olá,
Por conta do coronavairus vivemos dias de isolamento social, nome bonitinho para o famoso "vamos marcar de sair!..."
Claro, isso botou todo mundo na berlinda,
e não tem vírus nem praga que resista à zoeira!...
Há um livro específico sobre isso, The year of Lear (O ano de -rei- Lear). Na BBC rádio, o resumão serve para o que vou falar, olha: 'Um surto de peste ameaçou o meio de vida de William Shakespeare quando os teatros foram fechados. Forçado a mudar estilo de vida, ele começou um ano extraordinário. Desde o outono de 1605, quando ele pegou uma peça elizabetana antiga e anônima, A histórica crônica do Rei Leir, e a transformou em sua tragédia mais arrepiante, o REI LEAR. 1606 provou ser um ano especialmente sombrio para a Inglaterra, testemunhando as conseqüências sangrentas da trama da pólvora*, divisões sobre a União da Inglaterra e Escócia e um surto de peste. Mas acabou sendo excepcional para Shakespeare que, antes do final do ano, completou duas outras grandes tragédias jacobianas que dialogaram diretamente com esses tempos difíceis: MACBETH e ANTÔNIO E CLEOPATRA.
Eu que tenho três projetos em andamento, vou tentar dar conta dessas enterprises no período de isolamento social que começamos hoje aqui no Rio. É um tipo de quarentena: 15 dias de escolas, faculdades, cinemas, feiras. Mas a comparação com Shakespeare é cruel mesmo... Nem vou lá!
WILLIAM SHAKESPEARE, o bardo
(também O Bardo de Avon. É chamado assim por ser considerado o maior poeta que já viveu. Bardo= poeta, trovador) nasceu e foi criado em Stratford-upon-Avon, Warwickshire, Inglaterra - é uma cidade pequena a 1,5h de Londres. Aos 18 anos, ele casou-se com Anne Hathaway (não a atriz de Becoming Jane - Amor e inocência...), com quem teve três filhos. Em algum momento entre 1585 e 1592, ele iniciou uma carreira de sucesso em Londres como ator, escritor e sócio de uma companhia de teatro chamada Men's Chamberlain's Men, mais tarde conhecida como King's Men. Aos 49 anos (por volta de 1613), ele parece ter se aposentado em Stratford, onde morreu três anos depois. Shakespeare produziu a maioria de seus trabalhos conhecidos entre 1589 e 1613. Suas primeiras peças foram principalmente comédias e histórias e são consideradas como algumas das melhores obras produzidas nesses gêneros. Até cerca de 1608, ele escreveu principalmente tragédias, entre elas Hamlet, Othello, King Lear e Macbeth, todas consideradas entre as melhores obras da língua inglesa. Na última fase de sua vida, ele escreveu tragicomédias (também conhecidas como romances) e colaborou com outros dramaturgos. Aqui você acha a cronologia das obras, desde A megera domada (meu favorito) a Dois primos nobres.
Muitas das peças de Shakespeare foram publicadas em edições de qualidade e precisão variadas em sua vida. No entanto, em 1623, dois colegas atores e amigos de Shakespeare, publicaram um texto mais definitivo, conhecido como First Folio (primeira folha), uma edição póstuma dos trabalhos dramáticos de Shakespeare que incluía apenas duas de suas peças. (wiki)
Em sua época, a Inglaterra (e o mundo) vivia sob a ameaça da praga, ou a peste bubônica. Shakespeare teve muita sorte em conseguir evitar a doença - hoje se especula que ele desenvolveu imunidade de alguma forma. Quando criança, ele estava sempre na sala da lareira e como as pulgas vindas dos ratos (fonte de contaminação desconhecida na época) não se aproximavam do calor do fogo, ele sobreviveu. É por isso que se diz que o grande incêndio de Londres (de 2 a 6 de setembro de 1666) removeu a peste negra porque queimou os ratos e a peste.
Ninguém sabe ao certo quantos familiares, amigos, colegas atores e conhecidos de Shakespeare morreram da Peste Negra, mas dado o número de parentes próximos que morreram, deve ter sido um número significativo.
Mas, o que era essa doença?
a PRAGA
Ainda há um debate sobre o que essas 'pragas' ou 'pestes' realmente foram. A maioria dos especialistas acredita que a praga que atingiu Londres entre 1300 e o final de 1600 foi a peste bubônica. O termo "Peste Negra" foi usado pela primeira vez em 1800, na era medieval era usado o termo 'Grande Pestilência'.Sintomas eram:
-dores de cabeça,
-febre, vômitos,
-inchaços dolorosos no pescoço, axilas e virilha (bolhas), tosse com sangue.
Muitas pessoas acreditavam que a praga se espalhava pelo ar, então fumavam tabaco para impedir a entrada de ar ruim nos pulmões ou fumigar a casa com ervas para purificar o ar. Isso talvez até ajudasse porque afastavam ratos. Outras possíveis curas eram:
-esfregar cebolas, ervas ou uma cobra ou um pombo cortado no infectado,
-beber vinagre, comer minerais amassados, arsênico, mercúrio ou até melaço velho de dez anos antes,
-sentar perto de uma fogueira para expulsar a febre.
