olá, preciso falar de Gentleman Jack!
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twitter bbc one |
A princípio fiquei curiosa pela série pela época retratada, 1832, bem na década que inicio o CUPIDOS EM DEVON. Sempre estou sedenta por fontes de pesquisa e uma produção BBC/HBO não seria errada. Claro, haveriam de haver licenças poéticas, eu imaginei isso, mas fui curiosa principalmente por nunca ter ouvido falar de Anne Lister.
Vivo fuçando arquivos e manuais e documentos históricos, mas essa mulher de vida tão interessante nunca tinha aparecido, nem em uma pista. Fiquei até magoada comigo mesma.
Daí tinha a característica da homossexualidade de Anne Lister e o fato de que ela não era a única na época. Esse detalhe eu já tinha visto, é da natureza humana experimentar e descobrir onde cada um se sente mais confortável. CUPIDOS EM DEVON fala disso e de outras possibilidades que a vidinha tão limitada das mulheres do século XIX permitia - ou não permitia.
Olha, aviso logo, vou falar demais e soltar muitos spoilers.
placa histórica localizada na propriedade da família Lister, Shibden Hall - Halifax
'Fundo cívico de Halifax - ANNE LISTER - 1791-1840 - diarista, mulher de negócios, proprietária de terras e lésbica que registrou bastante de sua vida pessoal em códigos secretos. Ela viveu em Shibden Hall de 1815 a 1840.
Então, a série foi uma grata surpresa!
Esta é a abertura da série, note o figurino de Anne que fantástico! Anáguas, saias e corset com camisa, colete, relógio de bolso, cravat, casaca e cartola! Ambígua! Híbrida!
Ela é (era) lésbica, sim.
Tem cenas que insinuam relações sexuais entre mulheres, sim.
Ela seduz outras mulheres, sim.
Mas tem algo que ninguém pensa:
A VIDA DE OUTRAS MULHERES
e isso é maravilhoso!
-A tia Anne, velha e doente, que vive através da vida aventuresca da sobrinha Anne;
-A irmã de Anne, Marian, solteirona e esperançosa, que faz força para casar e salvar sua vida;
-A criada Eugénie, saidinha e pateta, que se apaixona por qualquer homem que lhe aparece e é rejeitada;
-A criada Condingley, sabida e boa gente, que foi obrigada a virar cozinheira e parar de viajar com Anne por causa de uma doença;
-A vizinha Mrs. Priestley, fofoqueira e preconceituosa, que faz intriga por não entender ou aceitar a sexualidade alheia;
-Ann Walker, pobre menina rica, que é explorada por sua beleza e riqueza por parentes, homens, criados;
-A irmã de Ann, Elizabeth, mal-casada e infeliz, que foi enganada por um marido que na verdade queria seu dinheiro e não sua companhia;
-A falecida Mrs. Aimsworth, infeliz e impotente, que deveria saber o quão vil era seu marido;
-A meeira Mary, amedrontada e espancada, que vivia sob o reino de terror do marido violento;
-A filha do capataz, Susannah, letrada e curiosa, que casa com o meeiro que assassinou o pai violento sem saber desse segredo;
-A amiga Mariana, rica e esperta, que decidiu casar com um homem por medo de enfrentar as sanções sociais da sua sexualidade;
-A heroína, Anne Lister, mulher à frente de seu tempo, aventureira, inteligente, culta, que fura os limites que a sociedade impunha às mulheres como todas as outras não conseguiam. A duras penas, claro.
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twitter bbc one |
Esta montagem veio de um thread da BBC one no Twitter comparando as mulheres de Gentleman Jack com sobremesas... Interessante, não é? Com tantas alegorias possíveis, escolheram comestíveis, indulgências, pecados até.
