ouviu o comandante Wentworth e Louisa na sebe atrás de si, a fazerem o caminho de regresso ao longo da espécie de túnel bravio que se formara no meio. Eles conversavam enquanto se aproximavam. Distinguiu primeiro a voz de Louisa. Ela parecia estar no meio de um animado discurso. O que Anne ouviu primeiro foi:

E, assim, eu fi-la ir. Não podia suportar que ela não fizesse a visita por causa de um disparate daqueles. Eu alguma vez desistiria de fazer uma coisa que decidira fazer e que sabia estar certa por causa da atitude e da interferência de uma pessoa assim, ou de qualquer pessoa? Não, eu não me deixo ser tão facilmente persuadida. Quando me decido, está decidido. E Henrietta parecia ter decidido ir a Winthrop... e, no entanto, quase desistiu por causa de uma complacência sem sentido.

Se não fosse Louisa, ela teria voltado para trás?

Teria, sim, quase me sinto embaraçada por ter de o dizer.

Que sorte a dela, ter um espírito decidido como o seu por perto. Depois do que acabou de me dizer e que apenas confirmou o que eu próprio já observara na última vez que estive ao pé dele, não preciso de fingir que não compreendo o que se está a passar. Vejo que o que estava em causa era mais do que uma visita matinal de cortesia à vossa tia; e, se ela não tiver a determinação suficiente para resistir a interferências sem sentido em ninharias como esta, coitado dele, e dela também, quando se tratar de coisas realmente importantes, quando se virem perante circunstâncias que exijam coragem e força de espírito. A sua irmã é uma pessoa simpática, as estou a ver que não tem a sua firmeza e determinação de caráter. Se dá valor à conduta e felicidade dela, infunda-lhe a maior firmeza de espírito que puder. Mas isto é, sem dúvida, o que sempre fez. O pior defeito de um caráter fraco e indeciso é que não se pode confiar na influência que exercemos sobre ele. Nunca se pode ter a certeza de que uma boa impressão seja duradoura.

Toda a gente a pode alterar; quem quiser ser feliz tem de ser firme. Aqui está uma avelã- disse ele, apanhando uma de um ramo alto. - Tomemo-la como exemplo... uma bela avelã brilhante, que, com o dom da sua força original, sobreviveu a todas as tempestades do Outono. Nem um buraquinho, nem um ponto fraco em toda ela. Enquanto muitas das suas irmãs caíram e foram pisadas - prosseguiu ele num tom de divertida solenidade -, esta avelã ainda possui toda a felicidade que se supõe que uma avelã seja capaz de sentir. - Depois, voltando ao seu tom sério: - O meu primeiro desejo para todas as pessoas por quem me interesso é que sejam firmes. Para que Louisa Musgrove seja bela e feliz no Outono da sua vida, é necessário que alimente com carinho todas as suas qualidades atuais.

Ele terminou e não recebeu qualquer resposta. Anne teria ficado surpreendida se Louisa tivesse conseguido responder com prontidão a um tal discurso - palavras com tanto interesse, ditas com tanta seriedade e calor. Conseguia imaginar o que Louisa estava a sentir. Quanto a ela própria – receou mexer-se, com medo de que a vissem. Enquanto permanecesse onde estava, um arbusto de azevinho rasteiro protegia-a, e eles estavam a afastar-se. Antes de deixar de os poder ouvir, porém, Louisa voltou a falar:

Mary é uma pessoa bastante boa em muitos aspectos – disse ela -, mas por vezes irrita-me imenso, com toda a sua tolice e orgulho, o orgulho dos Elliot. Ela tem muito do orgulho dos Elliot. Nós preferíamos que Charles se tivesse casado com Anne. Suponho que sabe que ele queria casar com Anne!?

Após uma breve pausa, o comandante Wentworth disse:

Quer dizer que ela não aceitou?

Oh!, sim, certamente que sim.

Quando é que isso sucedeu?

Não sei exatamente, porque eu e Henrietta andávamos no colégio nessa altura, mas creio que foi cerca de um ano antes de ele se ter casado com Mary. Quem me dera que ela o tivesse aceitado. Pelo menos, teríamos gostado mais dela; e o papá e a mamã sempre acharam que foi por culpa da grande amiga dela, Lady Russell, que ela não aceitou. Eles pensam que Charles talvez não fosse suficientemente instruído e letrado para agradar a Lady Russell e que, por isso, ela convenceu Anne a não aceitar.