Médico da praga O bico da máscara tinha a função de purificar o ar pic de literary genius |
Funerais só podiam ocorrer à noite, casas infectadas tinham que pendurar feno em postes, nas portas eram afixados crucifixos molhados em óleo, etc.
O médico francês Alexandre Yersin descobriu a bactéria que causa a peste bubônica só em 1894. Em 1908, os especialistas perceberam que as pulgas de ratos espalharam peste.
Em 1347, chegou à Inglaterra uma notícia horripilante de doença incurável que se espalhava da Ásia pelo norte da África e Europa. Quando a morte atingiu Londres no outono de 1348, ninguém sabia como parar a doença. Durante os próximos 18 meses, ela matou metade dos Londrinos - talvez 40.000 pessoas.
Havia tantos mortos que eram cavadas valas comuns e nessas trincheiras os corpos eram empilhados um em cima do outro - até cinco por profundidade - com crianças sendo colocadas nos pequenos espaços entre adultos. Em 1350, a Peste Negra havia matado milhões de pessoas, possivelmente metade da população do mundo conhecido.
A Peste Negra de 1348 e a Grande Praga de 1665 são apenas dois dos quase 40 surtos que Londres sofreu entre 1348 e 1665. Um grande surto da doença ocorria aproximadamente a cada 20-30 anos, matando cerca de 20% da população de Londres por vez.
As pessoas tinham particularmente medo da praga, porque suas vítimas morreram tão rapidamente e pouquíssimos se recuperaram. O pior ataque de peste ocorreu em 1563, quando quase um quarto da população de Londres doentes nas ruas, outros se recusavam a ajudar amigos e familiares. Samuel Pepys escreveu em seu diário: 'a praga está nos tornando cruéis como cães.'
A vida e os negócios das pessoas sofriam terrivelmente porque muitos estabelecimentos eram fechados e pessoas eram obrigadas a sair de Londres durante a quatentena. Uma testemunha ocular disse que Londres ficava tão quieta que todo dia era como um Domingo e grama começava a crescer nas ruas. Muitos eram forçados a implorar ou roubar comida e dinheiro porque a praga teve um efeito devastador em toda a sociedade.
A Grande Praga de 1665 foi a última grande praga na Inglaterra e permaneceu até o último caso relatado em 1679, 14 anos.
E AS VÍTIMAS DA PRAGA?
Algumas igrejas cuidavam das vítimas da peste bubônica; 'mulheres sábias', um tipo de curandeiras, eram como enfermeiras; Barbeiros atuavam como cirurgiões/médicos; boticário/apotecários vendiam remédios; mas somente ricos recebiam atenção de um médico (imagem acima). O traje extravagante dos médicos realmente era de alguma proteção pois a máscara bizarra protegia suas cabeças e rostos das mordidas de pulgas, assim como vestidão preto (ou capa), botas e luvas.
de volta a Shakespeare...
No caso de Shakespeare, houveram vários surtos no início do século 17, 1593, 1603, 1606, 1608. Seu teatro foi fechado várias vezes, assim como outros locais de entretenimento Elizabetano, e a companhia de teatro passou a correr o interior do país atrás de trabalho, porque sabe comé, né? Em isolamento social, mas os boletos continuam chegando...Com isso ele começou a ter muito tempo livre, longas viagens de carroça e carruagem, e mente vazia é oficina da criatividade.
Mesmo sem ser infectado fisicamente, ele perdeu suas irmãs Joan, Margaret (ainda bebês) e Anne (7 anos) e seu irmão Edmund (27 anos) vítimas da praga. Mas a maior perda para William Shakespeare foi seu único filho, Hamnet, que morreu aos 11 anos de idade. Tantas pessoas de apenas uma família (o número aumentou após a morte de Shakespeare quando seus netos, Shakespeare Quiney morreram na infância, com 6 meses de idade, em maio de 1617, e seus irmãos Richard e Thomas Quiney morreram da praga com 19 e 20 anos de idade ).
Romeu e Julieta
*spoilers, aviso logo
Austen não contou que a milícia que Wickham fazia parte era um exército secundário formado de civis para proteger o país enquanto os soldados de verdade, de profissão, lutavam contra Napoleão; era algo corriqueiro. Mal visto pelos mais sensatos, adorado por louquetes como Mrs Bennet e Lydia, a milícia tinha em seus números muitos escroques, condenados por crimes menores, agressores sexuais, ladrões até.
Em Shakespeare, a ameaça da praga era dia-a-dia para eles, seria desnecessário explicar tudo que falei acima para que entendêssemos o risco que o Frei John correria levando a carta de Frei Laurence para Romeu. Lembra que ele ficou preso em quarentena?...