Nos três primeiros episódios, fui ficando animada com cenários e figurinos, com as atuações bacanas, com os trejeitos de Anne. Ela é muito divertida e... Cavalheiresca. Na maneira de falar, de gesticular, de se portar na presença de damas que ela tem acesso por ser uma dama - se fosse um homem não poderia estar perto de moças com tanta facilidade. E por vezes está de mangas de camisa, sem a casaca, conversando e contando das viagens.
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hollywood reporter |
E quando eventualmente usa vestidos femininos é quase caricato, hilário!
Eu ficava pensando e comparando, imaginando se fosse outro caso, se poderia acontecer, se, se, se... Daí fui olhar os diários dela e descobri que a autora Sally Wainright (que mandou bem demaisssssss) tirou VÁRIOS DIÁLOGOS das palavras que Anne Lister deixou, das cartas, 20 e tantos diários e 17 livros de viagem!
Parei.
Deixei para pesquisar depois que terminasse a série para evitar achar defeitos ou discrepâncias. Fiz bem!
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hiccup broom |
Assim pude aproveitar as sutilezas, om ombros sempre caídos nos vestidos da depressiva Ann Walker em comparação com as roupas acinturadas de Anne Lister, as estampas animadas de Marian, as roupas ricas de Mariana e os tons aguados da irmã entristecida.
E então chegou o episódio 4.
Essa cena, esse ponto foi quando a serie me conquistou de vez. Veio de uma outra cena forte quando Anne Lister exige que Ann Walker se decida, se prefere ficar com ela ou casar com o viúvo da amiga recém falecida (já falei acima). Pressionada, a depressiva Ann envia uma cesta de frutas (coisa de gente rica) para Anne com uma carta onde pede que ela resgate um saquinho escondido no meio das frutas e sorteie 'sim' ou 'não' porque ela própria é incapaz de decidir sua vida. Anne fica desesperada, vai tomar satisfação, pergunta se Ann acha que os sentimentos dos outros são uma brincadeira. E aí, eu que achava a sequência muito legal, fiquei boquiaberta com isso. Assista.
Tradução livre (minha)
Anne Lister: Ann.
Ann Walker: *choro*
L: Ann, fale comigo, somos adultas. Nada pode ser tão ruim.
W: Eu nunca mais te verei.
L: O que? O que quer dizer?
W: Se eu te contar a verdade, você não vai mais querer nenhum contato comigo.
*choro*
L: Posso te surpreender. Hmm?
W: É ele.
L: Ele? Ele quem?
W: O reverendo Ainsworth. Eu fui… Indiscreta com ele.
Ele disse que estava apaixonado por mim e que queria casar comigo e que ela não viveria muito e eu não queria, mas eu não sabia como dizer 'não'. Por isso fiquei tão alterada quando ouvi que ela tinha morrido porque eu sabia que isso ia acontecer. Eu sabia que não se passariam 5 minutos até que ele me escrevesse. E Anne… Eu nunca o encorajei. Eu lhe disse que eu não queria, mas então ele passou a conseguir situações em que ficava a sós comigo, aqui ou quando eles visitavam ou lá na casa deles. Você entende? Você entende o problema? Ele teve… conhecimento da minha intimidade.
L: Intimidade, como?
W: *choro*
L: Beijos?
W: *balança a cabeça*
L: Ele fez… Tocou em você?
W: *balança a cabeça*
L: Vocês estiveram conectados?
W: *choro* Uma vez. *choro* Esse é o problema. Isso não me coloca em obrigação para com ele, com Mr. Ainsworth?
L: Espere aí. Ele se impôs a você. Você estava na casadele, visitando sua amiga, esposa dele. Estava sob a proteção dele. Na casa dele. E ele tirou vantagem de você.
W: Quando ela saiu da sala. Ainda assim, moralidade não…
L: Oh, meu Deus, não, é claro que não. Você não está sob obrigação alguma, ele era casado, pelo amor de Deus!
W: Você está gritando. Está irada.
L: Não estou gritando com você, não estou irada com você. Estou aliviada- aliviada que me contou, Ann. Ann, você não tem obrigação alguma com ele.
