Persuasão
Jane Austen
Créditos:
Por ocasião da Leitura Coletiva do Clubinho do Canal/Podcast Sincericídio Literário, resolvi postar na íntegra a tradução encontrada no Free-Ebooks.net e Biblioteca Digital.
Agradeço a gentileza de postar.
Direitos autorais são interamente ligados a estas fontes, eu não fiz alterações e/ou correções. Clique nos nomes para ter acesso a essas versões que, infelizmente, não incluem os famosos 'CAPÍTULOS DELETADOS' que foram traduzidos por mim em julho de 2025.
O uso de imagens capas de diversas edições é meramente decorativo.
PARTE 3
leia a parte 2 aqui
Capítulo Onze
Aproximava-se a altura do regresso de Lady Russell; o dia estava já marcado e Anne, decidida a ir reunir-se a ela assim que ela estivesse instalada, sentia-se ansiosa por ir para Kellynch, e começava a pensar em como a mudança iria afetar a sua tranquilidade. Ela iria viver na mesma aldeia que o Comandante Wentworth, a menos de meia milha dele; eles teriam de frequentar a mesma igreja, e teria de haver relações sociais entre as duas famílias. Isto era um contra; mas, por outro lado, ele passava tanto tempo em Uppercross que quase se poderia considerar que, ao sair de lá, ela estava a afastar-se e não a aproximar-se dele. E, feitas as contas, ela achava que, no que dizia respeito a esta interessante questão, ficava a ganhar, o mesmo sucedendo quanto à mudança de companhia, ao trocar a pobre Mary por Lady Russell. Ela desejava que fosse possível evitar ver o comandante Wentworth no Solar.
Aquelas salas tinham presenciado encontros anteriores cuja recordação seria demasiado dolorosa para ela; mas causava-lhe ainda maior ansiedade a possibilidade de Lady Russell e o comandante Wentworth se encontrarem. Eles não gostavam um do outro, e nada de proveitoso resultaria da renovação do seu conhecimento; e Lady Russell, se os visse juntos, talvez pensasse que ele estava demasiado seguro de si, e ela demasiado pouco.
Estas questões constituíam a sua principal preocupação quando pensava que ia deixar Uppercross, onde achava que estivera já tempo suficiente. O fato de ter sido útil ao pequeno Charles conferiria sempre alguma doçura à recordação
da visita de dois meses, mas ele estava a restabelecer-se rapidamente, e não havia qualquer outro motivo que a prendesse ali. A estada, porém, teve um final diferente, como ela nunca imaginara.
O comandante Wentworth, depois de não ter sido visto em Uppercross nem dado notícias durante dois dias, voltou a aparecer e justificou-se, relatando o que o mantivera ausente. Uma carta do seu amigo, o comandante Harville, que lhe chegara finalmente às mãos, dera-lhe conta de que o comandante se instalara com a família em Lyme, para aí passar o Natal; e eles estavam, por conseguinte, sem o saberem, a menos de vinte milhas um do outro. O comandante Harville nunca mais gozara de boa saúde desde que fora gravemente ferido dois anos antes, e o comandante Wentworth estava tão ansioso por voltar a vê-lo que decidira ir imediatamente a Lyme. Estivera lá vinte e quatro horas.
A absolvição foi completa, a sua amizade foi calorosamente homenageada, e foi despertada uma enorme curiosidade a respeito do amigo; e a sua descrição das belas paisagens em redor de Lyme foi escutada com tanto interesse que o resultado foi um enorme desejo de eles conhecerem Lyme e um projeto de um passeio até lá. Os jovens estavam ansiosos por conhecer Lyme.
O comandante Wentworth falou em voltar lá outra vez; ficava apenas a dezassete milhas de Uppercross; embora estivessem em Novembro, o tempo não estava mau; e, em resumo, Louisa, que era a mais ansiosa dos ansiosos, tinha decidido ir; além do prazer de fazer o que queria, ela estava agora fortalecida com a idéia de que era meritório não ceder e, assim, rebateu todas as razões do pai e da mãe para adiarem o passeio até ao Verão; deste modo, decidiram ir a Lyme - Charles, Mary, Anne, Henrietta, Louisa e o comandante Wentworth. O primeiro plano, bastante
insensato, era irem de manhã e voltarem à noite, mas o Sr. Musgrove não concordou com ele, por causa dos cavalos; e, pensando racionalmente, um dia de meados de Novembro não deixaria muito tempo para ver um novo local, depois de deduzidas sete horas para ir e vir, como a natureza do terreno exigia. Por conseguinte, eles passariam lá a noite e só deveriam voltar no dia seguinte, à hora do jantar.
Isto foi considerado uma alteração considerável; e, embora se tivessem reunido todos na Casa Grande a uma hora muito matutina e tivessem partido pontualmente, passava muito do meio-dia quando as duas carruagens, a do Sr. Musgrove com as quatro senhoras e o cabriolé de Charles em que este levava o comandante Wentworth, desciam a longa colina para Lyme e entravam na rua, ainda mais íngreme, da cidade em si; era evidente que só teriam tempo de dar uma vista de olhos em redor antes de a luz e o calor do Sol desaparecerem.
Depois de terem encontrado alojamento e encomendado jantar numa das hospedarias, o passo seguinte era, inquestionavelmente, dirigirem-se imediatamente ao mar. Era demasiado tarde no ano para quaisquer diversões ou espetáculos que Lyme, como local público, pudesse oferecer: as casas para alugar estavam fechadas, os hóspedes tinham-se ido quase todos embora, já poucas famílias restavam para além das ali residentes. E, como nÆo havia nada para admirar nos edifícios em si, os olhos dos viajantes espraiaram-se pela magnífica localização da cidade, pela rua principal, que parecia correr apressadamente para a água, pelo caminho até ao Cobb, que rodeava a pequena e agradável baía que na época alta se animava com barracas e banhistas, pelo Cobb em si, as suas maravilhas e novos melhoramentos, com a bela linha de rochedos a alongar-se para o leste da cidade; e só um estranho muito estranho não veria os encantos dos arredores próximos de Lyme e teria vontade de os conhecer melhor. As paisagens de Charmouth, corxi os seus belos parques e longas extensões de terreno e, ainda mais, a encantadora e tranquila baía rodeada de rochedos escuros, onde os fragmentos de rochas no meio da areia fazem dela o melhor local para ver a maré encher, para ficará sentado em contemplação; os bosques da alegre aldeia de Up Lyme, com inúmeras variedades de árvores, e, sobretudo, Pinny, com os seus abismos verdejantes no meio de rochas românticas, em que as árvores da floresta e os pomares de luxuriante exuberância afirmam que muitas gerações se devem ter sucedido desde que a primeira queda parcial do rochedo preparou a terra para esta maravilhosa e encantadora paisagem, que se compara favoravelmente com paisagens semelhantes da famosa ilha de Wight; estes locais têm de ser visitados e revisitados, para se poder compreender o valor de Lyme.
O grupo de Uppercross desceu a rua, passando pelas casas agora desertas e de aspecto melancólico, e, continuando a descer, encontrou-se pouco depois à beira-mar; ali, demorou-se um pouco, como todos os que são dignos de contemplar o mar se devem demorar a contemplá-lo quando o voltam a ver; seguiram depois em direção ao Cobb, igualmente um objetivo em si, devido ao relato do comandante Wentworth; pois os Harville tinham-se instalado numa pequena casa próxima da base do velho molhe, de data desconhecida.
O comandante Wentworth foi visitar o amigo, tendo os outros prosseguido o passeio e ele ficado de ir ter com eles ao Cobb. Não se tinham ainda cansado de se maravilhar e de admirar, e nem sequer Louisa parecera achar que se tinham separado do comandante Wentworth há muito tempo, quando o viram vir ter com eles, acompanhado por três pessoas que já conheciam bem de nome: o comandante e a Sra. Harville e um comandante Benwick, que estava hospedado em casa deles. O comandante Benwick tinha, há algum tempo, sido primeiro-tenente do Lavônia, e a descrição que o comandante Wentworth fizera dele quando regressara de Lyme, os calorosos elogios que lhe fizera como um excelente jovem e oficial que ele sempre prezara, tinham granjeado a estima de todos os ouvintes; aquela descrição fora seguida de um breve historia da sua vida privada, o que o tornou muitíssimo interessante aos olhos das senhoras. Ele tinha estado noivo da irmã do comandante Harville e agora chorava a sua morte.
Eles tinham ficado um ano ou dois à espera de fortuna e promoção. A fortuna chegou, uma vez que, como tenente, a sua percentagem do dinheiro resultante da venda das presas marítimas era elevada; a promoção veio também, finalmente; mas Fanny Harville não chegou a sabê-lo. Morrera no ano anterior, enquanto ele estava no mar. O comandante Wentworth achava que era impossível um homem gostar mais de uma mulher do que o pobre Benwick gostara de Fanny Harville, ou sofrer mais com a terrível situação. Ele considerava que a sua maneira de ser era das que mais sofrem, aliando sentimentos muito fortes a modos calmos, sérios e retraídos, um gosto pela leitura e ocupações sedentárias. Para completar o interesse da história, a amizade entre ele e os Harville parecia, se é que isso era possível, ter aumentado com o acontecimento que pôs termo a todas as perspectivas de parentesco, e o comandante Benwick vivia agora com eles.
O comandante Harville alugara a casa por meio ano. Os seus gostos, saúde e rendimentos levaram-no a escolher uma casa barata junto do mar; e a magnificência da região e o sossego de Lyme no Inverno pareciam adaptar-se exatamente ao estado de espírito do comandante Benwick. A simpatia e a estima que sentiam pelo comandante Benwick era enorme. -E, no entanto-, disse Anne para si própria enquanto avançavam para cumprimentar o grupo, talvez o seu coração não esteja mais pesaroso que o meu. Não acredito que tenha perdido a esperança para sempre. Ele é mais novo que eu; mais novo em sentimentos se não, de fato, mais novo na idade. Há de ganhar ânimo e ser feliz com outra.- Eles encontraram-se todos e foram apresentados. O comandante Harville era um homem alto e moreno, com um aspecto sensato e bondoso; coxeava um pouco. E, devido às feições vincadas e à falta de saúde, parecia muito mais velho que o comandante Wentworh.
O comandante Benwick parecia ser, e era, o mais novo dos três, e era também, em comparação com qualquer dos outros, um homem pequeno. Tinha um rosto agradável e um ar melancólico, como se esperava que tivesse, e não participou na conversa.
O comandante Harville, embora não tivesse os modos elegantes do comandante, era um perfeito cavalheiro, sem afetação, sincero e obsequioso. A Sra. Harville, um pouco menos polida que o marido, parecia, porém, ter os mesmos bons sentimentos, e nada podia ser mais agradável que o desejo de ambos de considerarem todo o grupo como seus amigos, por serem amigos do comandante Wentworth, nem mais hospitaleiro do que a sua insistência para que prometessem jantar com eles. O jantar já encomendado na hospedaria foi, porém, finalmente, embora a contra- gosto, aceite como desculpa; mas eles pareceram quase magoados por o comandante Wentworth ter trazido o grupo a Lyme sem pensar que o mais natural era que jantassem em casa deles.
Havia, em tudo isto, uma tão grande amizade pelo comandante Wentworth e um encanto tão fascinante nesta hospitalidade tão invulgar, tão diferente do estilo habitual de troca de convites e dos jantares de formalidades e exibicionismo, que Anne sentiu que o seu estado de espírito não iria beneficiar se conhecesse mais dos seus amigos oficiais. -Estes podiam ter sido todos meus amigos-, foi o seu pensamento; e teve de lutar contra uma enorme tendência para se sentir deprimida.
Depois de deixarem o Cobb, foram todos a casa dos seus novos amigos e encontraram uns aposentos tão pequenos que só os que convidam do fundo do coração consideram capazes de acomodar tanta gente. Por um momento, Anne ficou admirada; mas foi só um momento, e esse espanto em breve se dissipou no meio de sensações mais agradáveis quando reparou nos esforços engenhosos do comandante Harville e no belo trabalho que ele fizera para tirar o maior partido possível do pouco espaço existente, para suprir as deficiências do mobiliário da casa alugada e para proteger as portas e as janelas contra as prováveis tempestades de Inverno. Anne sorriu perante a diversidade da decoração dos aposentos, em que as peças de mobiliário essenciais colocadas com indiferença pelo proprietário contrastavam com algumas peças de madeiras raras, magnificamente trabalhadas, e com interessantes e valiosos objetos de todos os países distantes que o comandante Harville visitara; estava tudo relacionado com a sua profissão, com os frutos do seu trabalho e com a influência deste nos seus hábitos, e a imagem de tranqüilidade e felicidade familiar que refletia provocou em Anne uma sensação semelhante à de prazer.
