& Moira Bianchi: O piano na preparação de moças casamenteiras da Regência

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O piano na preparação de moças casamenteiras da Regência

Olá,
Sigo na perseguição da plena educação para tornar-me uma lady a preparação de moçoilas para o matrimônio, de preferência com cavalheiros de posses ou membros da nobresa.
Nesta caminhada, as amigas são de grande ajuda. Fran, fair lady Janeite, ofereceu este artigo tão bacana sobre a importância do piano na educação feminina nos tempos da Regência, época de Jane Austen. E isso abriu uma caixa de Pandora.
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'a lady playing a spinet' de CVHolsoe
pic do Twitter
Me interessei na hora!
Daí, conversamos sobre, pesquisei e... 
A coisa tomou fermento!

O instrumento gera muita discussão bacana, tem muita fonte de pesquisa e tudo acho interessante. 
Então resolvi dividir em 4 posts.
Esse é o 2º que tem o artigo original
O piano na Era da Regência
com meus comentários abaixo.

Neste, conto e mostro tipos de pianos usados na Regência e era Vitoriana e seus antepassados. 
Falo de alguns virtuosos e faço uma breve introdução ao que será discutido.

Ao final, incluo links para os dois outros
O piano e a música para Jane Austen
aqui localizo o instrumento na vida e nas obras da Diva



Vamos ao artigo.
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spirit, GRoux, 1885



Piano na Era da Regência  

O piano 
 O piano era um símbolo proeminente de classe e prosperidade, entre outras coisas, durante os séculos 18 e 19. Símbolos como esse visto em Orgulho e Preconceito de Jane Austen são um aspecto crucial para um romance poderoso. O período de Austen era drasticamente diferente do nosso, no entanto, e isso é importante para entender como o significado de símbolos culturais mudaram ao longo do tempo


Reconhecer como os símbolos mudaram, 
e compreender os significados que costumavam ser associados a eles, 
é crucial para uma interpretação fidedigna do texto. 

É muito importante entender que nos séculos 18 e 19 o comportamento social do piano, como sua importância e significado no presente, diferem grandemente do seu significado simbólico anteriormente. Se forem compreendidos, uma  interpretação do texto não será precisa, e por isso é tão importante pesquisar e descobrir os simbolismos do período da autora, a Era da Regência.  
Piano Classics from the World of Jane Austen
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Papel de gênero do piano 

 Há uma conexão significativa entre o piano e o sexo feminino. 
Os estudos de piano eram mais comuns para meninas do que meninos naquela época. Como explicado no artigo “Woman in Piano Pedagogy” (em tradução livre Mulheres na pedagogia do piano) por Debra Brubaker Burns, Anita Jackson e Connie Arrau Sturm, o piano era considerado um perfeito passatempo para uma senhora bem-criada no século 19.  
As mulheres eram encorajadas a entreter seus visitantes e familiares com suas performances, mas desencorajadas a procurar carreiras como musicistas, porque isso era considerado “uma profissão muito fatigante para mulheres” como dito pelo editor da revista inglesa de música “World” em 1939. Buscar uma carreira musical não era aprovado, mas uma quantidade crescente de mulheres começou a tocar para ganhar renda e, assim, maior independência. Entre 1852 e 1881, o número de musicistas mulheres triplicou, como explicado em “Woman in Piano Pedagogy”. 
Em O&P, Mary é frequentemente encontrada tocando piano, e ela também é muito independente, assim sua performance é possivelmente uma manifestação social de Austen falando contra os direitos limitados das mulheres. 
Jane Austen Entertains: Music from her own library
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Como dito por Mary Burgan, tocar piano era o indicador de status social assim como um dos feitos da mulher da sociedade refinada. 

Como nós podemos ver, o papel dos pianos mudou drasticamente. Em nossos tempos modernos, o piano não tem correlação com o gênero. Meninos tocam piano, meninas tocam piano; tem o mesmo sentido de um garoto ou garota indo à faculdade. No passado, era algo que só homens faziam. No século 21, é comum para ambos os gêneros frequentar faculdade. 


Esse é outro exemplo de como os sentidos e a implementação 
de diferentes coisas na sociedade mudaram com o tempo. 

Agora o piano não tem nenhuma associação que costumava ter; é simplesmente um instrumento, assim como o violoncelo e/ou trompa. Enquanto muitas famílias de classe alta, com frequência, possuíam um grande piano e um lugar em sua larga sala de visitas, o piano era em si, algo desfrutado e praticado por todas as classes.
  
