Persuasão
Jane Austen
Créditos:
Por ocasião da Leitura Coletiva do Clubinho do Canal/Podcast Sincericídio Literário, resolvi postar na íntegra a tradução encontrada no Free-Ebooks.net e Biblioteca Digital.
Agradeço a gentileza de postar.
Direitos autorais são interamente ligados a estas fontes, eu não fiz alterações e/ou correções. Clique nos nomes para ter acesso a essas versões que, infelizmente, não incluem os famosos 'CAPÍTULOS DELETADOS' que foram traduzidos por mim em julho de 2025.
O uso de imagens capas de diversas edições é meramente decorativo.
PARTE 4
leia a parte 3 aqui
Capítulo Quatro (Dezesseis)
Havia uma questão de que Anne, ao regressar para junto da família, gostaria muito de se certificar, ainda mais do que se o Sr. Elliot estava apaixonado por Elizabeth, e essa era de que o pai não estava apaixonado pela Sra. Clay; e ela estava em casa há apenas algumas horas, quando se começou a sentir inquieta a esse respeito.
Quando desceu para o pequeno-almoço na manhã seguinte, soube que aquela senhora, fingindo decorosamente, manifestara a intenção de os deixar. Ela podia imaginar a Sra. Clay a dizer que agora que a Menina Anne chegou, imaginava que já não precisavam da sua companhia¯, pois Elizabeth respondia, numa espécie de murmúrio:
Isso não constitui motivo nenhum, garanto-lhe que, para mim, isso não é razão. Ela não significa nada para mim, comparada consigo.
E chegou a tempo de ouvir o pai dize:
Minha querida senhora, isso não pode ser. A senhora ainda não viu nada de Bath. Tem estado aqui apenas para nos ajudar. Não deve fugir de nós agora. Tem de ficar para conhecer a Sra. Wallis, a bela Sra. Wallis. Eu sei que, para o seu espírito delicado, a contemplação da beleza é um verdadeiro prazer. Falou num tom e com um ar tão sério que Anne não ficou surpreendida ao ver a Sra. Clay lançar-lhe um olhar furtivo, bem como a Elizabeth. O seu rosto talvez exprimisse alguma cautela, mas o elogio a um espírito delicado não pareceu despertar qualquer preocupação na irmã. A senhora não pôde resistir às súplicas dos dois e prometeu ficar.
No decorrer dessa mesma manhã, Anne e o pai encontraram-se, por acaso, a sós, e ele começou a elogiá-la pela sua aparência melhorada; achava-a menos magra de corpo e de cara; a pele, a cútis, estava muito melhor-mais clara, mais fresca. Andava a usar alguma coisa especial?
Não, nada.
Só Gowland- supôs ele.
Não, absolutamente nada.
Ah! - ele mostrou-se surpreendido e acrescentou: Certamente, o melhor que tens a fazer é continuar como estás; não podes aperfeiçoar o que já está bem; se não, eu recomendava-te o Gowland, a utilização constante de Gowland nos meses de Primavera. A Sra. Clay tem-no usado, recomendada por mim, e vê como lhe tem feito bem. Vê como lhe fez desaparecer as sardas.
Se Elizabeth tivesse ouvido isto! Este elogio pessoal talvez a tivesse perturbado, principalmente porque não parecia a Anne que as sardas tivessem diminuído absolutamente nada. Mas tudo tem a sua oportunidade. Os malefícios do casamento seriam muito menores se Elizabeth também se casasse. Quanto a si própria, ela teria sempre a casa de Lady Russell à sua disposição.
A mente calma e os modos educados de Lady Russell foram postos à prova nesta altura, nas suas relações com Camden Place. Ver a Sra. Clay em tão boas graças e Anne tão ignorada constituía para ela uma provocação permanente; e, quando estava longe, isso aborrecia-a tanto quanto uma pessoa que está em Bath e que toma as águas, recebe todas as publicações novas e tem um vasto círculo de conhecimentos, tem tempo para se aborrecer.
Quando conheceu o Sr. Elliot, tornou-se mais tolerante, ou mais indiferente, em relação aos outros. Os modos dele constituíram uma recomendação imediata e, ao conversar com ele, viu que o interior estava tão de acordo com a superfície que, a princípio, como contou a Anne, esteve quase prestes a exclamar:
Será este o Sr. Elliot?
Ela não conseguia imaginar um homem mais simpático ou digno de apreço. Ele reunia todas as qualidades: compreensão, opiniões corretas, conhecimento do mundo e um coração afetuoso. Possuía fortes sentimentos em relação a laços familiares e à honra da família, sem orgulho nem fraqueza; vivia com a prodigalidade de um homem de fortuna, sem ostentação; julgava por si próprio a respeito de tudo o que era essencial, sem desafiar a opinião pública em qualquer questão de decoro mundano. Era firme, observador, moderado, sincero; nunca, imaginando-se forte, se deixava dominar pelo entusiasmo ou pelo egoísmo; tinha, no entanto, uma sensibilidade delicada para tudo o que era agradável e delicado, e dava valor a todas as alegrias da vida doméstica, coisas que personalidades dadas a entusiasmos fictícios e agitações violentas raramente possuem.
Ela tinha a certeza de que ele não fora feliz no casamento.
O coronel Wallis dissera-o, e Lady Russell viu-o; mas não tinha sido um infortúnio que lhe tivesse azedado o espírito, nem (começou ela pouco depois a desconfiar) que o impedisse de pensar numa segunda escolha. A sua satisfação em relação ao Sr. Elliot excedia a aversão que sentia pela Sra. Clay. HÁ já alguns anos que Anne se apercebera de que ela e a sua excelente amiga podiam, por vezes, ter opiniões diferentes; e, assim, não ficou surpreendida por Lady Russell não ver, no enorme desejo de reconciliação do Sr. Elliot, nada de suspeito ou incoerente, nada que tivesse outros motivos para além dos que eram óbvios.
No ponto de vista de Lady Russell, era perfeitamente natural que o Sr. Elliot, numa fase mais amadurecida da sua vida, achasse desejável estar em boas relações com o chefe da sua família, fato esse que merecia toda a aprovação das pessoas sensatas; era o processo mais simples do mundo de uma mente naturalmente lúcida, que só errara no auge da juventude.
Anne, porém, limitou-se a esboçar um sorriso; e por fim, referiu-se a Elizabeth. Lady Russell ouviu, olhou e deu apenas uma resposta cautelosa:
Elizabeth! Muito bem. O tempo dirá. Era uma referência ao futuro, ao qual Anne, depois de pensar um pouco, sentiu que tinha de se submeter. De momento, não podia ter a certeza de nada. Naquela casa, Elizabeth estava em primeiro lugar; e ela estava tão habituada a atrair as atenções gerais como Menina Elliot¯ que quaisquer atenções para com outras pessoas pareciam quase impossíveis. Era preciso lembrar também que o Sr. Elliot só tinha enviuvado há sete meses. Uma ligeira demora da sua parte era perfeitamente desculpável.
Na realidade, Anne nunca conseguia ver o fumo à volta do chapéu dele sem recear que talvez fosse ela quem não merecia desculpa, ao atribuir-lhe tais fantasias; pois, embora o casamento dele não tivesse sido muito feliz, o mesmo durara tantos anos que ela não conseguia compreender um restabelecimento tão rápido do desgosto provocado pela sua dissolução. Qualquer que fosse o desfecho, o Sr. Elliot era, sem dúvida, a pessoa mais agradável que conheciam em Bath; ela não via ninguém que se lhe comparasse; e dava-lhe um enorme prazer conversar com ele de vez em quando sobre Lyme, que ele desejava, tanto como ela, voltar a ver e conhecer melhor.
Recordaram muitas vezes os pormenores do seu primeiro encontro. Ele deu-lhe a entender que a tinha olhado com muito interesse. Ela sabia-o bem; e ela recordava também o olhar de outra pessoa. As suas maneiras de pensar nem sempre coincidiam. Ela viu que ele atribuía mais valor do que ela à posição e relações sociais. Não foi apenas por tolerância, devia ser por gosto próprio que ele se associou empenhadamente ao interesse do pai e da irmã sobre um assunto que ela considerava indigno da atenção deles.
Uma manhã, o jornal de Bath anunciou a chegada da viúva viscondessa de Dalrymple e da filha, a Menina Carteret; e, durante muitos dias, toda a tranquilidade do apartamento de Camden Place desapareceu; pois os Dalrymple (infelizmente, na opinião de Anne) eram primos dos Elliot; e a preocupação era com o modo como lhes seriam condignamente apresentados.
Anne nunca tinha visto o pai e a irmã em contato com a nobreza e teve de reconhecer que se sentiu desiludida. Esperara mais da noção elevada que eles tinham da sua posição social, e viu-se reduzida a formular um desejo que nunca previra - um desejo de que eles tivessem mais orgulho; as palavras -as nossas primas Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯ e as nossas primas, as Dalrymple¯ soavam nos seus ouvidos durante todo o dia.
Sir Walter tinha-se encontrado uma vez na companhia do falecido visconde, mas nunca vira o resto da família, e as dificuldades da situação deviam-se ao fato de ter havido uma suspensão de cartas cerimoniosas, desde a morte do visconde, quando, em consequência de uma grave doença de Sir Walter ao mesmo tempo, se verificara uma infeliz omissão em Kellynch.