O comandante Harville não lia muito; mas ele arranjara um excelente local e fizera umas prateleiras muito bonitas para uma razoável coleção de livros bem encadernados pertencentes ao comandante Benwick. O fato de coxear impedia-o de fazer muito exercício físico, mas um espírito engenhoso e prático parecia mantê-lo constantemente ocupado dentro de casa. Ele desenhava, envernizava, fazia trabalhos de carpintaria, colava; fazia brinquedos para as crianças, inventava lançadeiras e cavilhas aperfeiçoadas; e, quando tudo o mais estava feito, sentava-se a um canto a fazer uma enorme rede de pesca.
Quando saíram da casa, Anne pensou que deixara uma grande felicidade atrás de si; e Louisa, que caminhava a seu lado, desatou a tecer elogios exaltados à Marinha - à sua amabilidade, à sua fraternidade, à sua franqueza, à sua retidão -, afirmando que estava convencida de que os homens da Marinha tinham mais valor e entusiasmo do que quaisquer homens de Inglaterra; só eles sabiam viver, e só eles mereciam ser respeitados e amados.
Regressaram à hospedaria para se vestirem e jantarem; e os preparativos tinham sido tão bem feitos que não faltava nada; apesar de estarem completamente fora da estação- e de não haver qualquer movimento em Lyme- e de não esperarem companhia; coisas pelas quais os donos da hospedaria pediram muitas e profusas desculpas. Por esta altura, Anne já se sentia mais à vontade na companhia do comandante Wentworth do que a princípio imaginara ser possível, e estar sentada à mesma mesa que ele, trocando as amabilidades habituais (nunca passavam disso) já não a perturbava.
As noites estavam demasiado escuras para as senhoras se voltarem a encontrar antes do dia seguinte, mas o comandante Harville tinha prometido vir visitá-los ao serão; e ele veio e trouxe o amigo, com o que eles não contavam, pois tinham concordado que o comandante Benwick tinha todo o ar de se entir oprimido com a presença de tantos desconhecidos. No ntanto, ele aventurara- se a estar no meio deles, embora o seu stado de espírito não parecesse enquadrar-se na alegria geral do grupo. Enquanto os comandantes Wentworth e Harville conduziam a conversa num lado da sala e recordavam os tempos antigos, contando histórias suficientes para ocupar e divertir os outros, Anne ficou um pouco à parte com o comandante Benwick; um generoso impulso levou-a a entabular conversa com ele. Ele era tímido e dado ao isolamento; mas a atraente suavidade do rosto de Anne e os seus modos meigos em breve começaram a fazer efeito; e Anne foi bem recompensada pelo seu esforço. Ele era obviamente um jovem com gosto pela leitura, principalmente poesia; além de ficar convencida de lhe ter proporcionado, pelo menos durante um serão, o prazer de discutir assuntos pelos quais os seus companheiros habituais não tinham o mínimo interesse, ela tinha esperança de lhe ser verdadeiramente útil, dando-lhe sugestões, surgidas naturalmente no decorrer da conversa, sobre a obrigação e o benefício de lutarmos contra o sofrimento. Pois, embora fosse tímido, ele não parecia ser reservado; parecia, pelo contrário, sentir-se satisfeito por poder libertar os seus sentimentos do retraimento habitual; eles conversaram sobre poesia, sobre a riqueza da época contemporânea, comparavam sucintamente opiniões sobre os melhores poetas, tentando decidir qual era preferível, se Marmion (1), se The Lady of the Lake (2), a que gênero literário pertenciam Giaour (3) e The Bride of Abydos (4) e, além disso, como se pronunciava Giaour; ele mostrou conhecer intimamente as mais belas canções de um poeta e todas as apaixonantes descrições de agonia desesperada do outro; repetiu, com enorme sentimento, os versos que descreviam um coração despedaçado e uma mente destruída pelo sofrimento, e ele parecia tanto desejar ser compreendido que ela se atreveu a recomendar-lhe que não lesse só poesia, e a dizer que pensava que a poesia tinha o infortúnio de raramente ser apreciada com segurança por aqueles que mais gostavam dela; e que os seres dotados de sentimentos fortes, que eram os únicos que a apreciavam verdadeiramente, eram precisamente os que deviam saboreá-la com cuidado.
Uma vez que esta alusão ao seu caso não pareceu fazê-lo sofrer e ele deu a idéia de, pelo contrário, ter ficado satisfeito, ela atreveu-se a prosseguir com a conversa; e, sentindo que o seu espírito mais amadurecido no sucedido lhe concedia esse direito, atreveu-se a recomendar a inclusão de mais prosa nas suas leituras quotidianas; quando lhe foi pedido que exemplificasse, ela referiu as obras dos nossos *1 Poema em 6 cantos de Walter Scott. (N. da T.) 2 Poema de Walter Scott. (N. da T.) 3 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) 4 Poema de Lorde Byron. (N. da T.) melhores moralistas, as coleções das mais belas cartas, as memórias de personalidades experimentadas e de valor que lhe ocorreram no momento como sendo obras destinadas a elevar e fortalecer a mente de acordo com os mais elevados princípios e os melhores exemplos de resistência moral e religiosa.
O comandante Benwick escutou atentamente e pareceu grato pelo interesse que estava implícito; e, embora tivesse abanado a cabeça e suspirado, manifestando a sua dúvida quanto à eficácia de qualquer livro no alívio de uma dor como a sua, anotou os nomes dos livros recomendados por ela e prometeu procurá-los e lê-los. Quando o serão terminou, Anne não pôde deixar de achar divertida a idéia de ter vindo a Lyme para pregar paciência e resignação a um jovem que nunca tinha visto antes: mas, refletindo mais seriamente, também não conseguiu deixar de temer que, tal como muitos outros grandes moralistas e pregadores, ela tivesse sido eloqüente a um ponto em que a sua conduta dificilmente suportaria um exame minucioso.
Capítulo Doze
Anne e Henrietta foram as primeiras do grupo a levantar-se na manhã seguinte e resolveram ir passear até ao mar antes do pequeno-almoço. Foram até à areia e ficaram a ver a maré a encher, trazida por uma brisa de sudeste, com toda a imponência que uma praia tão plana permitia. Elas elogiaram a manhã; louvaram o mar; compartilharam o mesmo deleite com a brisa fresca e ficaram em silêncio, até que Henrietta começou subitamente a conversar:
- Oh! sim... estou absolutamente convencida de que, com muito poucas exceções, o ar do mar é sempre saudável. Não há dúvida nenhuma de que fez muito bem ao Dr. Shirley depois da sua doença, fez na Primavera passada um ano. Ele próprio diz que a estada de um mês em Lyme lhe fez melhor do que todos os medicamentos que tomou; e que estar perto do mar o faz sentir jovem outra vez. Assim, não posso deixar de pensar que é uma pena que ele não viva sempre à beira- mar. Eu acho que ele devia deixar Uppercross de vez e fixar-se em Lyme. Tu não achas, Anne? Não concordas comigo que é o melhor que ele poderia fazer, tanto para ele como para a Sra. Shirley? Ela tem primos aqui, sabes?, e muitas pessoas conhecidas, o que seria uma distração para ela, e tenho a certeza de que ela gostaria de viver num local em que pudesse obter rapidamente assistência médica, no caso de ele sofrer outro ataque. Na verdade, eu penso que é muito triste que excelentes pessoas como o Dr. e a Sra. Shirley, que praticaram o bem durante toda a sua vida,
desperdicem os seus últimos dias num lugar como Uppercross, em que, com exceção da nossa família, parecem estar isolados de todo o mundo. Eu gostaria muito que os seus amigos lhe sugerissem isso. Acho que eles deviam fazê-lo.
Quanto à obtenção de uma dispensa eclesiástica, com a sua idade e caráter, isso não seria difícil. A minha única dúvida é se alguma coisa o convenceria a deixar a sua paróquia. Ele é tão severo e escrupuloso no cumprimento das suas obrigações! Não achas, Anne, que ele está a ser excessivamente escrupuloso? Não achas que é um erro um clérigo sacrificar a sua saúde por causa das suas obrigações, quando estas podem perfeitamente ser desempenhadas por outra pessoa? E Lyme fica apenas a dezassete milhas de distância... ele estaria suficientemente perto para poder ouvir quaisquer queixas, se as houvesse.
Durante este discurso, Anne sorriu várias vezes para si própria e falou sobre o assunto, tão disposta a interessar-se pelos sentimentos de uma jovem como estivera em relação aos de um jovem, embora, neste caso, o mérito fosse menor, mas que podia ela fazer além de concordar, de um modo geral?
Ela disse tudo o que era razoável e apropriado sobre o assunto; concordou, como devia, que o Dr. Shirley tinha direito a descansar; compreendia como era boa idéia ele ter um jovem ativo e respeitável como coadjutor residente, e teve ainda a delicadeza de aludir às vantagens de um tal coadjutor residente ser casado.
- Gostava muito - disse Henrietta, muito satisfeita com a sua companheira-, gostava muito que Lady Russell vivesse em Uppercross e fosse amiga do Dr. Shirley. Sempre ouvi dizer que Lady Russell é uma mulher que exerce grande influência sobre toda a gente! Eu sempre a considerei capaz de convencer uma pessoa a fazer qualquer coisa! Eu tenho medo dela, como já te disse antes, tenho mesmo medo dela porque ela é tão inteligente; mas eu respeito-a muito e gostaria de a ter como vizinha em Uppercross.
Anne achou graça à maneira de Henrietta se mostrar grata, bem como ao desenrolar dos acontecimentos e ao fato de os novos interesses dos objetivos de Henrietta terem colocado a sua amiga nas boas graças de um membro da família Musgrove; ela só teve tempo, porém, para uma resposta vaga e para exprimir o desejo de que houvesse uma mulher assim a viver em Uppercross, quando todos os temas de conversa pararam subitamente ao verem Louisa e o comandante Wentworth aproximarem-se deles. Eles tinham ido dar um passeio antes de o pequeno-almoço estar pronto; mas Louisa recordou-se logo a seguir de que tinha de ir procurar algo numa loja e convidou-os a irem com ela à cidade. Todos eles se colocaram à sua disposição.
Quando chegaram aos degraus que subiam da praia, um cavalheiro que nesse mesmo momento se preparava para descer deu delicadamente um passo atrás e parou para os deixar passar. Eles subiram e passaram por ele; ao passarem, o rosto de Anne atraiu-lhe a atenção e ele fitou-a com um olhar de interesse e admiração a que ela não pôde ficar insensível. Ela estava com um ótimo aspecto; o vento fresco, batendo-lhe no rosto, tinha restituído a frescura da juventude às suas feições regulares e muito atraentes e despertara a vivacidade do seu olhar. Era evidente que o cavalheiro (um verdadeiro cavalheiro nos seus modos) a admirou imenso. O comandante Wentworth olhou imediatamente para ela de um modo que demonstrava que reparara. Ele lançou-lhe um olhar momentâneo um olhar perspicaz que parecia dizer: -Este homem ficou impressionado contigo e, até mesmo eu, neste momento, vejo algo de novo em Anne Elliot.- Depois de terem acompanhado Louisa nas suas compras e de terem passeado mais um pouco, regressaram à hospedaria; e Anne, quando mais tarde se dirigia apressadamente do quarto para a sala de jantar, quase chocou com o mesmo cavalheiro, quando este saía de um apartamento ao lado. Ela já calculara que ele fosse um forasteiro como eles, e decidira que um empregado bem- parecido que, no regresso, tinham visto a passear perto das duas hospedarias, devia ser o seu criado. O fato de tanto este homem como o seu amo estarem de luto reforçara essa idéia. Estava agora confirmado que ele estava hospedado na mesma hospedaria que eles, e este segundo encontro, embora muito breve, demonstrou de novo, pelo olhar do cavalheiro, que ele a considerava muito bela e, pela prontidão e correção das suas desculpas, que era um homem de muito boas-maneiras. Parecia ter cerca de 30 anos e, embora não fosse belo, tinha uma figura simpática. Anne pensou que gostaria de saber quem ele era.