Relevância e Significado do piano na Era da Regência  
 A maior importância do piano era fazer as jovens damas mais atraentes para o casamento, enquanto simultaneamente atuar como um símbolo das posses da família. O piano se tornou um instrumento onipresente nas casas burguesas. Garotas de posses com frequência começavam a tocar piano desde cedo e continuavam a aperfeiçoar suas habilidades até se tornarem mais velhas e mais maduras. Apesar de fazer a mulher mais atrativa para o casamento ser a razão mais importante para tocar piano, havia também outras razões. O piano provia música para todos os membros da família desfrutarem.  
Mulheres eram encorajadas a tocar para convidados e eram entretenimento para os familiares, mas como dito anteriormente não significava buscar carreira profissional. Se uma mulher buscasse uma carreira profissional, isso significaria que ela estava escapando de sua respectiva esfera de existência, que era a da casa e da família.  
O piano era muito importante na Europa como um símbolo de status. Christopher Wagner explica que, “o preço [do piano] no fim do século 18 caiu, mais ainda assim, apenas família de posses, eram quem podiam pagar por eles. Um piano de cauda custava tanto que poderia equivaler um ano de ganhos de um trabalhador habilidoso. O piano era um instrumento de classe, e classe era muito importante na sociedade do século 18 e 19, e então era muito importante para famílias ricas ostentarem um piano.  
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Importância do piano, e outros símbolos em Orgulho e Preconceito.  
 Os símbolos no romance de Austen, tais como o 
- piano, 
- cartas, 
- salões de bailes e 
- propriedades rurais com grandes sedes
refletem as engrenagens da cultura do período. 
As cartas da época de Austen carregam um significado bem diferente dos que elas têm agora. No século 21, as cartas não são muito usadas, foram substituídas por inúmeros tipos de dispositivos eletrônicos de comunicação, como os e-mails e mensagens. Na era de Austen a carta era a única forma de comunicação à distância, além do mensageiro pessoal, é claro (o que a maioria das pessoas não tinham), e isso era uma significativa parte da vida e uma arte a ser aprendida. 
Da mesma forma que o piano que é agora mais ou menos apenas um instrumento musical, na época de Austen era um símbolo de posses, classe, habilidades, entretenimento, e credibilidade para uma mulher no departamento do casamento. 
Do mesmo jeito ser uma boa escritora de cartas refletia a sua educação, sua habilidade ao piano era muito importante. Subentendia-se que uma boa tocadora de piano vinha de família com dinheiro que podia adquirir um instrumento, arcar com o custo de aulas e ter tempo livre para estudar já que ela não precisava trabalhar, ou seja, seria um bom partido, item visado no mercado do casamento.  


O piano e Orgulho e Preconceito 

(Frases explicadas) 
Capítulo 29, Lady Catherine interroga Lizzy Bennet.


“Oh! Então, uma hora ou outra, ficaremos feliz em ouvi-la. 
Nosso instrumento é excepcional, provavelmente superior a... 
Você deveria experimentar um dia. – Suas irmãs tocam ou cantam?” 


Nem Lady Catherine nem sua filha Anne tocam piano, mas mesmo assim elas tem um instrumento de qualidade excepcional - lembre-se que isso é símbolo do riqueza e poder delas. 
Lady Catherine deve ter pianos em sua casa para simbolizar sua própria superioridade social e financeira. Mostrar sua riqueza e poder era muito importante na época, e, portanto, era necessário para ela possuir seu próprio instrumento.  


“Por que nem todas aprenderam? Vocês todas deveriam ter aprendido. 
Todas as senhoritas Webb tocam, e o pai delas não tem uma renda tão boa como o de vocês.
Você desenha? 


É dado a Lady Catherine o status social, e com isso o direito inerente de perguntar a Elizabeth praticamente qualquer coisa que ela quiser. 
Além disso, Lady Catherine sente como se tivesse o conhecimento final em todos os assuntos, o que nem de longe é verdade. 
Lady Catherine se pergunta por que Elizabeth e suas irmãs não tiveram aulas de piano, especialmente quando famílias com até menos fortuna do que os Bennets investiram em suas filhas. Lady Catherine espera que todas as mulheres de relativa renda devam tocar piano, porque é isso é a expectativa social da época.  
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Cap 31, Darcy e Lizzy trocam farpas ao piano na frente de Cel. Fitzwilliam.
“Meus dedos”, disse Elizabeth, “não se movem sobre o instrumento da maneira magistral que vejo os de outras mulheres fazerem. 
Eles não têm a mesma força ou rapidez e não produzem a mesma impressão. 
Mas sempre supus ser culpa minha - porque não me dou ao trabalho de praticar. 
Não é que eu não acredite que meus dedos tão capazes quanto de qualquer outra mulher de talento superior.”