Não fora enviada para a Irlanda nenhuma carta de condolências. A negligência voltara-se contra o prevaricador, pois, quando a pobre Lady Elliot morreu, nenhuma carta foi recebida em Kellynch e, consequentemente, havia motivo suficiente para supor que as Dalrymple consideravam as relações cortadas. A questão agora era corrigir este preocupante contratempo e serem admitidos de novo como primos; essa era uma questão que, embora com uma atitude mais racional, nem Lady Russell nem o Sr. Elliot consideravam insignificante. - As relações familiares devem ser sempre preservadas, tal como se deve sempre procurar boas companhias - diziam eles.
Lady Dalrymple tinha alugado uma casa por três meses em Laura Place e iria viver em grande estilo. Estivera em Bath no ano anterior, e Lady Russell ouvira falar dela como sendo uma mulher encantadora. Seria muito desejável que reatassem relações, se tal pudesse ser feito sem qualquer perda de compostura por parte dos Elliot.
Sir Walter, porém, decidiu escolher os seus próprios meios e, por fim, escreveu uma bela carta dirigida à sua ilustre prima, cheia de explicações, lamentações e súplicas. Nem Lady Russell nem o Sr. Elliot aprovaram a carta; mas ela teve o efeito pretendido, que foi três linhas rabiscadas pela viscondessa. Ela sentia-se muito honrada e gostaria muito de os conhecer. Terminada a aflição, começava a doçura.
Eles visitaram Laura Place, receberam os cartões de visita da viscondessa de Dalrymple e da ilustre Menina Carteret, os quais foram colocados em locais bem visíveis, e falavam a toda a gente das primas de Laura Place¯ e das nossas primas, Lady Dalrymple e a Menina Carteret¯. Anne sentia-se envergonhada.
Se, ao menos, Lady Dalrymple e a filha fossem muito simpáticas, mesmo assim ela teria sentido vergonha da agitação que elas tinham provocado; mas elas não passavam de duas nulidades. Não possuíam qualquer superioridade de maneiras, talentos ou inteligência. Lady Dalrymple adquirira o epíteto de uma mulher encantadora¯ porque tinha um sorriso e uma resposta educada para toda a gente. A Menina Carteret, com ainda menos para dizer, era tão feia e tão desajeitada que, se não fosse quem era, nunca seria tolerada em Camden Place.
Lady Russell confessou que tinha esperado algo melhor; mas, mesmo assim, era um conhecimento valioso¯, e, quando Anne se atreveu a emitir a sua opinião sobre elas ao Sr. Elliot, ele concordou que elas, em si, eram nulidades, mas continuava a pensar que tinham o seu valor como ligação familiar, como boa companhia e ainda como pessoas que reuniam uma boa companhia à sua volta.
Anne sorriu e disse:
A minha idéia de boa companhia, Sr. Elliot, é a companhia de pessoas inteligentes, bem informadas, que têm muito sobre que conversar; é a isso que eu chamo boa companhia.
Está enganada - disse ele suavemente -, isso não é boa companhia, é ótima. Boa companhia exige apenas nascimento, educação e boas-maneiras, e nem sequer é muito exigente quanto à educação. Linhagem e boas-maneiras é o essencial; mas uma certa instrução não é, de modo algum, uma coisa perigosa em companhia; pelo contrário, até é uma vantagem. A minha prima Anne abana a cabeça. Ela não está satisfeita. É difícil de contentar. A minha cara prima - (sentando-se a seu lado) – tem mais direito de ser exigente do que qualquer mulher que eu conheço; mas será isso aconselhável? Será que isso a fará feliz? Não será mais sensato aceitar a companhia destas boas senhoras de Laura Place e usufruir o mais possível de todas as vantagens do parentesco? Pode ter a certeza de que elas frequentarão a melhor sociedade de Bath e, como nobreza é nobreza, o fato de se saber que são parentes delas será útil para colocar a sua família... a nossa família, devo dizer... naquele nível de consideração que todos desejamos.
Sim - suspirou Anne -, na realidade, vai saber-se que somos parentes delas! - Depois, dominando-se e não querendo que ele respondesse, acrescentou: - Eu realmente penso que houve demasiada preocupação em estabelecer relações. Suponho (sorrindo) - que tenho mais orgulho do que qualquer um de vós; mas confesso que me aborrece que nos tenhamos mostrado tão ansiosos em ver reconhecido o parentesco, o qual lhes é, sem dúvida, perfeitamente indiferente.
Perdoe-me, minha querida prima, mas está a ser injusta para com os vossos direitos. Em Londres, talvez, com o vosso atual estilo de vida tranquilo, talvez fosse como diz; mas em Bath, Sir Walter Elliot e a sua família serão sempre dignos de ser conhecidos, serão sempre aceites como conhecimentos importantes.
Bem - disse Anne -, certamente que me sinto orgulhosa, demasiado orgulhosa para apreciar um acolhimento que depende exclusivamente de posição social.
Adoro a sua indignação - disse ele -, ela é muito natural. Mas, já que estão aqui em Bath, o objetivo deverá ser instalarem-se com toda a honra e dignidade a que Sir Walter Elliot tem direito.
Diz que é orgulhosa; eu sei que me chamam orgulhoso, e não gostaria de ser de outro modo, pois o nosso orgulho, se analisarmos bem as coisas, tem o mesmo objetivo, não tenho qualquer dúvida, embora possam ser de um tipo um pouco diferente. Num ponto, tenho a certeza, minha querida prima - prosseguiu ele, num tom de voz mais baixo, embora não estivesse mais ninguém na sala -, num ponto, tenho a certeza de que estamos de acordo. Ambos sentimos que, se o seu pai aumentar o seu círculo de conhecimentos entre os seus iguais ou superiores, isso poderá servir para desviar os seus pensamentos dos que lhe são inferiores.
Enquanto falava, ele olhava para o lugar em que a Sra. Clay se sentara havia pouco tempo, uma indicação suficiente do que ele queria dizer; e, embora Anne não acreditasse que tivessem o mesmo tipo de orgulho, ficou satisfeita por ele não gostar da Sra. Clay; e a sua consciência admitiu que o desejo dele de aumentar o círculo social do seu pai era mais do que desculpável se visasse derrotá-la.
Capítulo Cinco (Dezessete)
Enquanto Sir Walter e Elizabeth tentavam assiduamente cair nas boas graças de Laura Place, Anne reatava um conhecimento de natureza muito diferente. Ela tinha visitado a sua antiga preceptora, e soubera por ela que se encontrava em Bath uma antiga colega que tinha dois fortes motivos para que a recordasse: a sua bondade passada e o seu sofrimento atual.
A Menina Hamilton, agora Sra. Smith, tinha sido bondosa para com ela num dos períodos da sua vida em que mais precisara. Anne fora para o colégio sentindo-se muito infeliz, chorando a morte da mãe muito amada, ressentindo-se do afastamento de casa e sofrendo como uma menina de 14 anos, sensível e pouco alegre, sofre em circunstâncias destas; e a Menina Hamilton, três anos mais velha do que ela, mas que, por não ter familiares próximos nem um lar definitivo, tinha ficado mais um ano no colégio, tinha sido útil e bondosa para ela, de um modo que minorara consideravelmente a sua infelicidade e, por esse motivo, ela nunca a poderia recordar com indiferença.
A Menina Hamilton deixara o colégio e casara pouco depois, ao que se dizia, com um homem de fortuna; e isto era tudo o que Anne soubera dela, até que, agora, a preceptora lhe revelou a sua situação de uma forma mais segura mas muito diferente. Ela estava viúva e pobre. O marido tinha sido extravagante; quando morrera, dois anos antes, ele tinha deixado os seus negócios terrivelmente emaranhados. Ela tivera de lutar contra todo o tipo de dificuldades e, para além destes desgostos, sofria de uma grave febre reumática que acabara por atacar-lhe as pernas e a deixara aleijada. Ela viera para Bath por causa disso e estava agora instalada numa casa alugada perto das termas quentes, a viver de um modo muito humilde, sem poder sequer ter o conforto de uma criada e, obviamente, quase excluída da sociedade.
A amiga comum garantiu que a Sra. Smith ficaria muito satisfeita com a visita da Menina Elliot e, assim, Anne não perdeu tempo em ir vê-la. Não disse nada em casa sobre o que ouvira nem o que tencionava fazer. Isso não suscitaria grande interesse. Limitou-se a consultar Lady Russell, e esta compreendeu-a perfeitamente e teve o maior prazer em levá-la tão perto da morada da Sra. Smith nos Westgate Buildings quanto Anne quis.
A visita foi feita, o conhecimento reatado e a amizade de uma pela outra mais do que reacendida. Os primeiros dez minutos tiveram o seu quê de embaraço e emoção. Tinham-se passado doze anos desde que se tinham separado, e cada uma delas era um tanto diferente do que
a outra imaginara. Doze anos tinham transformado Anne de uma menina sem formas, calada e a desabrochar, numa elegante mulher de 27 anos, de baixa estatura, com toda a beleza exceto o viço da juventude e com modos conscientemente corretos e invariavelmente meigos; e doze anos tinham transformado a bonita e crescida Menina Hamilton, com todo o fulgor da saúde e confiança na sua superioridade, numa viúva pobre, enferma e indefesa, recebendo a visita da sua antiga protegida como um favor; mas tudo o que era penoso no encontro depressa se desvaneceu, deixando apenas o interesse e o encanto de recordar amizades antigas e de falar sobre os velhos tempos.