Tinham quase terminado o pequeno-almoço quando o som de uma carruagem (praticamente a primeira que ouviam desde que tinham chegado a Lyme) fez metade do grupo ir à janela. Era uma carruagem de cavalheiro - um cabriolé -, mas que só veio dos estábulos até à porta da frente. Deve ser alguém a partir.- Era conduzida por um criado de luto. A palavra cabriolé fez Charles pôr-se de pé num salto para o comparar com o seu; o criado de luto despertou a curiosidade de Anne, e os seis estavam já todos reunidos à janela quando o dono do cabriolé saiu da hospedaria no meio das vénias e cortesias do pessoal, tomou o seu lugar e partiu.
-Ah - exclamou imediatamente o comandante Wentworth olhando de soslaio para Anne -, é o homem por que passámos. As Meninas Musgrove concordaram; e, depois de terem ficado todos, com simpatia, a vê-lo subir a colina até o perderem de vista, voltaram para a mesa do pequeno- almoço.
O empregado de mesa entrou na sala pouco depois.
Por favor - disse imediatamente o comandante Wentworth -, sabe dizer-nos quem é o cavalheiro que acabou de partir?
Sei, sim, é o Sr. Elliot; um cavalheiro de grande fortuna; chegou ontem à noite, vindo de Sidmouth... suponho que devem ter ouvido a carruagem, sir, quando estavam a jantar... e seguiu agora na direção de Crewkherne, com destino a Bath e Londres.
Elliot! - Antes de a frase acabar, apesar da rapidez com que o empregado a disse, muitos tinham-se entreolhado e muitos tinham repetido o nome.
Deus do Céu! - exclamou Mary. - Deve ser o nosso primo... deve ser mesmo o nosso Sr. Elliot, deve ser ele! Charles, Anne, não acham? Está de luto, tal como o nosso Sr. Elliot deve estar. Que extraordinário! Na mesma hospedaria que nós! Anne, não achas que deve ser o nosso Sr. Elliot, o herdeiro do nosso pai? Por favor - voltando-se para o empregado -, não ouviu, não ouviu o criado dele dizer que ele pertencia à família de Kellynch?
Não, minha senhora, ele não se referiu a nenhuma família em particular, mas disse que o amo era um cavalheiro muito rico e que um dia seria baronete.
Estão a ver! - exclamou Mary, em êxtase. - é exatamente o que eu disse! Herdeiro de Sir Walter Elliot. Eu tinha a certeza de que, se fosse realmente ele, viria a saber-se.
Podem estar certos de que esta é uma circunstância que os seus criados fazem questão de proclamar onde quer que ele vá. Mas, Anne, imagina só como é extraordinário! Quem me dera ter olhado melhor para ele. Quem me dera que tivéssemos sabido a tempo quem ele era, para nos poder ser apresentado. Que pena não termos sido apresentados! Achas que ele tinha o ar dos Elliot? Eu mal olhei para ele. Estava a olhar para os cavalos; mas penso que tinha um pouco o ar dos Elliot. Por que não reparei no brasão? Oh!, o capote do criado caía por cima do painel e tapava o brasão; foi isso; caso contrário, tenho a certeza de que teria reparado nele, assim como na libré; se o criado não estivesse de luto, eu tê-lo-ia conhecido pela libré.
Considerando todas essas extraordinárias circunstâncias disse o comandante Wentworth -, devemos considerar que foi intenção do destino não ser apresentada ao seu primo. Quando conseguiu atrair a atenção de Mary, Anne tentou calmamente convencê-la de que as relações entre o pai e o Sr. Elliot não eram, há anos, tão boas que fosse desejável tentarem ser-lhe apresentadas. Ao mesmo tempo, porém, ela sentiu uma satisfação íntima por ter visto o primo e por saber que o futuro dono de Kellynch era indubitavelmente um cavalheiro com ar sensato. Ela não tinha qualquer intenção de mencionar que se tinha encontrado com ele uma segunda vez; felizmente, Mary não prestara muita atenção quando passara por ele durante o seu passeio matinal, mas ela teria ficado muito aborrecida ao saber que Anne se tinha esbarrado contra ele no corredor e recebido as suas delicadas desculpas, enquanto ela nunca estivera perto dele; não, aquele breve encontro entre primos permaneceria um segredo absoluto.
Claro - disse Mary - que vais dizer que vimos o Sr. Elliot na próxima vez que escreveres para Bath. Penso que o pai devia sabê-lo; por favor, conta tudo a seu respeito.
Anne evitou uma resposta direta, mas esta era exatamente uma circunstância que ela achava que não só era desnecessário comunicar como nem devia ser referida. A ofensa que há muitos anos fora feita ao pai, ela sabia; do quinhão que coubera a Elizabeth, só desconfiava, e não havia dúvida de que ambos se irritavam com a mera referência ao Sr. Elliot.
Mary nunca escrevia para Bath; o penoso trabalho de manter uma correspondência irregular e pouco satisfatória com Elizabeth recaía sobre Anne. Tinham terminado o pequeno-almoço há pouco tempo quando o comandante e a Sra. Harville apareceram, acompanhados pelo comandante Benwick, com quem tinham combinado dar um último passeio em Lyme. Eles tencionavam partir para Uppercross antes da uma hora e, entretanto, estariam juntos e ao ar livre o máximo de tempo possível. Anne viu que o comandante Benwick se aproximou dela assim que se encontraram todos na rua. A conversa da noite anterior não o dissuadira de voltar a procurar a sua companhia; e eles caminharam juntos durante algum tempo, a conversar, como antes, de Walter Scott e de Lorde Byron, continuando incapazes, tão incapazes como quaisquer outros dois leitores, de ter a mesma opinião sobre os méritos de qualquer deles, até que algo provocou uma alteração quase geral no grupo e, em vez do comandante Benwick, ela teve o comandante Harville a seu lado.
-A Menina Elliot- disse ele, falando em voz baixa – cometeu uma bela ação fazendo aquele pobre homem falar tanto. Quem me dera que ele tivesse a sua companhia mais vezes. É muito mau para ele, eu sei, ser fechado como é; mas que havemos de fazer? Não nos podemos separar.
Não - disse Anne -, acredito que seja impossível, mas, com o decorrer do tempo, talvez; nós sabemos como o tempo atua em todos os casos de sofrimento, e deve ter em mente, comandante Harville, que o desgosto do seu amigo pode ser considerado relativamente recente. Foi só no Verão passado, segundo creio.
Sim, é verdade - disse ele com um profundo suspiro -, foi só em Junho. - E ele talvez não tenha tido logo conhecimento.
Só o soube na primeira semana de Agosto, quando chegou a casa vindo do Cabo. Acabava de tomar conta do Grappler. Eu estava em Plymouth, ansioso por ter notícias dele, mas o GrappLer tinha ordens para ir para Portsmouth. As notícias deviam segui-lo até lá, mas quem iria dar-lhas? Eu não, não tinha coragem. Ninguém conseguia fazê-lo a não ser aquele bom companheiro - (e apontou para o comandante Wentworth). – O Lavônia tinha chegado a Plymouth na semana anterior, não havia perigo de ser enviado de novo para o mar. Quanto ao resto, ele resolvera arriscar-se... pediu uma licença e, sem aguardar pela resposta, viajou noite e dia até chegar a Portsmouth e, assim que lá chegou, dirigiu-se para o Grappler a remo e não saiu de junto do pobre rapaz durante uma semana; foi o que fez; ninguém mais conseguiria salvar o pobre James. Pode imaginar, Menina Elliot, como ele nos é querido!
Anne conseguia, na realidade, imaginá-lo perfeitamente, e disse-o, em tantas palavras quantas as suas emoções lhe permitiram ou as dele eram capazes de escutar, pois ele pareceu demasiado comovido para continuar a conversar sobre o assunto; quando falou de novo, foi sobre uma coisa totalmente diferente.
O fato de a Sra. Harville ter manifestado a opinião de que, quando chegassem a casa, o marido já teria andado bastante, determinou a direção do grupo no que iria ser o seu último passeio; acompanhá-los-iam até à porta, depois voltariam para trás e partiriam; segundo os seus cálculos, tinham exatamente tempo para isso; mas, quando se aproximaram do Cobb, sentiram todos desejo de passear mais uma vez ao longo deste, estavam todos tão interessados e Louisa tornou-se tão obstinada que chegaram à conclusão de que um atraso de um quarto de hora não faria qualquer diferença. Assim, depois de todas as amáveis despedidas e de toda a amável troca de convites e promessas que se podem imaginar, separaram-se do comandante e da Sra. Harville à porta destes e, ainda acompanhados pelo comandante Benwick, que parecia querer ficar junto deles até ao fim, foram despedir-se devidamente do Cobb.
Anne viu que o comandante Benwick se aproximou novamente dela. A paisagem não pôde deixar de lhe recordar os mares azul-escuros de Lorde Byron, e ela prestou-lhe, de boa vontade, toda a sua atenção enquanto foi possível prestar-lha. Em breve, porém, esta iria ser atraída noutra direção. Estava demasiado vento para que a parte do novo Cobb fosse agradável para as senhoras, e eles concordaram em descer os degraus para a parte inferior; prepararam-se todos para descer os degraus íngremes, lenta e cuidadosamente, à exceção de Louisa, que queria saltar, ajudada pelo comandante Wentworth. Em todos os seus passeios, ele tinha de a ajudar a saltar dos taludes; achava a sensação deliciosa. Desta vez, dada a dureza do solo, ele mostrou-se mais relutante, mas acabou por fazê-lo; ela desceu sã e salva e, imediatamente, para mostrar como gostara, subiu os degraus a correr para voltar a saltar.
Ele aconselhou-a a não o fazer, pois o embate era demasiado grande; mas foi em vão que ele falou e argumentou; ela sorriu e disse: Estou decidida, vou saltar¯; ele ergueu as mãos; ela precipitou-se um segundo antes do tempo, caiu no chão do Cobb inferior, de onde a levantaram inanimada. Não havia qualquer ferimento, sangue ou lesão visível; mas tinha os olhos fechados, não respirava, e o rosto tinha a palidez da morte.
Foi um momento de horror para todos os que a rodeavam! O comandante Wentworth, que a tinha levantado, estava de joelhos com ela nos braços, olhando-a com um rosto tão pálido como o dela, num silêncio de agonia.
Ela está morta!, está morta! - gritou Mary, agarrando-se ao marido e contribuindo, juntamente com o seu próprio horror, para que ele se mantivesse imóvel; e, um minuto depois, Henrietta, vencida pela mesma convicção, perdeu também os sentidos, e teria caído se o comandante Benwick e Anne não a tivessem segurado.
Não há ninguém que me ajude? - foram as primeiras palavras soltadas pelo comandante Wentworth, num tom de desespero, como se a sua força se tivesse esgotado.
VÁ ter com ele - exclamou Anne -, por amor de Deus, vá ter com ele. Eu consigo segurá-la sozinha. Deixe-me, vá ter com ele. Esfregue as mãos dela, friccione-lhe as têmporas; aqui estão os meus sais... tome-os, tome-os. O comandante Benwick obedeceu, enquanto Charles, ao mesmo tempo, se desenvencilhava da mulher. Aproximaram-se ambos dele; Louisa foi levantada e apoiada com mais firmeza; fizeram tudo o que Anne dissera, mas em vão; o comandante Wentworth encostou-se, cambaleante, à parede, para se apoiar, exclamando em tom de agonia:
Oh, meu Deus! O pai e a mãe dela!
Um médico! - disse Anne.
Esta palavra pareceu despertá-lo de imediato, e disse:
É verdade, é verdade, um médico imediatamente. - E estava a afastar-se rapidamente quando Anne sugeriu ansiosamente:
O comandante Benwick, não seria melhor ir o comandante Benwick? Ele sabe onde encontrar um médico. Todos os que estavam em condições de pensar acharam que era melhor idéia e, um minuto depois (foi tudo feito em movimentos rápidos), o comandante Benwick tinha confiado a pobre figura, que parecia um cadáver, aos cuidados do irmão, partindo rapidamente para a cidade. Quanto ao infeliz grupo que ficara, não era possível dizer qual dos três que se encontravam na posse de todas as suas faculdades sofria mais: o comandante Wentworth, Anne ou Charles, que, na realidade, era um irmão muito afetuoso e estava inclinado por cima de Louisa soluçando amargamente, só conseguindo tirar os olhos de uma irmã para ver outra sem sentidos, ou presenciar a agitação histérica da mulher, pedindo-lhe uma ajuda que ele não podia dar. Anne, tratando Henrietta com toda a firmeza, zelo e preocupação que o instinto lhe aconselhava, tentava ainda, regularmente, confortar os outros, acalmar Mary, animar Charles e acalmar os sentimentos do comandante Wentworth.