Os sons estavam a afastar-se, e Anne deixou de os ouvir. As suas próprias emoções mantiveram-na pregada ao chão. Levou bastante tempo a recompor-se e a conseguir mover-se. Não tivera a proverbial sorte de quem escuta o que não deve; não ouvira falar mal de si - mas ouvira muita coisa que lhe causava uma profunda dor. Ficou a saber o que o comandante Wentworth pensava do seu caráter; e tinham transparecido nele alguns sentimentos e uma certa curiosidade a respeito dela que lhe provocavam uma enorme agitação. Assim que pôde, foi à procura de Mary, e, quando a encontrou, voltou com ela para o primeiro lugar em que tinham estado sentadas, junto do degrau; sentiu um certo alívio pelo fato de todo o grupo se ter novamente reunido pouco depois e de terem todos retomado o passeio. O seu espírito precisava da solidão e do silêncio que só se pode encontrar no meio de muita gente.

Charles e Henrietta voltaram, trazendo com eles Charles Hayter, como se poderia calcular. Anne não tentou compreender os pormenores do que se passara, e pareceu que estes não foram relatados nem mesmo ao comandante Wentworth; mas tinha havido um recuo por parte do cavalheiro e alguma concessão por parte da dama, e não restava qualquer dúvida de que eles se sentiam contentes por se encontrarem juntos de novo. Henrietta parecia um pouco envergonhada, mas muito satisfeita, e Charles Hayter extremamente feliz, e, quase a partir do momento em que iniciaram o regresso a Uppercross, dedicaram-se exclusivamente um ao outro. Tudo indicava agora que o comandante Wentworth escolhera Louisa; nada era mais evidente; e, quando era necessário o grupo dividir-se, e mesmo quando não era, eles seguiam lado a lado, quase com tanta frequência como os outros dois.

Num extenso prado em que havia muito espaço para todos eles, seguiram assim divididos - formando três grupos distintos; e Anne estava necessariamente incluída no grupo dos três que manifestavam menos alegria e menos amabilidades. Ela juntou-se a Charles e a Mary e, como se sentia bastante cansada, aceitou de bom grado o outro braço de Charles - mas Charles, embora muito bem-disposto quando se dirigia a ela, estava irritado com a mulher. Mary tinha-se mostrado pouco prestimosa e ia agora sofrer as consequências, as quais consistiam em ele deixar cair constantemente o braço para cortar os topos das urtigas da sebe com uma vara; e, quando Mary começou a queixar-se e a lamentar-se de ser maltratada, como de costume, por ir do lado da sebe, enquanto Anne nunca era incomodada no outro lado, ele deixou cair os braços de ambas, foi atrás de uma doninha que tinha visto de relance e não voltou a fazer-lhes companhia.

Este longo prado era contornado por uma estrada que o carreiro por onde seguiam ia cruzar; e, quando o grupo chegou à cancela de saída, viram aproximar-se a carruagem que seguia na mesma direção e que ouviam há já algum tempo; era o cabriolé do almirante Croft. Ele e a mulher tinham dado o passeio planejado e estavam de regresso a casa. Quando tiveram conhecimento da longa caminhada que os jovens tinham feito, ofereceram amavelmente um lugar à senhora que estivesse particularmente cansada; isso poupar-lhe-ia uma milha inteira, e eles iam passar por Uppercross. O convite foi dirigido a todas, e por todas recusado. As Meninas Musgrove não estavam absolutamente nada cansadas, e Mary, ou se sentia ofendida por não ter sido convidada antes de qualquer das outras, ou aquilo a que Louisa chamava o orgulho dos Elliot não podia suportar ser o terceiro ocupante de um cabriolé de um só cavalo.

O grupo a pé já tinha atravessado a estrada e subia o talude em frente; o almirante estava a pôr o cavalo em movimento quando o comandante Wentworth atravessou rapidamente a sebe e disse qualquer coisa à irmã. As palavras poderão ser adivinhadas pelo efeito causado.