Anne encontrou na Sra. Smith o bom senso e os modos agradáveis com os quais ela quase se atrevera a contar, e uma vontade de conversar e ser alegre para além da sua expectativa. Nem a dissipação do passado - e ela tinha tido uma vida muito mundana - nem as restrições do presente; nem a doença nem a dor pareciam ter-lhe endurecido o coração e feito perder a jovialidade.
Durante a segunda visita, ela falou com muita franqueza, e o espanto de Anne aumentou. Não conseguia imaginar uma situação mais triste do que a da Sra. Smith. Ela gostara muito do marido - e enterrara-o. Habituara-se à afluência - e esta terminara. Não tinha filhos que a voltassem a prender à vida e à felicidade, nem familiares que a auxiliassem a pôr em ordem os seus negócios confusos, não tinha saúde que tornasse tudo o resto suportável. Os seus aposentos estavam limitados a uma sala barulhenta e um quarto escuro atrás, e ela não conseguia mover-se de um aposento para o outro sem ajuda; havia só uma criada na casa para lhe dar essa ajuda, e ela só saía para ir para as termas. No entanto, apesar de tudo isso, Anne tinha motivo para acreditar que ela tinha apenas momentos de desânimo e depressão, e horas de ocupação e alegria. Como podia isso ser?
Ela prestou atenção - observou – refletiu - e decidiu finalmente que não se tratava simplesmente de um caso de coragem e resignação. Um espírito submisso talvez fosse paciente, uma inteligência sólida poderia encontrar soluções, mas ali havia qualquer coisa mais; havia aquela elasticidade de espírito, aquela disposição para se deixar confortar, o poder de transformar rapidamente o mal em bem, de encontrar ocupações que a distraíssem, que só podia provir da natureza. Era o mais precioso dom do Céu, e Anne via a sua amiga como um daqueles casos que, devido a um desígnio misericordioso, parece destinado a contrabalançar quase todas as outras deficiências.
"Houvera uma altura", disse-lhe a Sra. Smith, em que quase desanimara. Agora já não se podia considerar uma inválida, comparada com o seu estado quando chegara a Bath. Nessa altura, ela tinha sido realmente digna de dó, pois apanhara uma constipação durante a viagem e, mal se instalara nos seus aposentos, ficara de cama, sofrendo constantemente de dores violentas; e tudo isso no meio de desconhecidos – com necessidade absoluta de uma enfermeira permanente, e sem dinheiro, de momento, para quaisquer despesas imprevistas. Ela tinha resistido, porém, e podia dizer com toda a sinceridade que a provação lhe tinha feito bem. Saber que estava em boas mãos fizera-a sentir-se melhor. Tinha visto demasiado do mundo para esperar uma amizade súbita e desinteressada em qualquer lado, mas a doença provara-lhe que a sua senhoria tinha um bom caráter não a iria tratar mal; e ela tivera sorte, sobretudo, com a enfermeira, irmã da senhoria, enfermeira de profissão, que, quando desempregada, tinha sempre um lar naquela casa, e, por acaso, se encontrava, nessa altura, livre para tratar dela.
E ela- disse a Sra. Smith-, além de me tratar muito bem, tem sido um conhecimento precioso. Assim que consegui usar as mãos, ela ensinou-me a tricotar, o que tem constituído para mim uma grande distração; ensinou-me a fazer estas caixinhas, alfineteiras e estojos para cartões de visita que me vê sempre a fazer e que me proporcionam um meio de fazer um pouco de bem a uma ou duas famílias pobres desta região. Devido à sua profissão, claro, ela conhece muita gente que pode comprar, e ela vende as minhas coisas. Dirige-se sempre às pessoas na altura certa. Toda a gente é generosa, sabe, quando acabou de se libertar de dores violentas ou está a recuperar a bênção da saúde, e a enfermeira Rooke sabe perfeitamente quando deve falar. Ela é uma mulher perspicaz, inteligente e sensata. Gosta de observar a natureza humana e possui um fundo de bom senso e sentido crítico que a tornam infinitamente superior, como companhia, a milhares que, tendo recebido a melhor educação do mundo¯, não sabem nada que valha a pena escutar.
Pode chamar-lhe má língua, se quiser; mas quando a enfermeira Rooke tem meia hora livre para passar comigo, é certo que tem algo interessante e útil para contar, algo que nos faz conhecer melhor os outros seres humanos. Todos gostam de ouvir o que se passa, de estar atualizados quanto às últimas modas fúteis e tolas. Para mim, que vivo sozinha, garanto-te que a conversa dela é um verdadeiro prazer.
Anne, longe de querer pôr em causa esse prazer, respondeu:
Posso bem acreditar. As mulheres da classe dela têm ótimas oportunidades e, se forem inteligentes, vale a pena escutá-las. Elas estão habituadas a presenciar tantas variações da natureza humana! E não conhecem bem apenas as suas loucuras; pois, ocasionalmente, elas conseguem vê- la sob os seus aspectos mais interessantes e comoventes. Quantos casos de amor ardente, desinteressado, altruísta, de heroísmo, coragem, paciência, resignação não desfilarão perante elas... de todos os conflitos e todos os sacrifícios que mais nos enobrecem? Um quarto de um doente pode, muitas vezes, ensinar mais do que muitos livros.
Sim - disse a Sr.a Smith num tom de dúvida -, às vezes pode ser que assim seja, mas eu receio que as suas lições não tenham frequentemente o estilo eloquente que descreve. De vez em quando, a natureza humana pode ser grandiosa em alturas difíceis, mas, de um modo geral, num quarto de um doente, são as suas fraquezas e não as suas forças que emergem; é do egoísmo e da impaciência que se ouve falar, e não de generosidade e de coragem. HÁ tão pouca amizade no mundo!, e, infelizmente - concluiu ela numa voz baixa e trémula -, há tantos que se esquecem de pensar a sério até ser demasiado tarde.
Anne viu como ela se sentia infeliz. O marido não tinha sido o que devia, e a mulher fora levada para o meio daquele setor da humanidade que a tinha feito pensar pior do mundo do que esperava que este merecesse. Foi, porém, apenas uma emoção passageira da Sra. Smith; ela sacudiu-a e, pouco depois, acrescentou num tom diferente:
Eu não penso que o emprego que a minha amiga, a Sra. Rooke, tem neste momento me vá fornecer exemplos interessantes e edificantes. Ela está apenas a tratar da Sra. Wallis de Malborough Buildings; creio que esta não passa de uma mulher moderna, bonita, tola e cara, e claro que não vai ter nada para contar a não ser sobre rendas e roupas elegantes. Mas tenciono fazer lucro com a Sra. Wallis. Ela tem muito dinheiro, e eu tenciono fazê-la comprar as coisas caras que tenho entre mãos. Anne visitou várias vezes a sua amiga antes de a existência desta ser conhecida em Camden Place. Por fim, tornou-se necessário falar dela.
Sir Walter, Elizabeth e a Sra. Clay regressaram uma manhã de Laura Place com um convite repentino de Lady Dalrymple para esse serão, e Anne já se tinha comprometido a passá-lo em Westgate Buildings. Não lamentou ter uma desculpa. Ela tinha a certeza de que eles só tinham sido convidados porque Lady Dalrymple, retida em casa com uma constipação, ficara satisfeita por poder utilizar o parentesco que lhe tinha sido imposto, e ela recusou o convite com grande satisfação. Disse que se tinha comprometido a passar o serão com uma antiga colega do colégio. Eles não se interessavam muito pelo que tinha a ver com Anne, mas, mesmo assim, houve perguntas suficientes para ter de explicar quem era essa antiga colega; Elizabeth mostrou-se desdenhosa, e Sir Walter, severo.
Westgate Buildings - disse ele -, e quem é que a Menina Anne Elliot vai visitar em Westgate Buildings? Uma Sra. Smith viúva. E quem era o marido dela? Um dos cinco mil Srs. Smiths cujos nomes se encontram por todo o lado? E que atrativo tem ela? É velha e enferma. Palavra de honra, Menina Anne Elliot, que a menina tem um gosto extraordinário! Tudo o que enoja as outras pessoas, companhias de baixo nível, aposentos miseráveis, ar viciado e relações desagradáveis é convidativo para si. Mas certamente que essa velha senhora pode esperar até amanhã. Ela não se encontra tão perto do fim que pense não chegar até amanhã. Que idade tem ela? Quarenta anos?
Não, senhor, ela tem trinta e um anos; mas acho que não posso adiar o meu compromisso; porque é a única noite, nos dias mais próximos, que convém tanto a mim como a ela. Ela vai para as termas quentes amanhã e, durante o resto da semana, o senhor sabe que estamos ocupados.
Mas que pensa Lady Russell desse conhecimento? – perguntou Elizabeth.
Ela não vê nada de mal nele - respondeu Anne -, pelo contrário, aprova-o; e, geralmente, leva-me lá, quando vou visitar a Sr.a Smith.