Ambos pareciam aguardar as suas instruções. - Anne, Anne - exclamou Charles -, que vamos fazer a seguir? Por amor de Deus, que vamos fazer? Os olhos do comandante Wentworth também se voltaram para ela.
Não seria melhor levá-la para a hospedaria? Sim, tenho a certeza, levem-na com cuidado para a hospedaria.
Sim, sim, para a hospedaria - repetiu o comandante Wentworth, relativamente controlado e ansioso por fazer qualquer coisa. - Eu levo-a. Musgrove, tome conta dos outros.
Nesta altura, jáo relato do acidente se tinha espalhado entre os trabalhadores e barqueiros à volta do Cobb, e tinham-se juntado muitos à sua volta, para serem úteis, se necessário; de qualquer modo, para gozarem o espectáculo de uma jovem morta; não, duas jovens mortas, pois a realidade era duas vezes melhor do que o primeiro relato. Henrietta foi confiada a algumas das pessoas com melhor aspecto, pois, embora tivesse recuperado parcialmente os sentidos, ela não se conseguia mover; e, assim, com Anne a seu lado e Charles a tomar conta da mulher, puseram-se a caminho, pisando de novo o chão por que pouco tempo antes, muito pouco tempo antes, tinham passado tão cheios de alegria.
Ainda não tinham saído do Cobb quando os Harville vieram ao seu encontro. Tinham visto o comandante Benwick passar a correr pela sua casa, com uma expressão que mostrava que algo errado se passava; e eles tinham saído imediatamente, informando-se e orientando-se à medida que se dirigiam ao local.
Embora impressionado, o comandante Harville trazia consigo sensatez e calma que puderam ser imediatamente úteis; e um olhar entre ele e a mulher decidiu o que iria ser feito. Ela devia ser levada para casa deles - deviam ir todos para casa deles - e esperar pela chegada do médico ali. Ele não prestou atenção a quaisquer escrúpulos: foi obedecido; ficavam todos debaixo do seu teto; Louisa, de acordo com instruções da Sra. Harville, foi levada para cima e colocada na sua própria cama; e a todos que deles precisavam, o marido prestou apoio, serviu refrescos e deu sedativos. Louisa tinha aberto os olhos uma vez, mas voltou a fechá-los pouco depois, sem ter recuperado a consciência. Isto já fora, contudo, uma prova de vida útil para a irmã; e a agitação da esperança e do medo evitou que Henrietta voltasse a perder os sentidos, embora se sentisse totalmente incapaz de estar no mesmo quarto que Louisa. Também Mary estava a ficar mais calma.
O médico chegou mais cedo do que parecia possível. Enquanto ele a examinava, sentiram-se dominados pelo terror; mas ele não se mostrou desanimado; a cabeça tinha sofrido uma pancada grande, mas ele já vira recuperações de pancadas mais graves; não estava absolutamente nada desanimado; ele falava num tom satisfeito. O fato de ele não considerar o caso desesperado de ele não ter dito que tudo terminaria dentro de poucas horas - excedeu, a princípio, a esperança da maior parte deles; pode, pois, imaginar-se a felicidade que sentiram, a sua alegria, silenciosa e profunda, depois de dirigirem a Deus algumas fervorosas exclamações de gratidão.
Anne teve a certeza de que nunca se esqueceria do tom, da expressão com que o comandante Wentworth disse -Graças a Deus-, nem como, mais tarde, ele ficou sentado, debruçado sobre a mesa, com os braços cruzados e a cabeça escondida, como se sentisse dominado pelas várias sensações da alma e tentando acalmá-las através da oração e pela meditação.
Os membros de Louisa estavam intatos. Só a cabeça ficara magoada. Era agora necessário que o grupo decidisse o que devia fazer quanto à situação. Já conseguiam falar uns com os outros e trocar opiniões. Não havia dúvida de que Louisa tinha de permanecer onde estava, por mais que custasse aos seus amigos envolver os Harville no problema. Era impossível transportá-la para outro local.
Os Harville silenciaram todos os escrúpulos e, tanto quanto lhes foi possível, toda a gratidão. Eles tinham previsto tudo e feito todos os preparativos antes de os outros terem começado a pensar. O comandante Benwick teria de ceder o quarto e dormir noutro local - e ficou tudo decidido. Eles só estavam preocupados com o fato de a casa não poder alojar mais pessoas; e, no entanto, se pusessem as crianças no quarto da criada ou armassem um burro em qualquer lado¯, conseguiriam arranjar lugar para mais dois ou três, supondo que eles quisessem ficar; embora, com respeito a tratar da Menina Musgrove, podiam deixá-la, sem a mínima preocupação, entregue aos cuidados da Sra. Harville.
A Sra. Harville era uma enfermeira com muita experiência; e a sua ama, que há muito vivia com ela e viajara com ela para todo o lado, também o era. As duas eram suficientes para tomar conta dela, de dia e de noite. Tudo isto foi dito com uma franqueza e sinceridade irresistíveis. Charles, Henrietta e o comandante Wentworth trocavam opiniões e, durante algum tempo, foi apenas uma troca de palavras de perplexidade e terror:
Uppercross – a necessidade de alguém ir a Uppercross - a notícia que tinha de ser transmitida - como deveria ser dada ao Sr. e à Sra. Musgrove - a manhã já ia avançada -há uma hora que eles deveriam ter partido - a impossibilidade de chegarem a uma hora razoável.
A princípio, a única coisa que conseguiam fazer era soltar exclamações deste gênero; mas, após algum tempo, o comandante Wentworth, fazendo um esforço, disse: - Temos de decidir, e sem perder um minuto. Todos os minutos são preciosos. Alguém deve partir para Uppercross imediatamente. Musgrove, ou tu ou eu, um de nós tem de ir. Charles concordou; mas declarou a sua resolução em não sair dali. Ele tentaria incomodar o comandante e a Sra. Harville o menos possível, mas, quanto a deixar a irmã naquele estado, isso ele não devia, nem queria, fazer. Isso ficou decidido; e Henrietta, a princípio, afirmou o mesmo. Em breve, porém, ela foi persuadida a mudar de idéias. De que servia ela ficar? Ela, que não conseguia entrar no quarto de Louisa, nem olhar para ela sem sofrer tanto que ela própria precisava de que a socorressem! Ela foi forçada a admitir que não ficaria a fazer nada; no entanto, continuou a mostrar-se relutante em partir, até que, ao lembrar-se, comovida, do pai e da mãe, desistiu, concordou, ficou ansiosa por chegar a casa.
O plano tinha chegado a este ponto quando Anne, saindo do quarto de Louisa, não pôde deixar de ouvir o que se seguiu, pois a porta da sala estava aberta.
Então está decidido, Musgrove - exclamou o comandante Wentworth -, você fica, e eu acompanho a sua irmã a casa. Mas quanto ao resto... quanto aos outros. Se ficar alguém para ajudar a Sra. Harville, penso que só pode ser uma pessoa. A Sra. Charles Musgrove vai querer, sem dúvida, voltar para junto dos filhos; mas, se Anne quiser ficar, não há pessoa mais indicada nem mais capaz que Anne.
Ela parou por um momento para se recuperar da emoção de ouvir falar assim a seu respeito.
Os outros dois concordaram calorosamente com o que ele dissera, e depois ela entrou na sala.
Anne fica, tenho a certeza de que não se importa de ficar a tomar conta dela - exclamou ele voltando-se para ela e falando com um ardor e, ao mesmo tempo, uma ternura que quase pareceu fazer reviver o passado. Ela corou intensamente; e ele caiu em si e afastou-se. Ela disse que estava disposta a ficar, fá-lo-ia com todo o prazer. Era nisso que estivera a pensar, desejando que lhe permitissem fazê-lo. Uma cama no chão do quarto de Louisa seria suficiente para ela, se a Sra. Harville estivesse de acordo.
Mais uma coisa, e tudo parecia resolvido. Embora fosse desejável que o Sr. e a Sra. Musgrove se sentissem, de antemão, um tanto alarmados com a demora, o tempo que os cavalos de Uppercross levariam a fazer a viagem de regresso seria um terrível prolongamento da expectativa; e o comandante Wentworth propôs, e Charles Musgrove concordou, que seria muito melhor que ele alugasse uma caleche na hospedaria e deixasse a carruagem e os cavalos do Sr. Musgrove, os quais seguiriam para casa bem cedo na manhã seguinte, o que teria a vantagem de levar noticias sobre como Louisa passara a noite.
O comandante Wentworth apressou-se a fazer todos os preparativos que lhe diziam respeito, devendo ser seguido, pouco depois, pelas duas senhoras. Quando Mary teve conhecimento do plano, porém, foi o fim de toda a tranquilidade que este trouxera. Ela mostrou-se tão infeliz e foi tão veemente, queixou-se tanto da injustiça de ter de partir, enquanto Anne ficava - Anne, que não era nada a Louisa, enquanto ela era sua cunhada e tinha mais direito de ficar no lugar de Henrietta! Por que não haveria ela de ser tão útil como Anne? E ir para casa sem Charles, sem o marido! Não, era demasiada crueldade!
Em resumo, ela disse mais do que o marido conseguiu suportar e, quando ele cedeu, nenhum dos outros se pôde opor. Não havia nada a fazer: a troca de Mary por Anne era inevitável. Anne nunca se sentira tão relutante em ceder às exigências ciumentas e injustas de Mary; mas teve de ser, e eles partiram para a cidade, Charles tomando conta da irmã, e o comandante Benwick acompanhando-a a ela. Enquanto caminhavam apressadamente, ela recordou, por um momento, as pequenas circunstâncias que os mesmos locais tinham presenciado nessa manhã. Ali tinha ela escutado os planos de Henrietta para a partida do Dr. Shirley de Uppercross; mais à frente, vira o Sr. Elliot pela primeira vez; parecia-lhe que a única coisa a que conseguia dedicar mais de um momento era a Louisa e aos que estavam envolvidos no seu bem- estar. O comandante Benwick mostrava-se bastante atencioso para com ela; e, unidos como todos pareciam estar, pela angústia do dia, ela sentiu uma simpatia crescente em relação a ele, bem como prazer em pensar que a mesma talvez resultasse na continuação das suas relações.
O comandante Wentworth aguardava-as, com uma caleche tirada por duas parelhas que, para maior conveniência, estava parada na parte mais baixa da rua; mas a surpresa e o aborrecimento que ele evidenciou com a substituição de uma irmã pela outra a mudança operada no seu rosto - o espanto - as expressões que surgiam e eram dominadas enquanto escutava o relato de Charles provocaram em Anne uma reação dolorosa; ou, pelo menos, convenceram-na de que ela era apreciada apenas na medida em que podia ser útil a Louisa. Tentou mostrar-se calma e ser justa. Sem querer imitar os sentimentos de Emma para com o seu Henry (1), ela teria, por causa dele, tratado de Louisa com um zelo acima do exigido pela simples amizade, e esperava que ele não seria, por muito tempo, tão injusto que supusesse que ela se recusaria, desnecessariamente, a ajudar uma amiga.
Entretanto, ela sentou-se na carruagem. Ele tinha ajudado as duas a subir e colocara-se no meio delas; e, deste modo, nestas circunstâncias cheias de espanto e emoções para Anne, ela deixou Lyme. Como decorreria a longa viagem; como esta iria afetar os modos de ambos; como iria ser a conversa entre eles, eram coisas que ela não podia prever. Foi tudo muito natural, porém. Ele ocupou-se de Henrietta, voltando-se sempre para ela; e quando falou, fê-lo sempre com o objetivo de acalentar as suas esperanças e de a animar. De um modo geral, a sua voz e os seus modos eram estudadamente calmos. O seu objetivo principal parecia ser poupar qualquer agitação a Henrietta. Apenas uma vez, quando ela se queixava do infeliz e malfadado último passeio ao Cobb, lamentando que se tivessem lembrado de o dar, ele desabafou, como se sentisse completamente dominado pela emoção:
Não fale nisso, não fale nisso - exclamou ele. - Oh, meu Deus! Se eu não tivesse cedido no momento fatal! Se eu tivesse agido como devia! Mas ela é tão impaciente e obstinada! Querida, doce Louisa! Anne perguntou a si própria se nalgum momento lhe viera à idéia pôr em causa a legitimidade da sua opinião anterior a respeito da felicidade e da vantagem da firmeza de caráter; e se não lhe ocorrera que, tal como todas as outras qualidades morais, esta devia ter as suas proporções e limites. Ela pensou que ele não poderia deixar de pensar que, por vezes, um temperamento maleável concorria tanto para a felicidade como uma personalidade obstinada.