W: Mas, vê? Você vê agora a razão porquê eu não podia dizer 'sim' para você porque eu estou tão preocupada que- todo tipo- que você ficaria chateada e que me exporia e que eu nem era livre ou digna de dizer 'sim' para você e por isso eu não poderia te mostrar a carta. E é- a carta está aqui- e está muito claro pela linguagem que ele usa que ele já pensa que pertenço a ele. "Para a toda minha pequena Annie, do todo seu Thomas Ainsworth." E eu não consegui contar a ninguém porque ele disse que refletiria tão mal em mim quanto nele. *choro* Sei que me considera fraca. Estúpida. *choro* Seria mais fácil se eu tivesse alguém como você na minha vida. Isso nunca teria acontecido, porque eu teria alguém com quem conversar- para contar. Alguém que teria me ajudado.
L: Tudo que me contou é absolutamente verdade?
W: Sim.
L: Você sabe que eu a teria livrado desse problema, não sabe? Não importa se tivesse me dito 'sim' ou 'não'.
W: Teria?
L: Sujeitinho sujo e desprezível. De coleira.
W: Ele ainda virá tentar conseguir o emprego aqui, nessa reunião do conselho da igreja. A coisa toda, sem dúvida, é somente uma desculpa para chegar perto de mim.
L: Shhh. Você não tem nada a temer vindo dele. Me entende?
W: O que você vai fazer com ele?
L: Ainda não decidi.
Percebe as nuances da vida feminina?
As muitas camadas das amarras sociais?
A rica herdeira era abusada constantemente pelo marido da amiga doente que estava no cômodo ao lado. Será que ela sabia e permitia por ser mais velha que o marido (é dito que era 15 anos mais velha e brincava que quando morresse, seria de Ann a responsabilidade de cuidar do seu marido)? Será que era enganada? Será que esse fato era real ou foi inventado para a série? Não tive coragem de pesquisar...
Essa olhada para a câmera, cumplicidade com o expectador, é muito bacana. Geralmente é divertido, mas nesse foi assim de cortar o coração...
A partir desse ponto passei a prestar mais atenção às outras personagens femininas da série e me descolar da curiosidade pela 'vida lésbica naquela época'. Anne Lister mostrada é muito mais que sua sexualidade, que na época era considerado 'uma coisa que as pessoas faziam' e não 'o que elas eram'. Ela era dona da porra toda, cuidava da propriedade, fazia investimentos, decidia, comprava, vendia, contratava... Como fazemos hoje e como muitas de nós ainda não conseguem fazer. É muita bolinha!
Na vida real elas recebiam cartas anônimas mais cruéis que na serie, trolagens como anúncios de jornal em que procuravam maridos; na serie Anne é espancada e humilhada. Também sua irmã em uma cena muito comovente. Ann sofre de depressão e sucumbe à pressão social. Elizabeth se arrepende de ter-se feito refém do marido o aceitando em casamento.
A vida é dura em qualquer época, acredito.
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annelister co |
Acredito que Anne Lister não teve a intenção de nos deixar lições de moral, ela escrevia para fazer catarse. Diz-se que começou quando foi exilada em um quarto no sótão do colégio interno onde estudava quando pequena. Nesta época desenvolveu o código que usou até o fim quando morreu de repente aos 49 anos, talvez devido a uma mordida de inseto em uma viagem pela Rússia.
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annelister co |
Como Jane Austen, ela também escrevia cartas longas e por vezes cruzava as linhas para usar o papel ao máximo.
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catablogue |
Mas, mesmo sem querer, seus diários nos deixaram pistas incríveis da evolução feminina através dos tempos. Você não precisa ser lésbica para gostar da serie ou admirar os incríveis feitos dela. Na verdade, pode até correr as cenas mais risqué se quiser, pular totalmente. São poucas.
De qualquer forma, veja.
Vale a pena.
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look out point tv |
Eu vou esperar a 2ª temporada!
bj
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