Os habitantes de Westgate Buildings devem ter ficado muito surpreendidos ao verem uma carruagem parar junto do passeio! comentou Sir Walter. - A viúva de Sir Henry Russell, é verdade, não tem títulos que distingam o seu brasão; mas, mesmo assim, é uma bela equipagem, e, sem dúvida, bem digna de transportar a Menina Elliot. Uma Sra. Smith viúva, alojada em Westgate Buildings! Uma pobre viúva, que mal consegue sobreviver, entre trinta e quarenta anos... uma simples Sra. Smith, uma Sra. Smith vulgar, escolhida entre toda a gente e todos os nomes do mundo, para amiga da Menina Anne Elliot, e ser por ela preferida aos seus próprios familiares pertencentes à nobreza de Inglaterra e da Irlanda! Sra. Smith, que nome! A Sra. Clay, que estivera presente enquanto tudo isto se passava, achou agora aconselhável sair da sala, e Anne podia ter dito muita coisa e desejou dizer alguma coisa, em defesa dos direitos da sua amiga, não muito diferentes dos deles, mas o respeito que tinha pelo pai impediu-a de o fazer. Não deu resposta. Ela deixou que ele se recordasse, por si próprio, de que a Sra. Smith não era a única viúva em Bath, entre 30 e 40 anos, com pouco dinheiro e sem qualquer apelido nobre. Anne manteve o seu compromisso; os outros mantiveram os deles, e claro que, na manhã seguinte, ela ficou a saber que tinham passado um serão delicioso. Ela fora a única do grupo que estivera ausente; pois Sir Walter e Elizabeth tinham estado às ordens de Sua Senhoria e tinham ficado encarregados por ela de trazer outras pessoas, e eles tinham-se dado ao incômodo de convidar Lady Russell e o Sr. Elliot; o Sr. Elliot tinha feito questão de deixar o coronel Wallis cedo, e Lady Russell tinha alterado todos os seus compromissos dessa noite para fazer companhia a Lady Dalrymple.
Anne ouviu de Lady Russell toda a história do que se passara nesse serão. Para ela, o mais interessante foi a sua amiga e o Sr. Elliot terem falado muito dela, terem desejado que ela estivesse presente, lamentado que não estivesse e, ao mesmo tempo, elogiado o motivo da sua ausência. As suas bondosas visitas a uma antiga colega, doente e diminuída, pareciam ter encantado o Sr. Elliot. Ele achava que ela era uma jovem extraordinária; pelo seu temperamento, modos, inteligência, era um modelo de perfeição feminina. Ele conseguia até mesmo ultrapassar Lady Russell na afirmação dos seus méritos; e Anne não conseguia escutar o que a amiga lhe dizia, não lhe era possível saber-se tida em tão elevada consideração por um homem sensato, sem experimentar as agradáveis sensações que a sua amiga pretendia provocar.
Lady Russell estava já perfeitamente segura da sua opinião em relação ao Sr. Elliot. Ela estava tão convencida de que ele pretendia conquistar Anne como de a merecer; e começava a calcular o número de semanas que lhe faltavam para se libertar das últimas restrições da viuvez, quando ficaria livre para exercer os seus poderes de sedução. Ela não queria comunicar a Anne metade da certeza que tinha sobre o assunto e arriscava-se apenas a fazer algumas insinuações sobre o que aconteceria no futuro, sobre um possível afeto por parte dele, sobre como essa aliança seria desejável, se esse afeto fosse real e correspondido.
Anne escutou-a e não emitiu qualquer exclamação peremptória. Limitou-se a sorrir, a corar e a abanar ligeiramente a cabeça.
Eu não sou casamenteira, como bem sabes - disse Lady Russell -, pois conheço muito bem a incerteza de todos os acontecimentos e projetos humanos. Só quero dizer que, se daqui a algum tempo o Sr. Elliot te fizesse a corte e tu estivesses disposta a aceitá-lo, penso que haveria todas as possibilidades de serem felizes juntos. Uma união que todos considerariam extremamente apropriada... mas que eu penso que seria uma união muito feliz.
O Sr. Elliot é um homem extremamente simpático e, em muitos aspectos, tenho muita consideração por ele - disse Anne -, mas não estaríamos bem um para o outro. Lady Russell não comentou estas palavras, limitando-se a dizer:
Confesso que gostaria de poder considerar-te a futura senhora de Kellynch, a futura Lady Elliot... que me seria extremamente grato ver-te, no futuro, ocupar o lugar da tua querida mãe, sucedendo-lhe em todos os seus direitos, em toda a sua popularidade, bem como em todas as suas virtudes. Tu és tal e qual a tua mãe no aspecto e no temperamento e, se me é permitido imaginar- te como ela era, em posição, em nome, no lar, presidindo e abençoando o mesmo local, e só superior a ela pelo fato de seres mais estimada! Minha querida Anne, isso dar-me-ia mais alegria do que geralmente se sente na minha idade.
Anne viu-se obrigada a voltar-se, levantar-se e dirigir-se a uma mesa distante, e, inclinando- se para fingir que estava ocupada, tentou dominar as sensações que esta imagem provocava. Durante alguns momentos, a sua imaginação e o seu coração sentiram-se seduzidos. A idéia de se tornar o que a mãe fora; de voltar a Kellynch, de lhe chamar novamente o seu lar, o seu lar para sempre, possuía um encanto a que ela não conseguia, de imediato, resistir.
Lady Russell não disse mais nada, disposta a deixar que o assunto seguisse o seu curso normal; ela acreditava que, se o Sr. Elliot pudesse, nesse momento, pleitearia a sua causa... Em suma, ela acreditava no que Anne não acreditava. Essa mesma imagem do Sr. Elliot a defender a sua causa devolveu a compostura a Anne. O encanto de Kellynch e de Lady Elliot desvaneceu-se completamente. Ela nunca poderia aceitá-lo. E não era só porque os seus sentimentos se opunham a que ela se casasse com qualquer homem a não ser um; o seu raciocínio, após uma séria ponderação das possibilidades de tal acontecimento, também era contra o Sr. Elliot. Embora se conhecessem apenas há um mês, ela achava que já o conhecia bem. Que ele era um homem sensato, simpático, bem-falante, que emitia opiniões sólidas e parecia julgar com correção e como homem de princípios - isso era bastante óbvio. Ele, certamente, sabia o que estava certo, e ela não conseguia identificar um só princípio moral que ele transgredisse claramente; mas, mesmo assim, ela hesitaria em colocar as mãos no fogo pela sua conduta. Ela desconfiava do passado, se não do presente. Os nomes de antigos companheiros que eram ocasionalmente mencionados, as alusões a ocupações e hábitos passados sugeriam suspeitas que não abonavam a favor do que ele fora. Ela via que houvera maus hábitos; que viajar ao domingo tinha sido uma coisa habitual; que houvera um período na sua vida (e, provavelmente, não fora um período curto) em que ele fora, pelo menos, indiferente a todos os assuntos sérios; e, embora a sua maneira de pensar pudesse agora ser diferente, quem poderia garantir a veracidade dos verdadeiros sentimentos de um homem esperto e cauteloso que amadurecera o suficiente para apreciar um caráter leal?
Como se poderia ter a certeza de que a sua alma estava verdadeiramente purificada? O Sr. Elliot era racional, discreto, educado - mas não era franco. Nunca havia uma explosão de sentimentos, nenhuma indignação ou deleite acalorados perante o mal ou o bem dos outros. Para ela, isto era decididamente um defeito. As suas primeiras impressões eram imutáveis. Ela gostava, acima de tudo, de pessoas francas, sinceras e impulsivas. O ardor e o entusiasmo ainda a cativavam. Ela achava que podia confiar mais na sinceridade dos que por vezes diziam uma coisa imprudente e precipitada do que na daqueles que nunca perdiam a presença de espírito ou cuja língua nunca tinha um deslize. O Sr. Elliot era demasiado simpático em relação a todos. Eram várias as maneiras de ser em casa do pai dela, e ele agradava a todas elas. Ele suportava tudo com a maior complacência, dava-se demasiado bem com toda a gente. Ele falara-lhe da Sra. Clay com alguma franqueza; parecera que vira claramente o que a Sra. Clay pretendia, que a desprezava; no entanto, a Sra. Clay achava-o tão simpático como toda a gente. Lady Russell via menos ou mais do que a sua jovem amiga, pois não via nada que provocasse desconfiança. Ela não conseguia imaginar um homem mais ideal do que o Sr. Elliot; nem sensação alguma lhe era mais agradável do que a esperança de o ver receber a mão da sua querida Anne na igreja de Kellynch, no Outono seguinte.
Capítulo Seis (Dezoito)
Era o início de Fevereiro; e Anne, encontrando-se já há um mês em Bath, estava ansiosa por ter notícias de Uppercross e de Lyme. Ela queria saber muito mais do que Mary lhe comunicava. HÁ três semanas que não tinha notícias. A única coisa que sabia era que Henrietta estava de novo em casa; e que Louisa, embora considerada em rápida convalescença, ainda se encontrava em Lyme; e, um serão, ela estava a pensar muito neles quando uma carta de Mary, muito mais espessa do que de costume, lhe foi entregue, com os cumprimentos do almirante e da Sra. Croft, o que lhe causou grande surpresa e prazer. Os Croft deviam estar em Bath! Uma circunstância que lhe interessava. Eles eram pessoas de quem ela muito naturalmente gostava.
Que se passa? - exclamou Sir Walter.