Avançaram rapidamente. Anne ficou surpreendida ao reconhecer tão cedo as colinas e os objetos que lhe eram familiares. A velocidade a que seguiam, aumentada pelo receio do que iria acontecer à chegada, fazia a estrada parecer metade do caminho do dia anterior. Estava já anoitecer, porém, quando chegaram aos arredores de Uppercross; há algum tempo que se fizera um silêncio total entre eles; Henrietta recostara-se a um canto, com o rosto coberto por um xale, dando aos outros a esperança de ter chorado até adormecer. Quando subiam a última colina, o comandante Wentworth dirigiu-se subitamente a Anne. Numa voz baixa e cautelosa, disse:
Tenho estado a pensar na melhor maneira de agirmos. Ela não deve aparecer primeiro. Não o suportaria. Tenho estado a pensar se não seria melhor Anne ficar com ela na carruagem enquanto eu vou dar a notícia ao Sr. e à Sra. Musgrove. Acha que é um bom plano?
Ela concordou; ele ficou satisfeito e não disse mais nada. Mas a recordação daquele apelo causou-lhe prazer - era uma prova de amizade, de deferência perante a opinião dela, um grande prazer; e, ainda que tenha sido uma espécie de prova de despedida, isso não diminuiu o seu valor. Depois de a infeliz notícia ter sido comunicada em Uppercross e de se ter certificado de que o pai e a mãe estavam tão refeitos do choque como era possível esperar, e de que a filha se sentia melhor por estar junto deles, ele anunciou a sua intenção de regressar a Lyme na mesma carruagem; e, depois de os cavalos terem comido a sua ração, ele partiu.
VOLUME II
Capítulo Um (Treze)
O resto da estada de Anne em Uppercross, que consistiu apenas em dois dias, foi passado inteiramente na Casa Grande, e ela teve a satisfação de se saber extremamente útil ali, tanto como companhia como no apoio a todos os preparativos para o futuro, os quais, no perturbado estado de espírito do Sr. e da Sra. Musgrove, teriam constituído para estes grandes dificuldades.
Tiveram notícias de Lyme na manhã seguinte. Louisa estava mais ou menos na mesma. Não tinham surgido quaisquer sintomas mais graves. Charles chegou algumas horas depois com notícias mais recentes e mais pormenorizadas. Estava razoavelmente animado. Não se podia esperar uma cura rápida, mas estava tudo a correr tão bem como a natureza do caso permitia.
Falando dos Harville, ele não conseguia encontrar palavras para traduzir a sua bondade, principalmente os cuidados da Sra. Harville como enfermeira. Ela não deixava Mary fazer nada.
Na noite anterior, ela tinha-os convencido, a ele e a Mary, a irem cedo para a hospedaria. Mary ficara outra vez histérica nessa manhã. Quando ele se viera embora, ela ia dar um passeio com o comandante Benwick, e ele esperava que o passeio lhe fizesse bem. Ele quase desejava que tivessem conseguido convencê-la a voltar para casa na noite anterior; mas a verdade era que a Sra. Harville não deixava nada para mais ninguém fazer. Charles deveria voltar a Lyme nessa mesma tarde, e o pai, a princípio, pretendia ir com ele, mas as senhoras não consentiram. Só iria multiplicar os problemas dos outros e aumentar a sua própria angústia; foi feito um plano muito melhor e agiram de acordo com ele. Mandaram vir uma carruagem de Crewkherne, e Charles levou consigo uma pessoa muito mais útil, a velha ama da família, que, depois de ter criado todas as crianças e visto a mais nova, o mimado Harry, ser enviado para o colégio a seguir aos irmãos, vivia agora no quarto vazio das crianças a remendar peúgas e a fazer curativos a todas as feridas e lesões que chegavam perto dela; ela ficou, por conseguinte, extremamente satisfeita por poder ir ajudar a tratar da querida Menina Louisa. A Sra. Musgrove já tinha tido a vaga idéia de mandar Sarah para lá; mas, sem Anne, o assunto não teria sido decidido nem considerado praticável tão cedo.
No dia seguinte, ficaram a dever a Charles Hayter notícias pormenorizadas de Louisa, que era essencial terem todos os dias. Ele resolvera ir a Lyme, e o seu relato era animador. Os períodos de lucidez e consciência pareciam cada vez mais freqüentes. Todos os relatos concordavam em que o comandante Wentworth parecia ter-se instalado em Lyme. Anne devia deixá-los na manhã seguinte, um acontecimento que todos temiam. Que iriam eles fazer sem ela? Nem sequer conseguiam confortar-se uns aos outros! E disseram tantas coisas deste gênero que Anne achou que o melhor que tinha a fazer era comunicar-lhes a sua opinião pessoal e convencê-los a todos a irem imediatamente para Lyme. Teve pouca dificuldade em fazê-lo; em breve ficou decidido que iriam, iriam no dia seguinte, instalar-se-iam na hospedaria ou alugariam uma casa, conforme fosse mais conveniente, e ficariam lá até Louisa poder viajar. Eles iriam aliviar os incômodos causados às boas pessoas com quem ela estava; pelo menos, ajudariam a Sra. Harville a tomar conta dos filhos; e, em suma, mostraram-se tão satisfeitos com a decisão que Anne ficou radiante com o que fizera e achou que a melhor maneira de passar a última manhã em Uppercross era ajudá-los a fazer os preparativos e vê-los partir de manhã cedo, embora, em consequência disso, ficasse sozinha na casa deserta.
Ela foi a última e, com exceção dos rapazinhos do chalé, foi mesmo a última, a única que ficou de tudo o que enchera e animara ambas as casas, de tudo o que fizera de Uppercross uma casa alegre. Que diferença alguns dias tinham realmente feito! Se Louisa se restabelecesse, tudo voltaria a correr bem. Recuperar-se-ia mais do que a felicidade anterior. Não podia haver qualquer dúvida, na sua mente não havia nenhuma, daquilo que se seguiria ao restabelecimento. Daí a alguns meses, a sala agora deserta, ocupada por ela, silenciosa e pensativa, poderia estar de novo cheia de tudo o que era feliz e alegre, tudo o que era vivo e luminoso no amor correspondido, tudo o que era diferente de Anne Elliot!
Uma hora de completa inatividade para pensamentos como estes, num dia sombrio de Novembro, com uma chuva miudinha espessa que mal deixava distinguir os poucos objetos que se viam da janela foi o suficiente para que lhe fosse extremamente grato ouvir o som da carruagem de Lady Russell; no entanto, apesar de desejar partir, ela não conseguia deixar a Casa Grande, nem despedir-se, com um olhar, do chalé, com a sua varanda negra, a escorrer, desconfortável, nem olhar, através dos vidros embaciados, para as últimas casas humildes da aldeia, sem sentir
uma enorme tristeza. Tinham ocorrido em Uppercross cenas que tornavam esta terra preciosa. Ela representava muitas sensações de dor, outrora intensa, agora suavizada; e alguns momentos de sentimentos ternos, alguns vislumbres de amizade e reconciliação que ela nunca voltaria a encontrar e que nunca deixariam de lhe ser caros. Ela deixou tudo para trás; tudo exceto a recordação de que tais coisas tinham acontecido.
Anne não ia a Kellynch desde que deixara a casa de Lady Russell em Setembro. Não fora necessário, e, nas poucas ocasiões em que lhe teria sido possível ir ao Solar, ela arranjara meios de se esquivar. O primeiro regresso foi para voltar a ocupar o seu lugar no moderno e elegante apartamento do Lodge e para alegrar os olhos da sua dona. A alegria de Lady Russell ao voltar a encontrá-la continha alguma ansiedade. Ela sabia quem frequentara Uppercross. Mas, felizmente, Anne, ou estava mais bonita e um pouco mais cheia, ou Lady Russell imaginava que estava; e Anne, ao receber os seus elogios, divertiu-se a relacioná-los com a admiração silenciosa do primo e a fazer votos para que lhe tivesse sido concedida uma segunda primavera de juventude e beleza.
Pouco depois de terem começado a conversar, ela apercebeu-se de uma alteração nos seus pensamentos. Os assuntos que mais lhe tinham ocupado o coração quando saíra de Kellynch e que achara que tinham sido menosprezados e que fora obrigada a abafar quando estava com os Musgrove tinham agora um interesse secundário. Ultimamente, ela até se esquecera do pai, da irmã e de Bath. Estas preocupações tinham desaparecido, suplantadas pelas de Uppercross, e, quando Lady Russell referiu os seus antigos desejos e temores, falou da satisfação com a casa em Camden Place que tinham alugado e de como lamentava que a Sra. Clay ainda estivesse com eles, Anne ter-se-ia sentido envergonhada se tivesse de admitir que estava a pensar mais em Lyme, em Louisa Musgrove e em todos os seus conhecimentos que lá se encontravam; e como estava muito mais interessada na casa e na amizade dos Harville e do comandante Benwick do que na casa do seu próprio pai em Camden Place, ou na amizade da irmã com a Sra. Clay. Ela teve mesmo de fazer um esforço para responder a Lady Russell com algo semelhante a interesse por estes assuntos, os quais, por natureza, deveriam estar em primeiro lugar.
Surgiu um ligeiro embaraço, de início, quando conversaram sobre outro assunto. Elas não podiam deixar de falar do acidente em Lyme. Ainda não tinham decorrido cinco minutos após a chegada de Lady Russell no dia anterior e já lhe fora feito um relato completo do sucedido, mas era impossível não voltar a falar nele; ela teve de fazer perguntas, lastimar a imprudência, lamentar o resultado, e o nome do comandante Wentworth foi referido por ambas. Anne teve consciência de não o fazer tão bem como Lady Russell. Só conseguiu dizer o nome e olhar Lady Russell nos olhos quando adotou o expediente de lhe contar resumidamente o que pensava da relação de afeto entre ele e Louisa. Depois de ter contado isto, deixou de se sentir perturbada com o nome dele. Lady Russell limitou-se a escutar calmamente e a desejar-lhes felicidades; mas, no seu íntimo, ela sentiu um prazer indignado, um desdém grato em relação ao homem que, aos 23 anos, parecera compreender o valor de Anne Elliot e, oito anos depois, se deixara encantar por alguém como Louisa Musgrove.
Os primeiros três ou quatro dias passaram-se muito tranquilamente, sem quaisquer circunstâncias dignas de referência a não ser a recepção de um ou dois bilhetes provenientes de Lyme que chegaram até Anne, sem ela saber como, e que traziam notícias das melhoras de Louisa. No fim desse período, a delicadeza de Lady Russell não lhe permitiu descansar mais, e as ameaças, embora mais esbatidas, de reviver o passado, surgiram num tom decidido:
Tenho de ir visitar a Sra. Croft, tenho mesmo de a visitar muito em breve. Anne, sentes-te com coragem para ir comigo fazer uma visita àquela casa? Anne não se esquivou, pelo contrário, ela estava a ser sincera quando respondeu:
Eu penso que, de nós duas, é provável que seja a senhora quem vai sofrer mais; os seus sentimentos estão menos reconciliados com a mudança do que os meus. Como fiquei perto, habituei-me à idéia. Ela podia ter falado mais sobre o assunto; na realidade, tinha uma ótima opinião sobre os Croft e pensava que o pai tivera muita sorte em os ter como inquilinos; além disso, eles não só constituíam um bom exemplo para a paróquia como prestariam mais atenção e auxílio aos pobres. Por tudo isso, por mais que lamentasse e tivesse vergonha de ter sido necessário mudarem-se, ela não conseguia, com toda a honestidade, deixar de pensar que os que tinham partido não mereciam ficar e que o Solar de Kellynch estava em melhores mãos do que quando estivera entregue aos dos seus proprietários. Estas convicções causavam-lhe, sem dúvida, um enorme sofrimento, mas impediam-na de sentir a mágoa que Lady Russell iria sofrer quando voltasse a entrar na casa e atravessasse os bem conhecidos aposentos. Nesses momentos, Anne não conseguia dizer para si própria: -Estas salas deviam pertencer-nos só a nós. Oh, como o seu destino é degradante! Como estão ocupados por quem não é digno deles! Uma família antiga ser assim afastada! Desconhecidos a ocuparem o seu lugar!¯ Isso não acontecia, exceto quando pensava na mãe e se lembrava de quando ela presidia a tudo; só então soltava um suspiro. A Sra. Croft tratava-a sempre com uma amabilidade que lhe dava o prazer de imaginar que ela lhe tinha amizade, e, nesta ocasião, ao recebê-la naquela casa, houve uma atenção especial. O triste acidente de Lyme logo se tornou o tópico dominante; e, ao comparar as últimas notícias sobre a doente, notaram que tinham sido escritas à mesma hora do dia anterior e que o comandante Wentworth estivera em Kellynch na véspera (a primeira vez desde o acidente), tinha trazido a Anne a carta cuja procedência ela não conseguira descobrir, ficara algumas horas e regressara de novo a Lyme - e sem a intenção de tornar a sair de lá. Ela ficou a saber que ele tinha perguntado particularmente por ela, tinha expressado a esperança de que a Menina Elliot estivesse a recuperar dos seus esforços, tinha-se referido aos seus esforços como enormes. Isto foi muito agradável e proporcionou-lhe mais prazer do que qualquer outra coisa poderia ter feito. Quanto à triste catástrofe em si, duas mulheres equilibradas e sensatas, cuja opinião se baseava em fatos conhecidos, só podiam encará-la de uma forma, e foi decidido que tinha sido a consequência de muita leviandade e muita imprudência, que os seus efeitos eram muito alarmantes e que era assustador pensar que, durante muito tempo, ainda haveria dúvidas sobre o restabelecimento da Menina Musgrove e que provavelmente ela iria sofrer, no futuro, os efeitos do traumatismo.