Menina Elliot, tenho a certeza de que a menina está cansada - exclamou a Sra. Croft. - Dê- nos o prazer de a levarmos a casa. há bastante espaço para três pessoas, garanto-lhe. Se fôssemos todos iguais a si, acho que nos podíamos sentar quatro. Venha, por favor.

Anne ainda estava na estrada e, embora tivesse instintivamente começado a recusar, não a deixaram prosseguir. A amável insistência do almirante veio juntar-se à da mulher; eles não aceitariam uma recusa; apertaram-se o mais possível para arranjar espaço para ela a um canto, e o comandante Wentworth, sem dizer uma palavra, virou-se para ela e, em silêncio, obrigou-a a aceitar a sua ajuda para subir para a carruagem. Sim, ele fizera-o. Ela estava dentro da carruagem e sentia que ele a colocara lá, que a vontade e as mãos dele o tinham feito, que estava ali devido ao fato de ele ter compreendido o seu cansaço e de ter decidido fazê-la descansar. Sentiu-se emocionada com os sentimentos dele a seu respeito que todas estas coisas tornavam evidentes.

Esta pequena circunstância parecia o remate de tudo o que acontecera antes. Ela compreendia-o. Ele não conseguia perdoar-lhe - mas não podia ficar insensível. Embora condenando-a pelo passado, e recordando este com um ressentimento exacerbado e injusto, embora ela lhe fosse indiferente, embora ele estivesse a afeiçoar-se a outra, mesmo assim, ele não conseguia vê-la sofrer sem desejar aliviar-lhe o sofrimento. Era uma réstia dos antigos sentimentos; era, embora inconsciente, um impulso de amizade pura; era uma prova do seu coração generoso em que ela não conseguia pensar sem emoções, em que o prazer e a dor se misturavam de tal forma que ela não sabia qual era dominante.

As suas respostas à gentileza e aos comentários dos companheiros foram, a princípio, dadas sem pensar. Tinham j percorrido metade do caminho ao longo da estrada rural quando começou a escutar com atenção o que eles diziam. Viu que conversavam sobre Frederick.

Ele certamente tenciona casar com uma daquelas duas meninas, Sophy - dizia o almirante -, mas não sei qual. Acho que ele já anda atrás delas há tempo suficiente para se decidir. Ah, isto é resultado da paz. Se estivéssemos agora em guerra, há muito que ele teria tomado uma decisão. Nós, marinheiros, Menina Elliot, não nos podemos dar ao luxo de ter namoros longos em tempo de guerra. Quantos dias decorreram, querida, entre o primeiro dia em que te vi e aquele em que nos encontrámos nos nossos aposentos em North Yarmouth?

O melhor não falarmos nisso, querido - respondeu a Sra. Croft num tom alegre-, porque, se a Menina Elliot soubesse com que rapidez nos entendemos, ela nunca acreditaria que pudéssemos ter sido felizes juntos. Mas eu já conhecia a tua reputação há muito tempo.

Bem, e eu tinha ouvido dizer que eras uma menina muito bonita; de que é que havíamos de ficar à espera? Não gosto de andar muito tempo com estas coisas pendentes. Quem me dera que Frederick se decidisse e trouxesse uma dessas jovens para Kellynch. Assim, elas teriam sempre companhia. E são ambas jovens muito simpáticas; mal distingo uma da outra.

São, de fato, meninas alegres e simples - disse a Sra. Croft num tom de elogio mais comedido, o qual levou Anne a desconfiar de que ela, mais observadora, talvez não considerasse nenhuma das meninas dignas do seu irmão -, e é uma família muito respeitável, Frederick não se poderia ligar a gente melhor. Meu querido almirante, o poste! Vamos de certeza bater nele.

Mas dando, ela própria, calmamente, uma melhor direção às rédeas, evitaram o perigo; e, depois disso, uma vez, estendendo criteriosamente a mão, evitou que caíssem numa valeta e não chocassem com uma carroça de estrume; e Anne, divertida com o estilo de condução de ambos, que ela imaginou retratar o modo como os seus negócios eram conduzidos, viu-se depositada por eles, em segurança, no chalé.


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Leia aqui meus inúmeros estudos & pesquisas sobre Persuasão, Jane Austen e suas obras.

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