O instrumento é um facilitador ao casamento, um canal para relacionamentos e flerte. Darcy e Elizabeth estão envolvidos em uma conversa de flerte, enquanto ela está sentada no piano. 
Até esse ponto, Darcy e Elizabeth não tinham sido muito amigáveis um com o outro, mas uma vez que estão instalados próximo ao piano, o flerte segue. Dessa forma, vemos que o piano é uma conexão entre homens e mulheres.
Ele não é mais usado dessa maneira, mas sua natureza atrativa anterior não pode ser negligenciada por que isso desempenha um importante papel no texto.

Piano Favorites of Jane Austin
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Moira comenta...

Saber que o piano - pianoforte - era importantíssimo para a educação das moças nos faz ver Austen nas entrelinhas. Ela escrevia o que vivia, um espelho de sua sociedade em que projetava anseios, algo de bibliográfico, talvez projeções para o futuro e suas ideias sobre a situação feminina.
Como se sabe, Jane Austen nunca se casou, recusou propostas e até quebrou uma promessa de casamento. Se a princípio ela assinava suas obras como 'A lady' para evitar ser reconhecida com escritora por receio do que faria com sua imagem, depois passou a se resguardar de uma união que lhe traria novas responsabilidades como casa e filhos para continuar escrevendo. (alguns dizem que ela era avessa à fama, mas nem ela nem ninguém tem como saber que será um sucesso logo de cara, né? Depois de R&S e O&P ela FICOU famosa, mas mesmo antes se recusava a usar seu nome. Somente após sua morte, seu irmão favorito - o banqueiro - publicou Northanger com o nome dela.)
Mas, mesmo solteirona, Jane tocava bastante e bem. Assim que fez dinheiro com suas obras e parou de se mudar com a mãe viúva e a outra irmã solteirona, comprou um pianoforte. No final da vida, acordava cedo para tocar antes que a casa ficasse barulhenta. Logo, entendemos que era prendada, foi educada para ser uma dama completa na sociedade.
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E não é isso que ela faz com as Bennets? Lhes dava a chance de ser bem cotadas no mercado de casamento, mas cada uma decide seu caminho. As meninas más rechaçam ensinamentos, as boas aprendem conforme seu capricho dita. Pouco importa se vão conseguir bons casamentos, a despeito do desespero da mãe.
Continuando o interrogatório do cap 29, Lady Catherine pergunta...
 "Você desenha?"
"Não, não mesmo."
"O que, nenhuma das irmãs?"
"Nenhuma."
“Isso é muito estranho. Mas suponho que você não teve oportunidade. Sua mãe deveria levá-la à cidade toda primavera para o benefício dos tutores."
“Minha mãe não teria objeção, mas meu pai odeia Londres.”
"Sua preceptora deixou você?"
"Nós nunca tivemos nenhuma preceptora."
“Nenhuma preceptora! Como isso foi possível? Cinco filhas criadas em casa sem uma preceptora! Eu nunca ouvi falar de tal coisa. Sua mãe deve ter sido muito escrava da sua educação."
Elizabeth mal podia deixar de sorrir quando ela lhe assegurou que não tinha sido o caso.
“Então, quem te ensinou? Quem atendeu a você? Sem preceptora, você deve ter sido negligenciada."
“Comparado com algumas famílias, acredito que fomos; mas às que desejaram aprender, nunca faltaram os meios. Sempre fomos encorajadas a ler e tivemos todos os mestres que foram necessários. Aquelas que escolheram ficar ociosas certamente puderam."
“Sim, sem dúvida; mas isso é o que uma preceptora evita, e se eu tivesse conhecido sua mãe, eu a teria aconselhado a contratar uma. Eu sempre digo que nada deve ser conseguido na educação sem instrução constante e regular, e ninguém além de uma governanta pode dar..."

Então, quando o texto diz que Mary retratada ao piano em quase todas as suas cenas, era independente, entendi que se referia a essa passagem: independência para se dedicar ao que mais lhe agradava. Do talento da personagem se fala mal, o pai a ridiculariza no baile de Netherfield em público, as irmãs não suportam ouvi-la. 
Seria Austen nos dizendo ali que Mary era uma dama desejosa de casamento, mas mal cotada no mercado?
E quanto a Jane, a mais bela e recatada, o que se fala de seus talentos musicais? Quase nada...
Já Lizzy admite que toca mal porque não se dedica. Seria essa descrição da personagem tradução para isso?