O almirante rematou o assunto, exclamando: - Sim, um caso muito triste. É uma moda nova, esta de um jovem cortejar uma menina, partir a cabeça da amada, não é verdade, Menina Elliot? Isto é realmente de fazer andar a cabeça à roda!
Os modos do almirante Croft não eram exatamente de molde a agradar a Lady Russell, mas encantavam Anne. A bondade do seu coração e a simplicidade do seu caráter eram irresistíveis.
Agora, isto pode ser muito desagradável para si – disse ele, despertando subitamente de um breve devaneio - ... encontrar-nos aqui. Devo dizer que não tinha pensado nisso antes, mas deve ser muito desagradável. Mas, agora, não faça cerimônia. Se quiser, percorra todos os aposentos da casa.
Noutra altura, sir, obrigada, agora não.
Bem, sempre que quiser. Pode entrar pelo bosque em qualquer altura. E é ali que guardamos os nossos guarda-chuvas, pendurados atrás da porta. Um bom lugar, não acha? Mas - (caindo em si) - talvez não ache que seja um bom lugar, pois os vossos eram sempre guardados dentro do armário.
Era sempre assim, acho eu. Os hábitos de uma pessoa podem ser tão bons como os de outra, mas todos nós gostamos mais dos nossos. Por isso, decida por si própria se é melhor dar uma volta pela casa ou não.
Anne, vendo que não parecia mal recusar, fê-lo com gratidão.
Para além disso, fizemos muito poucas alterações! prosseguiu o almirante, depois de pensar um momento. – Muito poucas. Em Uppercross, falámos-lhe sobre a porta da lavandaria. Isso foi um grande melhoramento. O que muito me espanta é que possa haver uma família no mundo que consiga suportar, durante tanto tempo, o incômodo de ela abrir como fazia! Diga, por favor, ao seu pai o que fizemos, e que o Dr. Shepherd pensa que é o melhor melhoramento que esta casa alguma vez sofreu. Na realidade, é justo dizer que as poucas alterações que fizemos foram para muito melhor. E a minha mulher quem merece os louros, porém. Eu fiz pouco mais do que mandar tirar os espelhos grandes do meu quarto de vestir, que era do seu pai. Um homem muito bom e um verdadeiro cavalheiro, tenho a certeza, mas eu penso, Menina Elliot - (com um ar pensativo) -, que ele deve ser um homem um tanto vaidoso para a sua idade. Tantos espelhos! Oh, meu Deus! Não era possível fugir da minha própria imagem. Por isso, pedi a Sophy que me desse uma ajuda e mudamo-los para outro quarto; agora sinto-me bastante confortável, com o meu pequeno espelho de barbear a um canto e outra coisa enorme de que nunca me aproximo.
Anne achou graça, mesmo contra a sua vontade, e não conseguiu encontrar resposta; o almirante, receando não ter sido suficientemente delicado, retomou o assunto, dizendo:
Na próxima vez que escrever ao seu pai, Menina Elliot, dˆ-lhe, por favor, cumprimentos meus e da Sra. Croft, e diga-lhe que estamos muito confortavelmente instalados e que não encontramos defeito nenhum na casa. A verdade que a chaminé da saleta do pequeno-almoço deita um pouco de fumo, mas isso é só quando o vento sopra de norte, o que, quanto muito, só acontece três vezes em cada Inverno. E, de um modo geral,já entramos na maior parte das casas dos arredores e podemos afirmar que não existe nenhuma melhor do que esta. Por favor diga-lhe isto, com os meus cumprimentos. Ele vai gostar de o ouvir.
Lady Russell e a Sra. Croft gostaram muito uma da outra, mas as relações que esta visita iniciou estavam destinadas a não ter seguimento imediato, pois, quando a visita foi retribuída, os Croft participaram que iriam ausentar-se por algumas semanas, para irem visitar os seus familiares no norte da região, e provavelmente não regressariam antes de Lady Russell seguir para Bath. Assim terminou todo o perigo de Anne se encontrar com o comandante Wentworth no Solar de Kellynch, ou de o ver na companhia da sua amiga. Estava a correr tudo bem, e ela sorriu ao pensar na ansiedade que desperdiçara com o assunto.
Capítulo Dois (Quatroze)
Embora Charles e Mary tivessem ficado em Lyme, após a ida do Sr. e da Sra. Musgrove para lá; muito mais tempo do que Anne imaginava que a sua presença fosse desejada, eles foram os primeiros da família a voltar para casa, e, assim que lhes foi possível, dirigiram-se a casa de Lady Russell.
Quando vieram embora, Louisa já se sentava, mas a sua cabeça, embora lúcida, estava extremamente fraca, e os seus nervos demasiado sensíveis; e, embora se pudesse dizer que, de um modo geral, a recuperação decorria muito bem, ainda era impossível dizer quando estaria em condições de suportar a viagem de regresso a casa; e o pai e mãe, que tinham de voltar a tempo de receber os filhos mais novos para as férias de Natal, acalentavam poucas esperanças de a trazerem com eles.
Tinham alugado uma casa para todos. A Sra. Musgrove saía com os filhos da Sra. Harville o mais que podia, e eram enviadas de Uppercross todas as provisões possíveis para aliviar o incômodo causado aos Harville, ao mesmo tempo que os Harville queriam que fossem jantar com eles todos os dias; enfim, parecia haver um esforço de parte a parte para demonstrar quem era mais generoso e hospitaleiro. Mary tivera os seus achaques, mas o fato de ter ficado tanto tempo tornava evidente que ela encontrara mais motivos de diversão do que de sofrimento.
Charles Hayter tinha ido a Lyme com mais frequência do que lhe agradava, quando jantavam em casa dos Harville só havia uma criada a servir à mesa e, a princípio, a Sra. Harville dera sempre a precedência à Sra. Musgrove; mas, ao saber de quem ela era filha, a Sra. Harville apresentara umas desculpas tão amáveis, e tinha havido tanto para fazer todos os dias, tinha havido tantos passeios da sua casa até à dos Harville, ela fora buscar tantos livros à biblioteca e trocara-os tantas vezes, que o prato da balança certamente pendera muito a favor de Lyme.
Tinham-na também levado a Charmouth, tomara banho, fora à igreja, e havia muito mais gente para observar na igreja de Lyme do que na de Uppercross - e tudo isto, aliado à sensação de se saber muito útil, tinha contribuído para que aquela quinzena fosse realmente agradável.
Anne perguntou pelo comandante Benwick. Uma sombra perpassou de imediato pelo rosto de Mary. Charles riu-se.
Oh! O comandante Benwick está muito bem, creio eu, mas ele é um jovem muito estranho. Não sei o que se passou com ele. Convidámo-lo a vir passar um dia ou dois conosco; Charles comprometeu-se a levá-lo a caçar, e ele pareceu encantado; pela minha parte, pensei que estava tudo decidido; quando, de repente, na terça-feira à noite, ele deu umas desculpas meio esquisitas,
-que nunca caçava-, que não o tínhamos compreendido bem-, que tinha prometido isto, tinha prometido aquilo, e a conclusão, fiquei a saber, era que não tencionava vir. Suponho que ele teve medo de se aborrecer aqui; mas juro que eu achava que uma vinda ao chalé era suficientemente animada para um homem com o coração despedaçado como o comandante Benwick.
Charles voltou a rir-se e disse:
Então, Mary, tu sabes muito bem o que realmente se passou. Foi tudo culpa tua - (voltando- se para Anne). - Ele pensava que, se viesse conosco, te encontraria por perto; ele imaginava que vivíamos todos em Uppercross; e, quando descobriu que Lady Russell vivia a três milhas de distância, faltou-lhe o ânimo e não teve coragem para vir. Foram esses os fatos, dou a minha palavra de honra, Mary sabe que são.
Mas Mary não cedeu de bom grado, quer por considerar que o comandante Benwick tinha direito, por nascimento ou posição, a estar apaixonado por uma Elliot, quer por não querer acreditar que Anne fosse uma atração maior em Uppercross do que ela própria. A boa vontade de Anne, porém, não fora diminuída pelo que ouvira. Reconheceu que se sentia lisonjeada e continuou a fazer perguntas.
Oh!, ele fala de ti - exclamou Charles - em tais termos... Mary interrompeu-o:
Pois deixa-me que te diga, Charles, que não o ouvi falar em Anne mais de uma vez durante todo o tempo em que lá estive. Digo-te, Anne, que ele nunca fala em ti.
Não - admitiu Charles. - Não sei se ele alguma vez o fez, de um modo geral; mas, no entanto, é muito óbvio que ele te admira imenso. Ele tem a cabeça cheia de livros que está a ler e que foram recomendados por ti, e quer conversar contigo sobre eles; ele descobriu qualquer coisa num deles que ele pensa; oh!, não me consigo lembrar, mas era algo muito bonito, ouvi-o falar com Henrietta sobre isso; e depois teceu os maiores elogios à Menina Elliot¯! Agora, Mary, digo-te que fui eu próprio que o ouvi, tu estavas na outra sala:
-Elegância, doçura, beleza. Oh, os encantos da Menina Elliot não têm fim.
Pois eu tenho a certeza - exclamou Mary acaloradamente de que, se o fez, isso não abona muito a seu favor. A Menina Harville só morreu em Junho. Não merece muito a pena conquistar um coração assim, não é verdade, Lady Russell? Tenho a certeza de que concorda comigo.
Antes de decidir, preciso de conhecer o comandante Benwick - disse Lady Russell, sorrindo.
E é provável que isso aconteça muito em breve, posso garantir-lhe, minha senhora - disse Charles. - Embora ele não tenha tido coragem para vir conosco e partir logo de seguida para vos fazer uma visita formal, um dia destes ele virá sozinho a Kellynch, pode contar com isso. Eu disse- lhe a que distância ficava e qual era a estrada, e disse-lhe que merecia bem a pena visitar a igreja, pois ele gosta desse tipo de coisas. Eu pensei que isso seria uma boa desculpa, e ele escutou com toda a atenção; e, pela sua reação, estou certo de que ele virá visitá-la em breve. Por isso, desde já a aviso, Lady Russell.
Qualquer conhecido de Anne será sempre bem-vindo em minha casa - foi a resposta amável de Lady Russell.
Oh!, quanto a ser conhecido de Anne - disse Mary -, eu acho que ele é mais meu conhecido, uma vez que o vi todos os dias durante uma quinzena.
Bem, então, como conhecido de ambas, terei muito prazer em conhecer o comandante Benwick.
Não o vai achar nada simpático, garanto-lhe, minha senhora. Ele é um dos jovens mais sensaborões que jamais existiram. Passeou comigo algumas vezes de uma ponta a outra do areal, sem dizer uma palavra. Não é um jovem nada bem educado. Tenho a certeza de que não vai gostar dele.