Os Croft chegaram a Bath? Os Croft que alugaram Kellynch? Que foi que eles te trouxeram?
Uma carta do chalé de Uppercross.
Oh! Essas cartas são passaportes muito convenientes. Asseguram uma apresentação. De qualquer modo, eu iria visitar o almirante Croft. Eu conheço as minhas obrigações para com o meu inquilino. Anne não conseguiu prestar mais atenção; nem sequer poderia dizer se o rosto do pobre almirante escapara aos comentários do pai; a carta absorveu-a. Tinha sido começada alguns dias antes.
1 de Fevereiro
Minha querida Anne, Não te peço desculpa pelo meu silêncio porque sei como as pessoas se interessam pouco por cartas quando se encontram num Lugar como Bath. Deves sentir-te demasiado feliz para te importares com Uppercross, que, como tu bem sabes, tem muito pouco sobre o qual se possa escrever. Tivemos um Natal muito aborrecido; o Sr. e a Sra. Musgrove não deram um único jantar durante as férias. Eu não considero os Hayter como gente importante. As férias, porém, chegaram finalmente ao fim: acho que as crianças nunca tiveram umas férias tão compridas. Eu, certamente, não tive. Foram-se todos embora ontem, com exceção dos pequenos Harville; ficarás surpreendida quando souberes que eles ainda não foram para casa. A Sra. HarvilLe deve ser uma mãe estranha, para estar tanto tempo separada deles. Eu não compreendo. Na minha opinião, não são crianças nada simpáticas; mas a Sar. Musgrove parece gostar tanto
deles, se não mais, do que dos netos. Que tempo terrível temos tido! O mau tempo talvez não se faça sentir em Bath, com as vossas ruas bem pavimentadas; mas no campo traz conseqüências desagradáveis.
Não recebi uma única visita desde a segunda semana de Janeiro, a não ser a de Charles Hayter, que tem aparecido muito mais vezes do que é desejado. Aqui para nós, acho que foi pena Henrietta não ter ficado em Lyme tanto tempo como Louisa; isso tê-la-ia mantido um pouco afastada dele. A carruagem partiu hoje, para trazer Louisa e os Harville amanha. Musgrove receia que ela se sinta fatigada da viagem, o que não é muito provável, tendo em conta os cuidados que terão com ela; ser-me-ia muito mais conveniente jantar lá amanhã. Ainda bem que achas o Sr. Elliot tão simpático; também gostaria de o conhecer; mas eu tenho o meu azar habitual, encontro-me sempre longe quando qualquer coisa boa acontece; sou sempre a última da família a ser convidada.
Há que tempos que a Sra. Clay está junto de Elizabeth! Ela não tenciona ir-se embora? Mas, mesmo que o quarto ficasse livre, nós talvez não fôssemos convidados. Diz-me o que pensas disto. Não estou a contar que os meus filhos sejam convidados. Posso muito bem deixá-los na Casa Grande durante um mês ou seis semanas. Ouvi dizer agora mesmo que os Croft vão para Bath dentro de pouco tempo; eles acham que o almirante sofre um pouco de gota. Charles ouviu dizê-lo por acaso; eles não tiveram a delicadeza de nos comunicar nem de se oferecerem para levar qualquer coisa. Acho que, como vizinhos, eles não têm melhorado absolutamente nada. Nunca os vemos, e isto é realmente um caso de flagrante falta de atenção. Charles associa-se aos meus cumprimentos.
Tua afeiçoada Mary M.
Lamento comunicar-te que me encontro longe de estar bem; Jemina acabou de me informar que o carniceiro lhe disse que andam muitas anginas por aí. Claro que também as vou apanhar; e as minhas anginas, tu sabes, são piores do que as de qualquer outra pessoa. Assim terminava a primeira parte, que fora posteriormente colocada num sobrescrito contendo outra de tamanho quase idêntico.
Mantive a minha carta aberta para te poder dizer como Louisa suportou a viagem, e agora sinto-me extremamente satisfeita por o ter feito, pois tenho muito a acrescentar. Em primeiro Lugar, recebi ontem um bilhete da Sra. Croft, oferecendo-se para te levar qualquer coisa; um bilhete muito simpático e amável, dirigido a mim, como deve ser; poderei, assim, alongar a minha carta tanto quanto quiser. O almirante não parece muito doente, e espero sinceramente que Bath lhe seja tão benéfica quanto ele pretende. Ficarei muito satisfeita em os ver de volta. A nossa vizinhança não pode dispensar uma família tão agradável.
Mas agora a respeito de Louisa. Tenho algo a comunicar-te que certamente te vai causar admiração. Ela e os Harville chegaram na terça-feira, após uma boa viagem, e à noite fomos saber como ela estava, e ficámos surpreendidos por não vermos o comandante Benwick, pois ele também tinha sido convidado, juntamente com os Harville, e qual achas que foi o motivo? Nem mais nem menos do que o fato de ele estar apaixonado por Louisa e preferir não vir a Uppercross antes de ter uma resposta do Sr. Musgrove; pois ficou tudo assente entre os dois antes de ela se ir embora, e ele escrevera ao pai dela por intermédio do comandante Harville. É verdade, dou-te a minha palavra de honra. Não estás espantada? Eu, pelo menos, ficarei surpreendida se me disseres que alguma vez imaginaste uma coisa dessas, pois eu nunca o fiz.
A Sra. Musgrove afirma solenemente que não sabia nada do assunto. Estamos todos muito satisfeitos, porém; pois, embora não seja a mesma coisa que ela casar com o comandante Wentworth, é infinitamente melhor do que CharLes Hayter; e o Sr. Musgrove já respondeu a dar o seu consentimento, e o comandante Benwick é esperado hoje. A Sra. Harville diz que o marido sofre muito por causa da irmã, mas, no entanto, gostam ambos muito de Louisa. Na verdade, eu e a Sra. HarviLLe concordamos que gostamos mais dela por termos tomado conta dela.
Charles pergunta o que dirá o comandante Wentworth; mas, se bem te Lembras, eu nunca o achei afeiçoado a Louisa; nunca vi nada disso. E isto é o fim, como vês, da suposição de que o comandante Benwick era teu admirador. É incompreensível como CharLes pode ter imaginado uma coisa dessas. Espero que agora ele seja mais simpático.
Certamente não é um grande partido para Louisa Musgrove; mas é um milhão de vezes melhor do que casar com um dos Hayter. Mary não precisava de recear que a irmã estivesse de qualquer modo preparada para a notícia. Ela nunca ficara mais espantada na vida. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! Era demasiado espantoso para poder acreditar; e foi com grande esforço que ela conseguiu continuar na sala, mantendo um ar calmo, e responder às perguntas do momento. Felizmente para ela, não houve muitas.
Sir Walter queria saber se os Croft viajavam numa carruagem de quatro cavalos e se era provável que estivessem instalados numa parte de Bath em que pudessem ser visitados por ele e pela Menina Elliot. Para além disso, sentia pouca curiosidade.
Como está Mary? - disse Elizabeth; e, sem esperar por uma resposta, acrescentou: - E que trouxe os Croft a Bath? - Vieram por causa do almirante. Pensam que ele tem gota.
Com gota e decrépito? - disse Sir Walter. - Pobre velho.
Eles conhecem alguém aqui? - perguntou Elizabeth.
Não sei; mas não me parece que, com a idade do almirante Croft, e com a sua profissão, ele não conheça muita gente num local destes.
Desconfio - disse Sir Walter friamente - de que o almirante Croft é mais conhecido em Bath como inquilino do Solar de Kellynch. Elizabeth, achas que poderemos apresentá-lo e à mulher em Laura Place?
Oh!, não, penso que não. Relacionados, como nós estamos, com Lady Dalrymple, devemos ter muito cuidado em não a embaraçar com conhecimentos que ela possa não aprovar. Se não tivéssemos relações de parentesco, isso não seria importante; mas, como primos, ela teria escrúpulos em recusar qualquer proposta nossa. É melhor deixarmos que os Croft encontrem o seu próprio nível. Há vários homens de aspecto estranho por aí, que, segundo me dizem, são marinheiros. Os Croft relacionar-se-ão com eles.
Este foi o interesse que Sir Walter e Elizabeth manifestaram quanto à carta; depois de a Sra. Clay ter pago o seu tributo de um pouco mais de atenção, com uma pergunta sobre a Sra. Charles Musgrove e os seus belos rapazinhos, Anne ficou livre. Já no seu quarto, tentou compreender a situação. Charles bem podia interrogar-se sobre o que o comandante Wentworth sentiria! Talvez ele tivesse abandonado o campo, tivesse desistido de Louisa, tivesse deixado de a amar, tivesse descoberto que não a amava. Ela não conseguia suportar a idéia de traição ou leviandade, ou de algo semelhante a má vontade entre ele e o amigo. Não podia suportar a idéia de que uma amizade como a deles pudesse ser destruída injustamente. O comandante Benwick e Louisa Musgrove! A alegre e faladora Louisa Musgrove e o comandante Benwick, triste, pensativo, sensível e amante da leitura, pareciam, cada um deles, ser tudo o que não se adequava ao outro. As suas mentalidades eram tão diferentes! Onde teria estado a atração?