Trocando em miúdos:
boa pianista > moça apta a bom casamento

Termino com Emma 
Capítulo 10, um comprido bate-papo com Harriet
"Eu me pergunto, senhorita Woodhouse (Emma), se você não deveria ser casada ou se casar! Tão encantadora como você é!”
Emma riu e respondeu: “Meu charme, Harriet, não é suficiente para me induzir a casar; preciso encontrar outras pessoas encantadoras - pelo menos uma pessoa. E não só apenas, não vou me casar no momento, mas tenho muito pouca intenção de casar.”
“Ah! mas não posso acreditar."
“Preciso reconhecer alguém muito superior a qualquer um que já tenha visto para ser tentada; o Sr. Elton, você sabe, (recordando-se) está fora de questão: e eu não desejo encontrar tal pessoa. Eu preferiria não ser tentada. Eu não posso realmente mudar para melhor. Se me casar, devo esperar que me arrependa."
"Minha nossa! - é tão estranho ouvir uma mulher falar assim!"
Não tenho nenhum dos habituais incentivos das mulheres para se casarem. Se eu me apaixonasse, de fato seria uma coisa diferente! Mas nunca me apaixonei; não é meu caminho nem minha natureza; e eu acho que nunca vou. E, sem amor, tenho certeza de que deveria ser uma tola para mudar uma situação como a minha. Fortuna eu não quero; emprego eu não quero; conseqüência eu não quero: eu acredito que poucas mulheres casadas tem tanto poder na casa do marido como tenho de Hartfield; e nunca, nunca poderia esperar ser tão amada e importante; então sempre primeiro e sempre certo nos olhos de qualquer homem, como eu estou no meu pai. ”
"Então, para ser uma solteirona afinal, como a srta. Bates!
“Essa é uma imagem tão formidável quanto você poderia me apresentar, Harriet; e se eu pensasse que eu deveria ser como a srta. Bates! Tão boba - tão satisfeita - tão sorridente - tão prosaica - tão indistinguível e desatenciosa - e tão apta a contar tudo quanto se relaciona a todos a meu respeito, eu me casaria amanhã. Mas entre nós, estou convencida de que nunca pode haver qualquer semelhança, a não ser quando se é solteira."
“Mas ainda assim, você será uma solteirona! E isso é tão terrível!"
"Não importa, Harriet, não serei uma pobre solteirona; e é só a pobreza que torna o celibato desprezível para público generoso! Uma mulher solteira, com uma renda muito estreita, deve ser uma solteirona ridícula e desagradável! (...) uma renda muito estreita tem uma tendência a contrair a mente e azedar o temperamento. (...)”

Nessa obra, Jane Austen usa o pianoforte como pista de grande segredo se desenrolando nos bastidores que passa desapercebido para quem ignora o valor e o simbolismo do instrumento nesta época. 
É um tipo de coisa que a autora não precisa explicar, 
pois para ela é valor intrínseco.

Se Emma não quer casar e Jane Fairfax é sobrinha de solteirona sem fortuna que precisa casar para se manter, é natural que a melhor pianista seja... Jane!
Veja:
Capítulo 8, na casa dos Cole, a Sra. Cole comenta
Sempre me magoou muito que Jane Fairfax, 
que toca tão deliciosamente, não tivesse um instrumento.

Capítulo 9,
A outra circunstância de arrependimento (de Emma em ter ido à casa dos Cole na noite anterior) também se relacionava com Jane Fairfax; e lá ela não tinha dúvidas. Ela sincera e inequivocamente lamentava a inferioridade de seu próprio tocar e cantar. Ela ficou muito entristecida pela ociosidade de sua infância - e sentou-se e praticou vigorosamente uma hora e meia.
Ela foi então interrompida pela chegada de Harriet; e se o elogio de Harriet pudesse satisfazê-la, ela poderia ter sido consolada.
“Oh! se eu pudesse tocar tão bem quanto você e a senhorita Fairfax!
“Não nos classifique juntas, Harriet. Meu talento não é maior que o dela, como uma lâmpada para o sol. ”
“Oh! querida, das duas, eu acho que você toca o melhor. Eu acho que você toca tão bem quanto ela. Tenho certeza de que preferia ouvir você. Todos ontem à noite comentaram o quão bem você tocou."

Amigas são para essas coisas, né, Harriet!... Se Emma toca melhor, como pode tocar tão bem quanto? Huh?
E perceba, Emma se arrepende de sua ociosidade em sua própria educação como as Bennets de O&P. Lizzy - que desdenha de  propostas de casamento - fala que poderia ensaiar mais. 


No próximo artigo vamos mergulhar no magnífico Broadwood de Emma, Anne Elliot presa ao piano em Persuasão e a educação das moças de Mansfield Park.

piano practice, 1924, GG Kilburne

Tradução e generosa parceria de Fran, da excelente página Adaptações de Jane Austen
Tradução das obras de Jane Austen são minhas, livres.

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