Nisso, as nossas opiniões diferem, Mary - disse Anne. Penso que Lady Russell vai gostar dele. Eu acho que Lady Russell gostará tanto do seu espírito que muito em breve deixará de notar quaisquer deficiências nos seus modos.
Também acho, Anne - disse Charles. - Estou certo de que Lady Russell irá gostar dele. É exatamente o tipo de pessoa que agrada a Lady Russell. Dêem-lhe um livro, que ele passará o dia a ler.
Sim, isso é verdade - disse Mary com ar de troça. – Ele fica sentado a ler o livro e nem dá por uma pessoa falar com ele, nem quando se deixa cair uma tesoura, nem quando acontece qualquer outra coisa. Achas que Lady Russell gostaria disso?
Lady Russell não pôde conter o riso.
Palavra de honra - disse ela - que, considerando-me eu uma pessoa decidida e prática, nunca me passaria pela cabeça que a minha opinião sobre alguém pudesse ocasionar tamanha diferença de conjecturas. Sinto realmente curiosidade em ver a pessoa que provoca opiniões tão contrárias. Espero que o convençam a visitar-nos. E, Mary, quando o fizer, podes ter a certeza de que ouvirás a minha opinião; mas estou decidida a não o julgar de antemão.
Não vai gostar dele, posso assegurar-lhe.
Lady Russell começou a falar noutra coisa. Mary conversou animadamente sobre o seu encontro, ou melhor, sobre como, espantosamente, não se tinha encontrado com o Sr. Elliot.
Esse é um homem - disse Lady Russell - que não tenho qualquer desejo de conhecer. A sua recusa em ficar em termos cordiais como o chefe da sua família provocou-me uma opinião muito desfavorável a seu respeito.
Esta declaração refreou o entusiasmo de Mary e fê-la interromper a sua descrição do aspecto de Elliot. Quanto ao comandante Wentworth, embora Anne não tivesse feito quaisquer perguntas, foram dadas voluntariamente informações suficientes. A sua disposição tinha melhorado muito ultimamente; e ele era agora uma pessoa muito diferente do que fora na primeira semana. Ele não visitara Louisa; estava tão receoso de que um encontro tivesse consequências graves para ela que não insistira em vê-la; pelo contrário, parecia ter um plano para se ausentar entre uma semana e dez dias, até a cabeça dela ficar mais forte. Ele falara em ir a Plymouth por uma semana e queria convencer o comandante Benwick a ir com ele; mas, conforme Charles afirmara, o comandante Benwick parecia muito mais disposto a vir a Kellynch. Não se pode duvidar de que, a partir desta altura, tanto Lady Russell como Anne pensavam ocasionalmente no comandante Benwick.
Lady Russell não conseguia ouvir a campainha da porta sem pensar que seria ele; e Anne também não conseguia voltar de um passeio solitário na propriedade do pai, de qualquer visita de caridade na aldeia, sem perguntar a si própria se iria vê-lo ou ter notícias dele. Mas o comandante Benwick não veio. Talvez se sentisse menos inclinado a fazê-lo do que Charles imaginara, ou então era demasiado tímido; e, depois de lhe conceder uma semana de tolerância, Lady Russell decidiu que ele não era merecedor do interesse que estava a começar a suscitar.
Os Musgrove regressaram a tempo de receber os seus felizes rapazes e meninas, vindos do colégio, e trouxeram consigo os filhos pequenos da Sraa Harville, o que fez aumentar o barulho em Uppercross e diminuir o de Lyme. Henrietta continuou junto de Louisa; mas o resto da família encontrava-se já novamente na sua residência habitual.
Lady Russell e Anne foram cumprimentá-los uma vez, e Anne não conseguiu deixar de sentir que Uppercross estava de novo cheia de vida. Embora nem Henrietta, nem Louisa, nem Charles Hayter, nem o comandante Wentworth lá estivessem, a sala apresentava um forte contraste com o estado em que a vira pela última vez. A Sra. Musgrove encontrava-se rodeada pelos pequeninos Harville, a quem ela protegia cuidadosamente da tirania das duas crianças do chalé, que tinham vindo expressamente para brincar com eles. A um lado, havia uma mesa, ocupada por algumas meninas que tagarelavam e cortavam papel de seda e papel dourado; noutro, havia tripeças com tabuleiros cheios de empadas, perto das quais rapazes turbulentos se divertiam ruidosamente; o conjunto era completado por uma lareira crepitante que parecia decidida a fazer-se ouvir, apesar de todo o barulho dos outros.
Charles e Mary também chegaram, claro, durante a sua visita; e o Sr. Musgrove fez questão de cumprimentar Lady Russell e sentou-se junto dela durante dez minutos, falando em voz muito alta, mas, devido ao barulho das crianças ao seu colo, geralmente em vão. Era um belo quadro de família.
Anne, julgando pelo seu próprio temperamento, teria considerado aquele furacão doméstico um péssimo restaurador dos nervos, que deviam estar tão abalados com a doença de Louisa; mas a Sra. Musgrove, que chamou Anne para junto de si para lhe agradecer repetidamente, com extrema cordialidade, as suas atenções para com eles, concluiu uma breve recapitulação do que ela própria sofrera, comentando, ao mesmo tempo que lançava um olhar feliz em redor, que, depois de tudo por que passara, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila em casa.
Louisa restabelecia-se rapidamente. A mãe pensava até que ela talvez pudesse vir para casa antes de os irmãos regressarem do colégio. Os Harville tinham prometido vir com ela e passar algum tempo em Uppercross, quando ela voltasse. O comandante Wentworth ausentara-se, de momento, para visitar o seu irmão em Shropshire.
Espero lembrar-me, de futuro- disse Lady Russell assim que se sentaram na carruagem -, de não visitar Uppercross nas férias de Natal. Toda a gente tem os seus gostos no que diz respeito aos ruídos, assim como em relação a outras coisas; e os sons são inofensivos ou extremamente perturbadores devido mais à sua natureza do que à sua intensidade.
Quando Lady Russell, não muito tempo depois, chegou a Bath numa tarde de chuva e percorreu as ruas desde Old Bridge a Camden Place, no meio do barulho das outras carruagens, do rolar surdo das carroças e carretas, dos gritos dos pregões dos ardinas, dos padeiros e dos leiteiros, e do incessante martelar das galochas, não se queixou. Não, estes eram barulhos que pertenciam aos prazeres do Inverno; o seu estado de espírito melhorava sob tal influência; e, tal como a Sra. Musgrove, ela sentia, embora não o dissesse, que, depois de uma longa permanência no campo, nada lhe fazia tão bem como um pouco de alegria tranquila.
Anne não partilhava destes sentimentos. Ela persistia na sua firme, embora muito silenciosa, aversão a Bath; avistou vagamente as fileiras de edifícios, esfumando-se na chuva, sem qualquer vontade de as ver melhor; achou o avanço ao longo das ruas não só desagradável como demasiado rápido; pois quem ficaria contente de a ver quando chegasse? E recordou, com saudade, o bulício de Uppercross e a solidão de Kellynch. A última carta de Elizabeth tinha-lhe dado uma notícia de algum interesse. O Sr. Elliot encontrava-se em Bath. Fizera uma visita a Camden Place; fizera uma segunda, uma terceira visita; fora particularmente atencioso; se Elizabeth e o pai não se enganavam, ele esforçava-se tanto por estabelecer uma ligação e por proclamar o valor do parentesco como anteriormente se empenhara em manifestar indiferença. Se isso fosse verdade, era maravilhoso; e Lady Russell sentia uma agradável curiosidade e perplexidade em relação ao Sr. Elliot, retratando-se da opinião que há tão pouco tempo expressara a Mary, de que ele era um homem que não tinha qualquer desejo de conhecer. Ela tinha um grande desejo de o conhecer. Se ele queria realmente reconciliar-se, como um ramo submisso, então deviam perdoar-lhe por se ter separado da árvore paterna. Anne não se sentia tão entusiasmada com essa circunstância; mas sentia que gostaria de voltar a ver o Sr. Elliot, o que não acontecia com muitas outras pessoas de Bath.
Lady Russell deixou-a em Camden Place e seguiu depois para a sua residência emrivers Street.
Capítulo Três (Quinze)
Sir Walter tinha alugado uma casa muito boa em Camden Place, um local elegante e digno, como convinha a um homem importante, e tanto ele como Elizabeth se sentiam muito satisfeitos ali. Anne entrou nela com grande desânimo, antecipando um cativeiro de muitos meses e dizendo ansiosamente para si própria: Oh, quando vou voltar a sair daqui?- Uma certa cordialidade inesperada no modo como foi recebida fê-la sentir-se melhor. O pai e a irmã ficaram satisfeitos por a verem, para lhe mostrarem a casa e as mobílias, e trataram-na com amabilidade. O fato de passarem a ser quatro à mesa de jantar foi considerado uma vantagem. A Sra. Clay foi simpática e mostrou-se muito sorridente; mas a simpatia e os sorrisos eram habituais nela. Anne sempre achara que, à sua chegada, ela fingiria o que era apropriado; mas a amabilidade dos outros foi inesperada. Eles estavam obviamente muito bem-dispostos, e, pouco depois, ela ficou a saber porquê. Eles não estavam interessados em ouvi-la. Depois de estarem à espera de ouvir que a sua falta era muito sentida na região em que tinham vivido, o que Anne não lhes pôde dizer, limitaram-se a fazer apenas algumas perguntas antes de dominarem a conversa. Uppercross não tinha interesse nenhum, e Kellynch muito pouco; Bath era tudo.
Tiveram o prazer de lhe garantir que Bath satisfazia as suas expectativas em todos os aspectos. A casa era indubitavelmente a melhor de Camden Place; as suas salas de visitas eram superiores a todas as outras que tinham visto ou de que tinham ouvido falar; e essa superioridade residia também no estilo da decoração e no bom gosto da mobília. Toda a gente queria ser-lhes apresentada. Todos queriam visitá-los. Eles tinham-se esquivado a muitas apresentações e, mesmo assim, estavam sempre a receber cartões de visita de pessoas de quem nunca tinham ouvido falar. Eram esses os motivos do regozijo!
Deveria Anne sentir-se admirada por o pai e a irmã se sentirem tão felizes? Ela podia não se admirar, mas devia suspirar por o pai não se aperceber de quanto descera com a mudança, por ele não lamentar ter-se afastado das obrigações e perdido a dignidade de um proprietário residente nas suas terras; por encontrar tantos motivos de vaidade na mesquinhez de uma cidade; não conseguiu deixar de suspirar, sorrir, e, enquanto Elizabeth abria as portas e passava, radiante, de um salão para o outro, gabando o seu tamanho, de se admirar com o fato de esta mulher, que tinha sido senhora do Solar de Kellynch, conseguir sentir orgulho daquele espaço entre quatro paredes que distavam uns dez metros umas das outras.
Mas não era só isto que os fazia felizes. Tinham também o Sr. Elliot. Anne teve de ouvir falar muito do Sr. Elliot. Não só fora perdoado como estavam encantados com ele. Ele encontrava-se em Bath há duas semanas (passara por Bath em) Novembro, no caminho para Londres; nessa altura, soubera que Sir Walter estava ali instalado, mas, como só lá passara vinte e quatro horas, não tivera tempo para os cumprimentar); mas agora estava há duas semanas em Bath, e o seu primeiro cuidado, ao chegar, fora deixar o seu cartão em Camden Place, tendo, logo a seguir, feito frequentes tentativas para se encontrarem; quando se encontraram, tivera uma conduta tão franca e apresentara tão prontamente desculpas pelo passado, tanto empenho em voltar a ser recebido como parente, que o bom entendimento anterior fora completamente restabelecido. Não tinham encontrado um único defeito nele. Ele tinha explicado o que parecera ser desinteresse da sua parte.
Fora provocado por um mal-entendido; ele nunca tencionara ignorá-los; receara, sim, estar a ser ignorado, mas desconhecia o motivo; e a delicadeza obrigara-o a manter-se silencioso. Mostrara-se vivamente indignado quando foi sugerido que ele se tinha referido à família ou aos seus pergaminhos de um modo pouco respeitoso ou indiferente. Ele, que sempre se gabara de ser um Elliot e cujos sentimentos em relação a este parentesco eram demasiado rígidos para agradar ao tom antifeudal de hoje em dia! Estava, na realidade, espantado!