A resposta surgiu-lhe pouco depois. Fora a situação. Tinham estado juntos durante várias semanas; tinham vivido no mesmo grupo familiar; desde que Henrietta partira, eles passaram a contar quase exclusivamente um com o outro, e Louisa, convalescente, estava bastante atraente, e o comandante Benwick não era inconsolável. Esse era um ponto de que Anne não conseguira deixar de duvidar antes e, em vez de chegar à mesma conclusão que Mary a respeito do atual curso de acontecimentos, estes serviram apenas para confirmar a idéia de que ele tinha sentido algum assomo de ternura para com ela. Ela não tencionava, porém, lisonjear a sua vaidade mais do que Mary teria permitido.
Estava convencida de que qualquer mulher toleravelmente agradável que o tivesse escutado e parecesse sentir algo por ele teria recebido a mesma atenção. Ele tinha um coração afetuoso. Ele precisava de amar alguém. Ela não via qualquer motivo para que não fossem felizes: para começar, Louisa possuía um grande entusiasmo pela Marinha, e em breve ficariam muito parecidos. Ele tornar-se-ia mais alegre, e ela aprenderia a gostar de Scott e de Lorde Byron; não, isso provavelmente já tinha acontecido; claro que se tinham apaixonado através da poesia.
A idéia de Louisa Musgrove transformada numa pessoa de gostos literários e meditações sentimentais era divertida, mas ela não duvidava de que assim fosse. Era possível que o dia em Lyme, a queda do Cobb, tivesse afetado a sua saúde, os seus nervos, a sua coragem, a sua personalidade, até ao fim da sua vida, tanto como parecia ter afetado o seu destino. A conclusão final era que, se a mulher que tinha sido sensível aos méritos do comandante Wentworth podia preferir outro homem, não havia nada no noivado que pudesse provocar um espanto duradouro; e, se o comandante Wentworth não perdera um amigo, não havia nada a lamentar.
Não, não era o pesar que fazia o coração de Anne bater contra a sua vontade e lhe fazia corar o rosto quando pensava que o comandante Wentworth estava livre. Ela sentia vergonha de investigar alguns dos seus sentimentos. Estes pareciam-se demasiado com a alegria, uma alegria louca! Ela ansiava por ver os Croft, mas, quando o encontro se realizou, era evidente que eles ainda não tinham ouvido quaisquer rumores sobre o assunto. A visita de cerimônia foi feita e retribuída, e Louisa Musgrove foi referida, bem como o comandante Benwick, sem sequer um esboço de sorriso.
Os Croft tinham alugado uma casa em Gay Street, inteiramente do agrado de Sir Walter. Ele não se sentiu absolutamente nada envergonhado por os conhecer e, na realidade, falava muito mais do almirante do que o almirante pensava ou falava dele.
Os Croft conheciam tantas pessoas em Bath quanto desejavam, e consideravam as suas relações com os Elliot uma mera formalidade que não lhes iria provocar qualquer prazer. Tinham trazido do campo o hábito de andarem sempre juntos. Ele recebera ordens para andar a pé, a fim de evitar a gota, e a Sra. Croft parecia partilhar tudo com ele, fartando-se de andar, para que ele melhorasse. Anne via-os em todo o lado para onde ia. Lady Russell levava-a a passear na carruagem quase todas as manhãs, e ela pensava sempre neles e via-os sempre.
Conhecendo os sentimentos deles como ela conhecia, eles formavam, a seus olhos, um atraente quadro de felicidade. Ela ficava sempre a olhar para eles o mais demoradamente que conseguia; ficava encantada a imaginar que sabia do que eles conversavam enquanto caminhavam sozinhos e felizes; ou igualmente encantada ao ver o almirante apertar vigorosamente a mão quando encontrava um velho amigo, e observar a vivacidade da conversa quando encontrava ocasionalmente um pequeno grupo da Marinha. A Sra. Croft parecia tão inteligente e atenta como qualquer dos oficiais à sua volta.
Anne estava demasiado ocupada com Lady Russell para andar muito a pé; mas uma manhã, cerca de uma semana ou dez dias depois da chegada dos Croft, deixou a amiga, ou melhor, a carruagem da amiga, na parte inferior da cidade e voltou sozinha para Camden Place; ao subir Milsom Street, teve a boa sorte de encontrar o almirante. Ele estava sozinho, junto da montra de uma loja de estampas, com as mãos atrás das costas, a olhar atentamente para um quadro, e ela não só podia ter passado por ele sem que ele a visse mas viu-se inclusivamente obrigada a tocar- lhe e a dirigir-lhe a palavra para atrair a sua atenção. Quando, porém, ele finalmente reparou nela e a cumprimentou, isto foi feito com a sua franqueza e bom humor habituais.
Ah! É a menina? Obrigado, obrigado. Isto é tratar-me como amigo. Aqui estou eu, como vê, a olhar para um quadro. Nunca consigo passar por esta loja sem parar. Que coisa esta, a fingir que é um barco. Olhe bem. Já alguma vez viu algo parecido? Que pessoas estranhas os pintores devem ser, para pensar que alguém arriscaria a vida numa casca de noz daquelas. E, no entanto, aqui estão dois cavalheiros dentro dele, perfeitamente à vontade e a olhar em redor para os rochedos e montanhas, como se não fossem afundar-se no momento seguinte, que é sem dúvida o que vai acontecer. Gostaria de saber onde aquele barco foi construído. - Ele riu-se com vontade. - Agora, aonde vai? Posso acompanhá-la ou ir por si a algum lado? Posso ser-lhe útil nalguma coisa?
Não, obrigada, a não ser que me queira dar o prazer da sua companhia durante o pequeno percurso em que seguimos pela mesma rua. Eu vou para casa.
Irei sim, com todo o gosto, e até mais longe. Sim, sim, vamos dar um agradável passeio juntos; e tenho uma coisa para lhe contar enquanto formos andando. Tome o meu braço; assim mesmo; não me sinto bem se não tiver uma senhora apoiada em mim. Meu Deus! Que barco! - disse ele, lançando um último olhar ao quadro, antes de começarem a andar.
Disse que tinha algo para me contar, sir?
Tenho, sim. Daqui a pouco. Mas vem ali um amigo meu, o comandante Brigden; mas vou só dizer-lhe -Como está?- quando passarmos por ele. Não vou parar.
-Como está?- Brigden ficou de olhos arregalados por me ver acompanhado por alguém que não é a minha mulher. Ela, coitada, ficou presa por causa de uma perna. Tem uma bolha do tamanho de uma moeda de três xelins num dos calcanhares. Se olhar para o outro lado da rua, verá o almirante Brand, que vem aí com o irmão. Uns sujeitos miseráveis, os dois. Ainda bem que eles não vêm deste lado do caminho. Sophy não os suporta. Eles pregaram-me uma vez uma partida miserável... levaram-me alguns dos meus melhores homens. Eu hei-de contar-lhe a história noutra altura. Ali vem o velho Sir Archibald com o neto. Repare, ele viu-nos; fez o gesto de lhe beijar a mão; pensa que é a minha mulher. Ah! A paz chegou demasiado cedo para aquele aspirante. Pobre Sir Archibald!
-Gosta de Bath, Menina Elliot? Nós gostamos muito. Estamos sempre a encontrar amigos ; as ruas estão cheias deles todas as manhãs; temos sempre muito que conversar; depois afastamo-nos deles, fechamo-nos em casa, puxamos as cadeiras e sentimo-nos tão bem como em Kellynch, ou como nos sentíamos antigamente em North Yarmouth e Deal. Não gostamos menos da casa aqui, garanto-lhe, por ela nos lembrar a primeira que tivemos em North Yarmouth. O vento sopra através de um dos armários da mesma maneira.
Depois de andarem mais um pouco, Anne atreveu-se a insistir de novo no que ele tinha a comunicar-lhe. Ela tivera esperança de que a curiosidade seria satisfeita logo que saíssem de Milsom Street, mas o almirante tinha decidido não começar antes de chegarem à zona mais ampla e tranquila de Belmont e, como ela não era, de fato, a Sra. Croft, tinha de lhe fazer a vontade. Assim que começaram a subir Belmont, ele começou:
Bem, agora vai ouvir uma coisa que a vai surpreender. Mas primeiro diga-me o nome da jovem de que lhe vou falar. a jovem que conhece, com a qual nos temos preocupado tanto. A Menina Musgrove, a quem tudo isto aconteceu. O nome dela... esqueço-me sempre do nome dela.
Anne tivera vergonha de mostrar que compreendera tão depressa como realmente compreendeu; mas agora podia sugerir, com segurança, o nome Louisa.
Sim, sim, Menina Louisa Musgrove, é esse o nome. Quem me dera que as jovens não tivessem tantos nomes bonitos. Se fossem todas Sophy, ou algo semelhante, eu nunca me esqueceria. Bem, esta Menina Louisa, pensávamos nós, ia casar-se com Frederick. Ele cortejou-a durante semanas seguidas. A única coisa que perguntávamos a nós próprios era de que é que eles estavam à espera, até o acidente de Lyme acontecer; nessa altura, era óbvio que tinham de esperar até o cérebro dela se restabelecer. Mas, mesmo assim, passava-se qualquer coisa estranha. Em vez de ficar em Lyme, ele partiu para Plymouth, depois foi visitar Edward. Quando voltámos de Minehead, ele tinha ido para casa de Edward e lá está desde essa altura. Não o vemos desde Novembro. Nem mesmo Sophy consegue compreender. Mas, agora, o assunto deu uma reviravolta muito estranha; pois esta jovem, a mesma Menina Musgrove, em vez de se ir casar com Frederick, vai casar-se com James Benwick. A menina conhece James Benwick.