Olha esse resumão:
~ o básico da trama: Romeu e Julieta eram de famílias rivais; se apaixonam; morrem. Certo.
Há poucas menções à praga em toda a peça. Cito Mercúcio, amigo de Romeu:
Ato 1, Cena IV
"Os lábios das donzelas sonham beijos,
Mas Mab, zangada, faz nascerem bolhas"
O’er ladies’ lips, who straight on kisses dream,
Which oft the angry Mab with blisters plagues,
(plague aqui é verbo)
Ato 3, Cena I
"Estou ferido.
Danem-se as suas casas. ’Stou morto.
Ele se foi, ileso?"
I am hurt.
A plague o’ both your houses. I am sped.
Is he gone, and hath nothing?
Aliás...
No rivotril de Julieta
especula-se que havia belladonna, mandrágora, absinto, artemísia e hidrato de cloral - o que não se sabe se já havia na época. De qualquer forma, tudo muito perigoso.De BELLADONNA eu já brinquei em 9 VEZES ORGULHO E PRECONCEITO.
HIDRATO DE CLORAL está n' O ALIENISTA (de Caleb Caar, não o de Machadinho) que eu adorei a série e estou lendo o livro. Provavelmente vou postar algo aqui, mas ainda não tenho inteligência emocional para falar daquela Nova Iorque.
giphy |
Julieta bebe a poção, a família acha que ela está morta. Romeu volta furtivamente para vê-la. Até aí, tudo bem. Mas tudo vai por água abaixo por causa da parte mais segura - supostamente: Frei John, o 'carteiro', mas ele nunca chega a Mântua.
O que acontece é uma série de eventos infelizes, lei de Murphy.
Por que Frei John não entregou a carta de Frei Laurence a Romeu?
Porque fica preso em quarentena por ter encontrado com um amigo que cuidava de doentes e um vigilante achou que os dois haviam tido contato com a praga, por isso trancafiou os dois em quarentena. A praga é a reviravolta que transforma a mais famosa história de amor já contada em uma tragédia.
Shakespeare estava sendo propositadamente obtuso usando linguagem velada, porque o subtexto teria sido óbvio naquela época. Mencionar a praga era o equivalente a explicar o que é um tweet. "Era onipresente", diz James Shapiro, professor da Universidade Columbia. "Todo mundo na época sabia exatamente o que essas uma ou duas linhas significavam."O resto você sabe: Romeu acha que Julieta está morta e se mata. Julieta acorda de sua morte falsa e descobre que Romeu está morto de verdade. Ela se mata. Fim.
Mas essa referência sutil em Romeu e Julieta foi apenas uma das muitas que Shakespeare usou a praga em suas obras durante a vida.
Há muito se pensa que Shakespeare se voltou para a poesia quando a peste fechou os teatros em 1593 quando ele publicou Vênus e Adônis, no qual a deusa pede um beijo a um menino lindo, "para limpar a infecção do ano perigoso" , Pois, ela afirma, "a praga é banida por sua respiração".
estrofe 508
“Por muito tempo eles se beijem por esta cura!
Oh, nunca deixe suas vestes carmesim se desgastarem,
E enquanto duram, a verdura ainda persiste,
Para controlar a infecção do ano perigoso:
Que os observadores de estrelas, tendo escrito na morte,
Pode-se dizer que a praga é banida por sua respiração."
“Long may they kiss each other for this cure!
Oh never let their crimson liveries wear,
And as they last, their verdure still endure,
To drive infection from the dangerous year:
That the star-gazers, having writ on death,
May say, the plague is banish’d by thy breath."
Shapiro aponta referências à praga e suas feridas borbulhantes, chamadas de "símbolos de Deus" (God's tokens), em várias obras de Shakespeare inclusive no ano do Rei Lear. Em Antônio e Cleópatra, um soldado romano teme que seu lado se pareça "com a pestilência simbólica / onde a morte é certa".
"Eno. Como aparece a luta?
Scarus. Em nosso flano, como o sinal da Pestilência,
Onde a morte é certa. ...
(A brisa contra ela) como uma vaca em Iune,
Guindastes de vela e de mosca"
"Eno. How appeares the Fight?
Scarrus. On our side, like the Token'd Pestilence,
Where death is sure. ...
(The Breeze vpon her) like a Cow in Iune,
Hoists Sailes, and flyes"
E muitas outras...
A lição mais animadora da época de Shakespeare é que os teatros provavelmente sobreviverão a essa nossa praga, o coronavirus, e reabrirão de novo e de novo. Também o comércio, os serviços, a economia, nossa sanidade.
Terminado cada surto da praga, a população de Londres se recuperava surpreendentemente rápido. Novas pessoas vinham de todo canto, do interior, de outras áreas, assumir empregos deixados vagos por aqueles que pereceram e há até registro de aumento repentino do número de casamentos e nascimentos.
giphy Aliás, você lembrava que Ótimo programa para esses dias de quarentena... Também um romance du bom... Escolhe aqui! e não esquece do básico... |
canaltech |
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