Mas o seu carácter e o seu comportamento em geral desmentiam-no. Sir Walter podia falar com todos os que o conheciam; e certamente que os esforços que fizera, nessa primeira oportunidade de reconciliação para recuperar o estatuto de parente e presumível herdeiro, eram uma prova evidente da sua opinião sobre o assunto. As circunstâncias do seu casamento também eram de molde a admitir muitas atenuantes. Este era um assunto sobre o qual ele não quisera falar; mas um amigo íntimo seu, um tal Coronel Wallis, um homem eminentemente respeitável, um perfeito cavalheiro (e de boa aparência, acrescentou Sir Walter) que vivia com bastante luxo em Malborough Buildings e que, a seu próprio pedido, lhes tinha sido apresentado pelo Sr. Elliot, mencionara uma ou duas coisas sobre o casamento que provocara uma grande diferença em relação à má impressão que tinham sobre o mesmo. O coronel Wallis conhecia o Sr. Elliot há muito tempo, conhecera bem amulher dele e compreendera perfeitamente toda a história. Ela certamente não era uma mulher de boas famílias, mas era instruída, prendada, rica e completamente apaixonada pelo seu amigo. Tinha sido esse o encanto. Ela aproximara-se dele. Sem essa atração, todo o seu dinheiro não teria sido suficiente para tentar Elliot. Além disso, assegurou ele a Sir Elliot, ela era uma mulher muito bonita.
Tudo isso amenizava a situação. Uma mulher muito bonita, com uma grande fortuna e apaixonada por ele! Sir Walter pareceu admitir que tudo isso constituía uma desculpa perfeita, e Elizabeth, embora não visse as circunstâncias sob uma luz tão favorável, concordou que era uma grande atenuante. O Sr. Elliot visitara-os repetidas vezes,jantara com eles uma vez, obviamente encantado com a honra de ter sido convidado, pois eles, de um modo geral, não ofereciam jantares; encantado, em suma, com todas as provas de atenção por parte dos primos e sentindo-se extremamente feliz por estar em relações íntimas com Camden Place.
Anne ouviu, mas sem conseguir compreender bem. Sabia que tinha de fazer concessões, enormes concessões, às opiniões dos que falavam. Sem dúvida que havia exagero naquilo que ouvia. Tudo o que soava a extravagante e irracional na reconciliação podia ter origem apenas na linguagem dos relatores. Mesmo assim, porém, ela tinha a sensação de existir algo mais do que era imediatamente aparente no desejo do Sr. Elliot de, ao fim de tantos anos, querer ser bem recebido por eles. Sob um ponto de vista mundano, ele não tinha nada a ganhar com o fato de estar de boas relações com Sir Walter, nem arriscava nada se continuasse em desacordo com ele. Com toda a probabilidade, ele era o mais rico dos dois, e a propriedade de Kellynch certamente seria sua no futuro, assim como o título. Um homem sensato! E ele parecera ser um homem muito sensato. Qual seria o seu objetivo? Ela só conseguia imaginar uma solução; era, talvez, por causa de Elizabeth. Talvez no passado ele tivesse gostado realmente dela, embora as conveniências e o acaso o tivessem arrastado para um caminho diferente, e, agora que ele podia dar-se ao luxo de fazer o que lhe agradava, talvez tencionasse fazer-lhe a corte. Elizabeth era certamente muito bonita, com modos elegantes e bem educados, e o Sr. Elliot talvez nunca se tivesse apercebido do seu caráter, uma vez que só a vira em público e ele próprio era, nessa altura, muito jovem. Como ele, agora mais velho e mais perspicaz, ver o temperamento e a inteligência dela era outra questão, bastante mais preocupante. Muito sinceramente, se o seu objetivo era, na verdade, Elizabeth, ela desejava que ele não fosse demasiado amável nem demasiado observador; e, pelos olhares que as duas trocavam quando se falava das visitas frequentes do Sr. Elliot, parecia óbvio que Elizabeth julgava que era e que a sua amiga, a Sra. Clay, encorajava a idéia.
Anne referiu tê-lo visto de relance em Lyme, mas não lhe prestaram muita atenção. Oh!, sim, talvez fosse o Sr. Elliot. Eles não sabiam. Talvez fosse ele.¯ Recusavam-se a ouvi-la descrevê-lo. Eles próprios, principalmente Sir Walter, o descreviam. Ele fez jus ao seu ar de cavalheiro, ao aspecto elegante e moderno, ao rosto bem delineado, aos seus olhos sensatos, mas, ao mesmo tempo, lamentava que tivesse o queixo tão saliente, um defeito que o tempo parecia ter acentuado; também não podia afirmar que, em dez anos, todos os seus traços não se tivessem alterado para pior. O Sr. Elliot parecia pensar que ele (Sir Walter) estava exatamente como quando se tinham separado pela última vez; mas Sir Walter não pudera retribuir-lhe cabalmente o elogio, o que o embaraçara.
Ele não tinha, porém, motivo de queixa. O Sr. Elliot era mais bem-parecido que a maior parte dos homens, e ele não tinha qualquer objeção a ser visto em qualquer lado na sua companhia.
Falaram sobre o Sr. Elliot e os seus amigos de Malborough Buildings durante toda a noite. O coronel Wallis mostrara-se tão impaciente em lhes ser apresentado! E o Sr. Elliot tão ansioso por que o fosse. E havia uma Sra. Wallis, de quem, de momento, apenas tinham ouvido falar, pois ela esperava o nascimento de um filho; mas o Sr. Elliot referia-se a ela como uma mulher encantadora, bem digna de Camden Place", e, assim que se restabelecesse, conhecê-la-iam.
Sir Walter tinha a Sra. Wallis em grande consideração, dizia-se que ela era uma mulher extremamente bonita. Ele ansiava por conhecê-la. Tinha esperança de que ela o compensasse das muitas caras feias com que se cruzava continuamente na rua. O pior de Bath era a quantidade de mulheres feias que lá havia. Ele não queria dizer que não houvesse mulheres bonitas, mas o número das menos atraentes era desproporcionadamente maior. Ele tinha reparado com frequência, quando passeava, que a um rosto bonito se seguiam trinta ou trinta e cinco rostos medonhos; e uma vez, quando entrara numa loja em Bond Street, contara oitenta e sete mulheres a passar, uma atrás de outra, sem que houvesse um rosto tolerável entre elas. Tinha sido uma manhã fria, com uma geada glacial, que dificilmente uma mulher em mil conseguiria enfrentar.
Mas, mesmo assim, havia certamente uma grande quantidade de mulheres feias em Bath; e, quanto aos homens, esses eram infinitamente piores. As ruas estavam cheias de espantalhos! Pelo efeito que um homem de aspecto decente produzia, era óbvio que as mulheres não estavam muito habituadas a ver homens de aspecto tolerável. Ele nunca fora a lado nenhum de braço dado com o coronel Wallis (que tinha uma bela figura militar, embora fosse ruivo), sem notar que os olhos de todas as mulheres convergiam para ele, que os olhos de todas elas se fixavam no coronel Wallis. Que modesto, Sir Walter!
Ele não conseguiu fugir, porém. A filha e a Sr.a Clay aliaram-se a sugerir que o companheiro do coronel Wallis talvez tivesse uma figura tão atraente como o coronel Wallis, e certamente não era ruivo.
Como está Mary? - perguntou Sir Walter, muito bem-disposto.
A última vez que a vi, ela tinha o nariz vermelho, mas espero que isso não aconteça todos os dias.
Oh! Não, isso deve ter sido acidental. De um modo geral, ela tem estado de boa saúde e com muito bom aspecto desde o dia de São Miguel.
Se eu achasse que isso não iria tentá-la a sair com ventos cortantes que lhe estragariam a pele, enviar-lhe-ia uma peliça e um chapéu novos.
Anne estava a pensar se se atreveria a sugerir que um vestido ou uma touca não teriam provavelmente a mesma má utilização, quando uma pancada na porta suspendeu tudo.
Bateram à porta, e tão tarde! Eram dez horas. Seria o Sr. Elliot? Eles sabiam que ele deveria jantar em Lansdown Crescent. Era possível que ele passasse por ali no caminho para casa, para saber como estavam.
Eles não conseguiam pensar em mais ninguém. A Sra. Clay pensou decididamente que era o toque do Sr. Elliot. A Sra. Clay teve razão.
Com todo o cerimonial que um único mordomo e um único lacaio permitiam, o Sr. Elliot foi introduzido na sala. Era o mesmo, exatamente o mesmo homem, diferente apenas no vestuário. Anne recuou um pouco, enquanto os outros recebiam os seus cumprimentos, e a irmã as suas desculpas por ter aparecido a uma hora tão invulgar, mas ele não conseguia estar tão perto sem desejar certificar-se de que nem ela nem a sua amiga se tinham constipado no dia anterior", etc., etc., o que foi feito muito educadamente e recebido o mais delicadamente possível; mas seguiu-se a vez dela. Sir Walter falou na filha mais nova; Sr. Elliot, permita-me que lhe apresente a minha filha mais nova¯ (não era ocasião para se recordar de Mary), e Anne, sorridente e corada, deixou o Sr. Elliot ver as suas bonitas feições, as quais ele de modo algum esquecera, e viu imediatamente, achando graça ao seu ligeiro sobressalto de surpresa, que, na altura, ele não soubera quem ela era. Ele parecia completamente espantado, mas mais satisfeito do que espantado; os seus olhos brilharam de alegria e, com grande regozijo, congratulou-se pelo parentesco, aludiu ao passado e pediu que o considerasse já como conhecido.
Ele era tão bem-parecido como lhe parecera em Lyme, o seu rosto melhorava quando falava, e os seus modos eram exatamente o que deveriam ser, tão educados, tão naturais e tão particularmente agradáveis, que ela só os podia comparar, em excelência, aos de uma outra pessoa. Não eram os mesmos, mas eram, talvez, igualmente primorosos. Ele sentou-se junto deles, e a conversa melhorou com a sua participação. Não havia qualquer dúvida de que era um homem sensato. Bastaram dez minutos para provar isso. O seu tom, as suas expressões, a sua escolha de assunto, o fato de ele saber quando parar - tudo era função de uma mente sensata e perspicaz. Assim que pôde, ele começou a conversar sobre Lyme, desejando comparar opiniões a respeito daquele local, mas querendo particularmente falar sobre a circunstância de terem estado alojados ao mesmo tempo na mesma hospedaria, relatar a sua própria viagem, conhecer algo sobre ela e lamentar ter perdido uma tal oportunidade de a cumprimentar.
Ela fez-lhe um breve relato do seu grupo e do que a levara a Lyme. À medida que escutava, ele sentia cada vez mais pena. Passara a noite sozinho na sala ao lado da deles; ouvira continuamente vozes e risos; pensara que devia ser um grupo de pessoas agradabilíssimo; desejou poder juntar-se a eles; mas, certamente, nunca desconfiara de que tinha o mínimo direito de se apresentar. Se ao menos tivesse perguntado quem eles eram, o nome Musgrove ter-lhe-ia dito o suficiente. Bem, isto ia servir-lhe de emenda e curá-lo do hábito absurdo de nunca fazer perguntas numa hospedaria, hábito que adotara ainda muito jovem, baseado no princípio de que era muito indelicado ser curioso.
As idéias de um jovem de vinte e um anos - disse ele sobre as maneiras que deve ter para se tornar um modelo de distinção são mais absurdas, creio eu, que as de qualquer outro grupo do mundo. A loucura dos meios que ele muitas vezes utiliza só é igualada pela loucura do seu objetivo. Mas ele sabia que não devia estar a falar só com Anne; e, passado pouco tempo, ele estava a conversar com os outros, só voltando a referir-se a Lyme de vez em quando. As suas perguntas, porém, acabaram por conduzir a uma descrição do acontecimento em que ela estivera envolvida pouco depois de ele ter partido.
Quando ela se referiu a um acidente, ele quis saber pormenores. Quando ele fez perguntas, Sir Walter e Elizabeth começaram também a fazer perguntas; mas era impossível não sentir a diferença na maneira como eles o fizeram. No desejo de compreender realmente o que se passara e no grau de interesse pelo que ela sofrera ao presenciá-lo, ela só podia comparar o Sr. Elliot a Lady Russell.
Ele ficou uma hora com eles. Só quando o elegante relógio em cima da lareira bateu às onze horas com o seu tinir de prata e se começou a ouvir ao longe o guarda noturno a dizer o mesmo é que o Sr. Elliot, ou qualquer deles, pareceu ter a noção de que ele estivera lá tanto tempo. Anne não imaginara possível que a sua primeira noite em Camden Place corresse tão bem!
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