Sim, conheço o comandante Benwick, embora não muito bem.
Bem, ela vai casar-se com ele. Provavelmente, já se casaram, pois não sei de que hão-de estar à espera.
Eu achei o comandante Benwick um jovem muito simpático disse Anne -, e creio que possui um excelente caráter.
Oh, sim, sim, não há nada a dizer contra James Benwick. Ele é apenas comandante, é verdade, promovido no Verão passado, e esta é uma má altura para progredir, mas, que eu saiba, não tem nenhum outro defeito. Um sujeito excelente, de bom coração, garanto-lhe; um oficial muito ativo e zeloso, mais do que se poderia pensar, pois os seus modos suaves são muito enganadores.
Na realidade, engana-se, sir. Os modos do comandante Benwick nunca me levariam a pensar que lhe faltava energia. Eu achei-os particularmente amáveis, e posso garantir que, de um modo geral, eles agradarão a toda a gente.
Bem, bem, as senhoras são os melhores juízes, mas, para mim, James Benwick é um pouco demasiado tímido; e, embora muito provavelmente estejamos a ser parciais, não consigo deixar de pensar que Frederick tem modos mais agradáveis do que ele. Há algo em Frederick de que gostamos mais. Anne ficou atrapalhada. Ela tencionara apenas contrariar a idéia de que a energia e a gentileza eram incompatíveis e não retratar os modos do comandante Benwick como se fossem os melhores possíveis, e, após uma ligeira hesitação, começou a dizer: -Eu não estava a comparar os dois amigos- , mas o almirante interrompeu-a:
E isso é realmente verdade. Não é apenas um mexerico. Foi o próprio Frederick que nos contou. A irmã recebeu ontem uma carta dele em que nos fala do assunto; ele acabara de saber através de uma carta de Harville, escrita no mesmo local, em Uppercross. Imagino que estejam todos em Uppercross.
Esta foi uma oportunidade a que Anne não conseguiu resistir, pelo que disse:
Eu espero, senhor almirante, que não haja nada no estilo da carta que vos preocupe, a si e à Sra. Croft. No Outono passado, parecia, realmente, existir uma relação amorosa entre ele e Louisa Musgrove; mas faço votos para que a mesma tenha morrido para ambas as partes, e sem violência. Espero que essa carta não reflita o humor de um homem atraiçoado.
-Absolutamente nada, absolutamente nada; do princípio ao fim, não existe uma única praga ou lamento. Anne baixou a cabeça para esconder um sorriso.
Não, não; Frederick não é homem de queixas nem de lamúrias; é demasiado corajoso para isso. Se a menina gosta mais de outro homem, é justo que fique com ele.
Sem dúvida. Mas o que eu quero dizer é que espero que não haja nada no estilo da carta do comandante Wentworth que vos leve a supor que ele se considere traído pelo amigo, que se possa deduzir isso, compreende, sem ser afirmado explicitamente. Eu teria muita pena se uma amizade como a que existia entre ele e o comandante Benwick fosse destruída, ou, até mesmo, apenas prejudicada, por uma circunstância desta natureza.
Sim, sim, eu compreendo-a. Mas na carta não existe absolutamente nada dessa natureza. Ele não faz a mínima acusação a Benwick; nem sequer diz -Estou admirado, tenho motivo para estar admirado-. Não, pelo seu modo de escrever, não se imaginaria que ele alguma vez tivesse querido essa Menina... como é que ela se chama?... para si próprio. Ele fez, muito generosamente, votos para que sejam felizes, e creio que não existe o mínimo rancor nisso.
Anne não ficou plenamente convencida do que o almirante pretendia dizer, mas não valia a pena insistir mais. Limitou-se, assim, aos comentários normais ou a escutar em silêncio, e o almirante levou a sua avante.
Pobre Frederick! - disse ele, por fim. - Agora tem de começar tudo de novo com outra pessoa. Eu acho que temos de o trazer para Bath. Sophy tem de lhe escrever a pedir-lhe que venha. Aqui há bastantes meninas bonitas, tenho a certeza. Não valeria a pena voltar para Uppercross, pois aquela outra Menina Musgrove, segundo soube, está prometida ao primo, o jovem cura. Não acha, Menina Elliot, que é melhor tentar trazê-lo para Bath?
Capítulo Sete (Dezenove)
Enquanto o almirante Croft passeava com Anne e manifestava o seu desejo de trazer o comandante Wentworth para Bath, o comandante Wentworth já se encontrava a caminho. Chegou antes de a Sra. Croft ter escrito; na vez seguinte em que Anne saiu, ela viu-o. O Sr. Elliot acompanhava as suas duas primas e a Sra. Clay. Estavam na Milsom Street.
Começou a chover, não muito, mas o suficiente para que as senhoras desejassem abrigar-se e o bastante para que a Menina Elliot desejasse ser levada a casa na carruagem de Lady Dalrymple, que se via a uma curta distância; assim, ela, Anne e a Sra. Clay viraram para a Molland, enquanto o Sr. Elliot entrou na casa de Lady Dalrymple, para pedir auxílio. Ele reuniu-se-lhes pouco depois, com êxito, claro; Lady Dalrymple teria muito gosto em levá-los a casa, e chamá-los-ia dentro de alguns minutos.
A carruagem de Sua Senhoria era uma caleche e não levava mais de quatro pessoas confortavelmente. A Menina Carteret estava com a mãe; como consequência, não era razoável esperar acomodação para as três senhoras de Camden Place. Não havia qualquer dúvida quanto à Menina Elliot. Fosse quem fosse que devesse sofrer desconforto, ela não deveria sofrer nenhum, mas a questão de cortesia entre as outras duas levou algum tempo a decidir.
Chovia muito pouco, e Anne era sincera ao dizer que preferia ir a pé com o Sr. Elliot. Mas a chuva também era pouca para a Sra. Clay; ela nem a sentiria, e as suas botas eram tão grossas, muito mais grossas que as de Anne - e, em suma, a sua amabilidade tornava-a tão ansiosa por ir a pé com o Sr. Elliot como Anne, e a questão foi discutida entre elas com uma generosidade tão delicada e tão firme que os outros se viram obrigados a decidir por elas. A Menina Elliot insistiu que a Sra. Clay já estava um pouco constipada, e o Sr. Elliot decidiu, quando lhe foi perguntada a opinião, que as botas da sua prima Anne eram as mais resistentes. Foi, assim, decidido que a Sra. Clay faria parte do grupo que iria na carruagem; e tinham chegado a este ponto quando Anne, que estava sentada junto da janela, viu, decidida e distintamente, o comandante Wentworth descer a rua.
O seu sobressalto foi perceptível apenas para si própria; mas sentiu de imediato que era a maior, a mais irresponsável e mais absurda tola do mundo! Durante alguns minutos, não viu nada à sua frente. Estava tudo confuso. Sentia-se perdida; e, quando conseguiu dominar-se, viu que os outros ainda estavam à espera da carruagem e que o Sr. Elliot (sempre atencioso) tinha partido para a Union Street para fazer um recado à Sra. Clay. Sentiu um grande desejo de ir até à porta da rua; queria ver se estava a chover. Por que desconfiava de ter outro motivo? O comandante Wentworth já devia ter passado.
Levantou-se, decidida a ir; metade dela não iria ser sempre mais sensata que a outra, nem iria sempre desconfiar que a outra era pior do que realmente era. Iria ver se chovia.
Voltou para trás, porém, no momento seguinte, quando o próprio comandante Wentworth entrou, no meio de um grupo de senhoras e cavalheiros, evidentemente seus conhecidos, a quem ele se devia ter juntado um pouco abaixo da Milsom Street. Ao vê-la, ele ficou mais obviamente enleado e confuso do que ela alguma vez reparara; ficou muito corado. Pela primeira vez desde que se tinham voltado a encontrar, ela sentiu que era ela quem evidenciava menos emoção. Tivera a vantagem de ter tido alguns momentos para se preparar. Todos os poderosos, ofuscantes e desconcertantes efeitos da enorme surpresa já se tinham desvanecido. Mesmo assim, porém, sentiu-se dominada pela emoção! Era um misto de agitação, dor, prazer, algo entre a alegria e a tristeza.
Ele falou-lhe, depois afastou-se. Os seus modos denotavam embaraço. Ela não podia chamar- lhe frieza ou afeto, nem qualquer outra coisa a não ser embaraço. Depois de um pequeno intervalo, porém, ele dirigiu-se a ela e voltou a falar-lhe. Trocaram perguntas sobre assuntos habituais; nenhum deles, provavelmente, prestou muita atenção ao que ouviu, e Anne continuou a ter a sensação de que ele se sentia muito menos à vontade do que anteriormente. Devido ao fato de estarem juntos tantas vezes, eles tinham aprendido a falar um com o outro com indiferença e calma aparentes; mas agora ele não conseguia fazê-lo. O tempo tinha-o modificado, ou Louisa tinha-o modificado. Parecia ter consciência de que algo se passava.
Ele estava com muito bom aspecto, não parecendo sofrer de qualquer mal físico ou moral; falou de Uppercross e até mesmo de Louisa, e teve mesmo um ar momentâneo de malícia ao falar dela; mas o comandante Wentworth estava embaraçado, pouco à vontade e incapaz de fingir o contrário.
Anne não ficou surpreendida, mas sentiu-se magoada ao ver que Elizabeth o ignorava. Ela reparou que ele vira Elizabeth e que Elizabeth o vira a ele e que, no íntimo, ambos se tinham reconhecido. Estava convencida de que ele desejava e esperava ser reconhecido como um conhecimento antigo, e sentiu-se magoada ao ver a irmã voltar-lhe as costas com frieza.
A carruagem de Lady Dalrymple, cuja demora impacientava Elizabeth, aproximou-se; o criado veio anunciá-la. Estava a começar a chover de novo, e houve uma demora, um alvoroço e uma troca de palavras para que todos os que estavam na loja soubessem que Lady Dalrymple vinha buscar a Menina Elliot. Por fim, a Menina Elliot e a sua amiga, acompanhada apenas pelos criados (pois o primo ainda não voltara), afastaram-se; o comandante Wentworth ficou a observá- las, depois virou-se outra vez para Anne e, pela sua atitude, mais do que por palavras, ofereceu- lhe os seus préstimos.
Muito obrigada - foi a resposta dela -, mas eu não vou com elas. A carruagem não pode levar tanta gente. Vou a pé. Prefiro andar.
Mas está a chover.
Oh! Muito pouco. Nada que me incomode. Após uma breve pausa, ele disse: - Embora só tenha chegado ontem, já me equipei devidamente para Bath, como vê - (apontando para um guarda-chuva novo). Gostaria que fizesse uso dele, se está decidida a ir a pé, embora eu pense que seria mais prudente deixar-me arranjar-lhe uma carruagem.
Ela agradeceu-lhe muito, mas recusou tudo, reafirmando a sua convicção de que a chuva passaria dentro em pouco, e acrescentou:
Só estou à espera do Sr. Elliot. Estou certa de que ele deverá estar a chegar. Mal acabara de dizer estas palavras quando o Sr. Elliot entrou. O comandante Wentworth lembrava-se perfeitamente dele. Não havia qualquer diferença entre ele e o homem que parara no cimo dos degraus em Lyme, admirando Anne quando ela passou por ele, exceto no ar e nos modos de parente e amigo privilegiado.
Ele entrou com um ar ansioso, parecendo não ver e não pensar em nada a não ser nela, pediu desculpa pela demora, lamentou tê-la feito esperar sozinha e mostrou-se impaciente por acompanhá-la, antes que a chuva aumentasse; e, no minuto seguinte, saíram juntos, de braço dado, e, ao afastar-se, ela apenas teve tempo de lançar um olhar meigo e embaraçado e de dizer:
Um muito bom dia!
Assim que eles se afastaram, as senhoras do grupo do comandante Wentworth começaram a falar deles.
O Sr. Elliot não desgosta da prima, segundo me parece.
Oh!, não, isso é bastante óbvio. É possível adivinhar o que vai acontecer ali. Ele está sempre ao pé deles; vive praticamente com a família, creio. Que homem tão atraente!
Sim, e a Menina Atkinson, que jantou com ele uma vez em casa dos Wallisse, diz que ele é o homem mais simpático que ela já conheceu.
Penso que Anne Elliot é bonita; muito bonita mesmo, quando se olha bem para ela. Bem sei que essa não é a opinião geral, mas confesso que a admiro mais do que à irmã.
Oh! Eu também.
E eu também. Não há qualquer comparação. Mas os homens são todos loucos pela Menina Elliot. Anne é demasiado delicada para eles.
Anne ter-se-ia sentido particularmente grata ao primo se este a tivesse acompanhado até Camden Place sem dizer uma palavra. Ela nunca sentira tanta dificuldade em escutá-lo, embora a sua solicitude e atenção fossem inexcedíveis, e embora os assuntos fossem os que lhe eram mais interessantes elogios calorosos e justos a Lady Russell e insinuações muito bem observadas em relação à Sra. Clay. Mas agora ela só conseguia pensar no comandante Wentworth. Não conseguia compreender os seus sentimentos atuais, se ele estava a sofrer muito com a desilusão ou não; e, até chegar a uma conclusão, não conseguiria ter sossego. Esperava, com o tempo, recuperar o bom senso e o juízo; mas, infelizmente, tinha de confessar a si própria que ainda não possuía qualquer bom senso.
Outra questão muito importante para ela era saber quanto tempo ele tencionava ficar em Bath; ele não o mencionara, ou ela não se conseguia recordar. Ele podia estar apenas de passagem. Mas era mais provável que tivesse vindo para ficar. Nesse caso, uma vez que toda a gente em Bath se encontrava, Lady Russell, com toda a probabilidade, vê-lo-ia algures. Ela lembrar-se-ia dele? Como se passariam as coisas? Ela já se vira na obrigação de dizer a Lady Russell que Louisa Musgrove iria casar com o comandante Benwick. Fora-lhe penoso ver a surpresa de Lady Russell; e agora, se por acaso ela se encontrasse na companhia do comandante Wentworth, o seu conhecimento imperfeito do assunto poderia funcionar como mais um preconceito contra ele.
Na manhã seguinte, Anne saiu com a amiga e, durante a primeira hora, tentou incessantemente, de um modo receoso, ver se o via, mas em vão; finalmente, ao voltarem na Pulteney Street, ela avistou-o no passeio do lado direito, a uma distância que lhe permitia ver a maior parte da rua. Havia muitos outros homens à volta dele, muitos grupos que caminhavam na mesma direção, mas não havia dúvida de que era ele. Ela olhou instintivamente para Lady Russell; mas não devido à idéia louca de que esta o fosse reconhecer tão depressa quanto ela. Não, não era de supor que Lady Russell o visse até estarem quase em frente dele. De vez em quando, porém, ela fitava-a com ansiedade; e, quando se aproximou o momento em que devia referir-se a ele, embora sem se atrever a voltar a olhar (pois o seu rosto estava demasiado perturbado), teve plena consciência de que os olhos de Lady Russell se voltaram exatamente na direção dele, de que ela estava a observá-lo atentamente. Ela compreendia perfeitamente o tipo de atração que ele devia constituir para Lady Russell, a dificuldade que ela teria em desviar a vista, o espanto que devia sentir por terem passado por ele oito ou nove anos em climas distantes e no serviço ativo, sem que ele tivesse perdido a elegância. Por fim, Lady Russell inclinou a cabeça para trás. Agora, que iria ela dizer dele?
Deves estar a perguntar a ti própria - disse ela – para que estive tanto tempo a olhar; mas estava à procura de umas cortinas de que Lady Alicia e a Sra. Frankland me falaram ontem à noite. Elas descreveram as cortinas da janela de uma das casas deste lado, desta zona da rua, como sendo as mais bonitas de Bath, mas não conseguiam recordar-se do número exato, e eu tenho estado a tentar descobrir qual delas seria; mas confesso que não consigo ver quaisquer cortinas que correspondam à descrição feita por elas.
Anne suspirou, corou e sorriu de pena e desdém, tanto por si própria como pela amiga. O que mais a aborrecia era que, com toda aquela preocupação e cautela, perdera o momento exato de reparar se ele as vira.
Passaram um dia ou dois, sem que nada acontecesse. O teatro e os salões que ele provavelmente frequentava não eram suficientemente distintos para os Elliot, cujas distrações se limitavam à elegante estupidez de festas privadas, com as quais se encontravam cada vez mais ocupados; e Anne, cansada de uma tal estagnação, aborrecida por não saber de nada e imaginando-se forte porque a sua força não fora posta à prova, aguardava com impaciência a noite do concerto. Era um concerto a favor de uma pessoa protegida de Lady Dalrymple. Claro que eles tinham de ir. Esperava-se que fosse um bom concerto, e o comandante Wentworth gostava muito de música. E imaginava que ficaria satisfeita se conseguisse conversar durante alguns minutos com ele; sentia-se com coragem para lhe dirigir a palavra, se a oportunidade surgisse.
Elizabeth tinha-lhe voltado às costas, Lady Russell não o vira; sentiu os nervos mais fortes devido a estas circunstâncias; ela achava que lhe devia atenção. Tinha prometido à Sra. Smith passar o serão com ela; mas, numa rápida e curta visita, desculpara-se e adiara o serão, com uma promessa mais firme de uma visita mais demorada no dia seguinte. A Sra. Smith concordou, bem- humorada.
Com certeza - disse ela -, mas, quando vier, vai contar-me tudo. Quem faz parte do seu grupo? Anne nomeou-os a todos. A Sra. Smith não respondeu; mas, quando ela ia a sair, disse com uma expressão meio a sério, meio a brincar:
Bem, desejo de todo o coração que o concerto corresponda aos seus desejos; e, se puder vir amanhã, não falte, pois começo a ter o pressentimento de que não vou receber muito mais visitas suas.
Anne ficou surpreendida e atrapalhada, mas, depois de permanecer um momento na expectativa, viu-se obrigada, se bem que isso a contrariasse, a afastar-se rapidamente.
Leia a PARTE 5 (final) aqui.
Leia aqui meus inúmeros estudos & pesquisas sobre Persuasão, Jane Austen e suas obras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário